segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A identidade perdida


MARIO VARGAS LLOSA - O Estado de S.Paulo
Na versão online da revista New Yorker, de 7 de setembro, há uma "Carta aberta à Wikipédia" do romancista americano Philip Roth que é sumamente instrutiva. Ela conta que Roth, ao descobrir a descrição equivocada feita pela Wikipédia de seu romance The Human Stain ("A Mancha Humana"), enviou uma carta ao administrador da enciclopédia virtual pedindo uma retificação.
A resposta que ele obteve foi surpreendente, embora a entidade reconhecesse que um autor é "uma indiscutível autoridade sobre sua própria obra", apenas sua palavra não era suficiente para que a Wikipédia admitisse o equívoco cometido. Além disso, ela precisava de "outras fontes secundárias" que avalizassem a correção.
Na carta aberta, Philip Roth demonstra com precisão e dados fidedignos que seu romance não se inspira, como afirma a Wikipédia, na vida do crítico e ensaísta Anatole Broyard, que conheceu muito rapidamente e cuja vida privada ele ignorava por completo, mas na de seu amigo Melvin Tumin, sociólogo e catedrático da Universidade Princeton, que, por ter usado numa aula uma palavra considerada depreciativa para os negros, se viu envolvido num verdadeiro pesadelo de ataques e sanções que, por pouco, não destruíram sua vida, apesar dos muitos anos por ele dedicados a combater como intelectual e acadêmico a discriminação e o preconceito racial nos Estados Unidos.
Philip Roth publicou a carta aberta na revista New Yorker para tentar neutralizar de algum modo uma falsidade a respeito de sua obra, que a Wikipédia, dona de um público enorme, espalhara pelo mundo inteiro.
Não é a primeira vez que o grande romancista americano trava uma batalha quixotesca em defesa da verdade. Há alguns anos, ele descobriu no jornal New York Times que lhe fora atribuída uma afirmação que não lembrava ter feito. Depois de inúmeras diligências e esforços conseguiu chegar à fonte que havia utilizado o jornal para citá-lo: uma entrevista num jornal italiano, assinada por Tommaso Debenedetti, que ele jamais havia concedido.
Graças a essa investigação, foi possível descobrir as proezas fraudulentas de Debenedetti, que, há vários anos, publicava na imprensa italiana e de outros países reportagens com pessoas de diversas profissões e funções inventadas da cabeça aos pés (eu mesmo mereci a honra de ser uma de suas vítimas, e, outra delas, ninguém menos que Bento XVI). Inútil dizer que as 79 colaborações falsas do personagem não mereceram sanção alguma e a história de sua fraude tornou o simpático Tommaso Debenedetti um verdadeiro herói da civilização do espetáculo.
Agora, gostaria de me imiscuir neste artigo e contar dois episódios da minha vida recente que mostram uma inquietante proximidade com o que aconteceu com Philip Roth. Estava eu em Buenos Aires quando uma senhora, na rua, me parou para se congratular comigo por meu "Elogio à mulher", que acabava de ler na Internet. Pensei que ela estivesse me confundindo com outra pessoa, mas, poucos dias mais tarde, quando já regressara ao Peru, outras duas pessoas me asseguraram que haviam lido o texto acima mencionado e por mim assinado.
Finalmente, uma alma caridosa ou perversa o enviou para mim. Era breve, estúpido e de um mau gosto gritante ("A verdadeira beleza está nas rugas da felicidade", "todas as mulheres belas que vi são as que andam na rua com casacos amplos e minissaias, as que cheiram a limpo e sorriem quando são olhadas", e coisas ainda piores).
Perguntei a amigos fanáticos da rede se havia alguma maneira de identificar o falsário que havia elaborado essa excrecência retórica usando o meu nome e me disseram que, teoricamente, era possível, mas, na prática, não. Porque não há nada mais fácil do que embaralhar as pistas das fraudes retóricas, injetando mentiras e enganos desse tipo. Podia tentar, evidentemente, mas me custaria muito tempo e, sem dúvida, bastante dinheiro. Seria melhor que esquecesse do assunto. É claro que foi o que eu fiz.
Até que, um ano ou dois mais tarde, recebi um telefonema de um jornalista do La Nación, de Buenos Aires, o jornal que publica meus artigos na Argentina. Ele me perguntou, surpreso, se era eu o autor de um texto, assinado com o meu nome, intitulado "Sim, choro por ti, Argentina", que era uma crítica feroz aos argentinos e estava circulando na internet. Nesse caso, o texto que me atribuíam era infame, mas não estúpido.
O falsificador havia urdido com uma astúcia cuidadosa, tomando frases que efetivamente eu havia usado alguma vez, por exemplo, para criticar a política da presidente Cristina Fernández de Kirchner ou a do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, e acrescentando-lhes vilezas e vulgaridades horrendas de sua própria lavra ("Tresloucado, pária, besta troglodita da extinta e queridíssima República da Venezuela", "o peronismo é o partido dos ressentidos mais aberrantes, cheios de ódio, de rancores viscerais, fanáticos, fascistas, repletos de uma raiva doentia implacável" e por aí afora).
Consultei um advogado. Ele me explicou que o tema dos direitos autorais, do copyright, no mundo digital é ainda uma coisa confusa, objeto de múltiplas negociações nas quais ninguém ainda chegou a um acordo. Embora em princípio, mediante uma longa e custosa investigação, eu pudesse chegar à fonte da qual saiu originalmente o texto fraudulento, o esforço seria inútil, pois os falsificadores teriam tomado as precauções necessárias para confundir as pistas, lançando o artigo calunioso não do seu computador, mas usando o de um cibercafé qualquer. Então, não havia nada a fazer? Na realidade, não. Ou melhor: levar a coisa na brincadeira e esquecer.
E aqui chegamos à parte mais séria e transcendente da questão, mais permanente do que o anedótico. A revolução tecnológica audiovisual, que impulsionou as comunicações como nunca antes na história e dotou a sociedade moderna de instrumentos que lhe permitem burlar todos os sistemas de censura, teve também, como efeito perverso e não premeditado, o de pôr nas mãos da canalha intelectual e política, do ressentido, do invejoso, do complexado, do imbecil ou simplesmente do entediado, uma arma que lhe permite violar e manipular o que até agora parecia o último santuário sacrossanto do indivíduo: sua identidade.
Tecnicamente, hoje em dia, pode-se falsear a vida real de uma pessoa - o que ela é, o que faz, o que diz, o que pensa, o que escreve - e alterá-la sutilmente até desfigurá-la totalmente, provocando, com isto, às vezes, danos irreparáveis.
Provavelmente, o pior do caso é que esses atos criminosos sequer são fruto de uma conspiração política, empresarial ou cultural, mas, mais simplesmente, de pobres diabos que, desse modo, procuram combater o tédio ou a pavorosa aridez de sua vida. Eles precisam se divertir de algum modo e, acaso há um esporte mais divertido do que aviltar ou ridicularizar ou colocar em situações escandalosas outras pessoas, uma vez que, além do mais, isto pode ser perpetrado com a impunidade mais absoluta?
Por isso, os corajosos esforços de Philip Roth em defesa da sua identidade de escritor e de cidadão, para que lhe permitam continuar sendo o que é e não uma caricatura de si mesmo, embora admiráveis, são provavelmente absolutamente inúteis.
Vitória. Vivemos numa época em que o que julgávamos ser o último reduto da liberdade, a identidade pessoal, ou seja, o que nos tornamos mediante nossas ações, decisões, convicções, aquilo que cristaliza nossa trajetória vital, já não nos pertence senão de maneira muito provisória e precária.
Assim como a liberdade política e cultural, também nossa identidade agora pode nos ser arrebatada, mas, neste caso, por tiranetes e ditadores invisíveis, que, em vez de chicotes, espadas ou canhões, usam teclas e telas e se servem do éter, de um fluido imaterial, sub-reptício e tão sutil e poderoso que pode invadir nossa intimidade mais secreta e reconstruí-la a seu bel-prazer.
Ao longo de sua história, o ser humano teve de enfrentar todo tipo de inimigos da liberdade e, com grandes sacrifícios, deixando o campo de batalha coberto de inúmeras vítimas, sempre conseguiu derrotá-los. E acredito que também, no final, derrotaremos este último. Mas temo que essa vitória demorará e nem Philip Roth nem eu chegaremos a comemorá-la./ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Brasil rico, Brasil pobre editorial


O Estado de S.Paulo
O aumento da renda nos últimos dez anos proporcionou uma notável melhora no padrão de vida da maioria das famílias brasileiras, aproximando-o de indicadores de países desenvolvidos, se o que se leva em conta é a aquisição de bens de consumo. No entanto, como mostrou o jornal Valor (21/10), se o critério for o fornecimento de serviços públicos básicos, pelos quais o Estado é diretamente responsável, uma boa parte desses mesmos cidadãos ainda convive com situações típicas dos países mais pobres do mundo. Ou seja: quando depende da renda das famílias, o avanço dos brasileiros na direção do mundo do conforto é significativo; no entanto, quando há necessidade de investimentos estatais, as demandas mais óbvias de grande parte da população ainda estão muito longe de serem satisfeitas.
O Brasil é hoje o oitavo maior mercado consumidor do mundo, segundo o Fórum Econômico Mundial. Desde 2001, saltou de 85,1% para 96,3% o total de domicílios que dispõem de geladeiras. No caso dos televisores, o índice passou de 89% para 97,2%, e no de máquinas de lavar, de 33,6% para 51,6%. Quase 100% das casas agora têm fogão, e o número de residência com computador ligado à internet quadruplicou, chegando a 37,1%. Para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esses dados têm relação direta com a redução da desigualdade de renda verificada no período. Houve expansão de 16% do rendimento médio real do trabalho entre 2001 e 2011, e esse crescimento foi mais acentuado entre os 50% mais pobres da população. Estudo da Fundação Getúlio Vargas indica que o ganho nessa faixa foi de 68% acima da inflação. Além disso, o total de trabalhadores com carteira assinada cresceu 48,1% entre 2003 e 2011.
Ao mesmo tempo, a oferta de crédito, capitaneada por bancos oficiais, passou de 25% para 51% do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2002 e agosto passado, o que, ao lado do abatimento de impostos para reduzir os preços, também ajuda a explicar o aumento substancial da aquisição de bens duráveis. Com relativa estabilidade de emprego e de ganhos salariais, aliada ao crédito fácil e aos incentivos estatais, os brasileiros foram às compras.
No entanto, muitos desses consumidores da "nova classe média", que passaram a assistir a seus programas favoritos em modernas TVs de tela plana, são os mesmos que topam com lixo na porta de casa, que enfrentam esgoto a céu aberto e que não têm escola com qualidade ao menos razoável para seus filhos.
O IBGE mostra que cerca de 40% das residências brasileiras não dispõem de abastecimento de água e coleta de esgoto. A comparação com os países ricos é dramática: nos Estados Unidos, segundo o Valor, apenas 0,6% das casas não tinham água encanada e vaso sanitário com descarga em 2011. Ainda segundo o IBGE, 11% das casas brasileiras não têm nenhum tipo de saneamento básico e 5% convivem com lixo acumulado. E 40% dos logradouros não têm nenhuma identificação, de modo que seus habitantes não sabem dizer exatamente onde moram. O quadro é igualmente sombrio na educação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica de 2011 mostra que, no ensino médio, a maioria dos alunos não sabe ir além das quatro operações aritméticas nem consegue ler e escrever de modo satisfatório.
Tudo isso se reflete na capacidade do Brasil de competir por mercados. O último ranking do Fórum Econômico Mundial sobre o tema indica que o País, embora tenha subido cinco posições, para o 48.º lugar, ainda marca passo em indicadores-chave. No item "saúde e educação básica", por exemplo, o Brasil figura em 88.º lugar entre 144 países, perdendo 9 posições desde 2009.
Como se observa, lentamente estamos deixando de ser a "Belíndia", à qual se referiu o economista Edmar Bacha, em 1974, para designar a concentração de renda que gerou o abismo entre o minúsculo Brasil rico, isto é, a "Bélgica", e o enorme Brasil pobre, a "Índia". Agora, o País está mais para um "Engana", apelido dado recentemente pelo ex-ministro Delfim Netto para designar esse festejado Brasil que tem renda da Inglaterra (England), mas que ainda dispõe de serviços públicos de Gana.

O ar profundamente humano do STF




Coluna Econômica - 29/10/2012 Luis Nassif


Períodos eleitorais deixam nervos à flor da pele e o comportamento do STF (Supremo Tribunal Federal) não tem ajudado a trazer bom senso para o debate político.
O que se passa é apenas mais um capítulo de um penoso processo de aprendizado democrático. Especialmente em um momento em que as urnas tornam mais distantes os sonhos de uma rotatividade no poder.
Do lado de parte da mídia, há uma tentativa insistente de envolver Lula no julgamento e, se possível, de processá-lo e fazê-lo perder seus direitos civis. Do lado de parte do PT, um chamado à resistência capaz de elevar ainda mais a temperatura política.
No meio, botando lenha na fogueira, os doutos Ministros.
***
Mentes mais conspiratórias à esquerda podem suspeitar da preparação de um novo golpe. Mentes conspiradoras à direita podem mesmo acreditar que poderão fomentar o golpe.
No fundo, o que ocorre com o Supremo é apenas uma manifestação eloquente de humanidade. Não da grande humanidade, dos princípios que consagram homens e civilizações. Mas das fraquezas e vaidades que tornam - do mais solene magistrado ao mais simples cidadão - os homens iguais entre si.
***
O capítulo atual do aprendizado é o da exposição do STF à luz dos holofotes, com transmissão ao vivo e, pela primeira vez, analisando um processo penal. Vaidosos por natureza, como o são todos os intelectuais dotados de conhecimento especializado – e, no caso do STF, com esse conhecimento sendo manifestação de poder – os Ministros foram expostos ao desafio de se tornarem celebridades e não perderem a linha.
Alguns não conseguiram.
***
Foi o que levou um Celso de Mello a colocar gasolina na fogueira, e esforçar-se tanto pelo grande momento de oratória, insistir tanto na ênfase definitiva, a ponto de comparar partidos políticos ao PCC.
O mesmo fez Marco Aurélio de Mello, com sua defesa do golpe de 64. O Ministro que sempre se jactou de chocar os pares – inclusive com alguns posicionamentos históricos – com a concorrência inédita dos demais ministros precisou avançar alguns tons na competição. E pode haver prato melhor do que um Ministro da mais alta corte defendendo uma transgressão à Constituição?
***
Essa mesma sensação de poder acometeu Joaquim Barbosa, a ponto de avançar sobre colegas que ousassem discordar da voz de Deus. Contra os advogados dos réus, não a explosão de trovões – que só são utilizados contra iguais – mas o riso irônico de quem trata com personagens insignificantes, perto da grandeza do Olimpo.
Todos trovejam e Ayres Britto passarinha, com sua voz de pastor das almas, tentando alcançar o tom grave dos colegas mais eloquentes.
***
No plano real, fechadas as cortinas do espetáculo, não há possibilidade de se alcançar Lula. A teoria do “domínio do fato”, encampada pelo Procurador Geral da República, subiu na escala hierárquica e pegou José Dirceu e José Genoíno. Mas mesmo o PGR considerou exagero alçar voo para mais um degrau e alcançar Lula. Definitivamente, Lula está fora do processo.
***
Assim, as investidas dos Ministros do STF explicam-se muito mais pelas fraquezas humanas, pelo estrelismo que acomete espíritos menos sábios, do que pelo maquiavelismo político. Eles são humanos. Apenas não foram informados disso.