domingo, 21 de outubro de 2012

A liberdade é uma bola, no Esportes Estadão


GONÇALO JUNIOR / TEXTOS, MONICA ZARATTINI / FOTOS - O Estado de S.Paulo
O torneio de futebol da penitenciária Adriano Marrey tem duas diferenças em relação ao Campeonato Brasileiro. A primeira é a linha de tiro. Quando uma bicuda sem direção joga a bola lá, já era. Essa linha é uma faixa de quatro metros que percorre todos os muros do presídio, de fora a fora. Quem pisar ali sem autorização, leva chumbo. Para pegar a bola, é preciso pedir autorização para a torre. Mas é preciso rapidez: no início da noite, a linha de tiro é policiada também por cães.
A outra diferença está nas "arquibancadas". Como as quadras ficam no meio do pavilhão, grande parte dos 2.255 detentos do maior presídio masculino de São Paulo torce das 188 celas do complexo. Gritam atrás das grades, balançando as pernas e os braços. Por causa do barulho impressionante, os presos apelidaram as quadras de La Bombonera, uma referência ao mítico estádio do Boca Juniors. Vixe. Falta feia no jogo que está acontecendo agora. Cartão amarelo, mas poderia ser vermelho. "Aqui, não tem jeito, todo árbitro é ladrão", brinca um agente.
Cena 1. Desde o portão principal até a quadra, contei uns oito portões de ferro, todos com cadeados que bloqueiam até pensamento ruim. O acesso é feito no meio dos presos. Não senti cheiro de xixi, nem do número dois. Existem grupos de faxina responsáveis pela limpeza do pátio e das celas, principalmente nas vésperas da visita. Inúmeros varais improvisados se envergam com dezenas de peças de roupas mil vezes lavadas e que obrigam a gente a inclinar um pouco o pescoço para passar. É o de menos. O desconforto maior vem dos olhares, quase uns cutucões perguntando "o que você está fazendo aqui?". Outros são só curiosos. A desconfiança é um item de série dos detentos, não é opcional. Minha sorte é a escolta. São quatro agentes - dois na frente e dois atrás - tão carrancudos quantos os presos.
Fabiano de Oliveira Vasconcelos, que cumpre pena de 14 anos por tráfico de drogas, poderia ir ao shopping do jeito que está vestido. Blusa de moletom azul, limpo e bem passado, um tênis Nike seminovo, cabelo bem cortado, dentes brancos e alinhados. Não deu para perceber se usava perfume. Pelo visual, o único empecilho é a calça bege em tecido rústico - marca registrada dos detentos e citada pelos Racionais na música "Diário de um detento". Fabiano acerta os plurais e usa poucas gírias. Uma delas é "no automático" para dizer que uma coisa é consequência da outra.
TJD. Tirando a linha de tiro e as arquibancadas verticais, todo o restante do torneio é parecido com o nosso Brasileirão. Fabiano faz parte de um grupo chamado TJD (Tribunal de Justiça Desportiva) formado por representantes dos quatro setores (raios) do presídio. As funções são similares ao STJD do mundo livre: julgar os casos de indisciplina e definir as punições. Se um jogador fala palavrão na quadra, poderá ser suspenso por um jogo. Uma briga vale a eliminação do torneio. Em outras unidades, as equipes adotam os nomes dos clubes profissionais. Em Guarulhos, não dá para fazer isso: 90% são corintianos.
Os jogos têm mesários, árbitros e súmulas que contam o que acontece em cada partida, disputada no sistema de ida e volta, com torcida única. Os jogos têm dois tempos de 20 minutos (mais cinco de chorinho). O agente de segurança Mário Jorge Antunes é um dos responsáveis por fazer o torneio sair do papel. "Ninguém acredita que não tive problemas sérios de indisciplina nos três anos em que trabalho aqui", conta. "O segredo é não discriminar e ser justo. O preso sabe o que é certo e o que é errado".
Funcionários da penitenciária afirmam que três pilares mantêm qualquer presídio de pé: a parte jurídica, as visitas íntimas e o futebol. "Não é possível imaginar um presídio sem futebol", avalia Valdinei Freitas, diretor de Trabalho e Educação.
Em Guarulhos, a quadra é aberta pela manhã (9h às 11h) e à tarde (13h às 16h). Fora desses horários, os presos estão nas celas. "Eu me sinto livre quando jogo futebol", afirma Everaldo Lima Junior, condenado a cinco anos por tráfico de drogas.
Esse sentimento de libertação aparece em uma das melhores cenas do filme "Um sonho de liberdade" quando o personagem principal consegue uma premiação especial para os companheiros detentos: uma cervejada, no final da tarde, após a reforma do telhado da penitenciária. "O futebol liberta a mente, mas não absolve os sentenciados dos crimes. Todo mundo tem de cumprir a pena", cutuca um agente de segurança.
Cena 2. Não vejo nenhum detento usando drogas no pátio e os agentes explicam que o policiamento inibe o consumo. Nas celas, no entanto, é praticamente impossível controlar o vício, questão mal resolvida em todos os presídios do Brasil.
Do presídio, a gente não vê o horizonte. O céu encolhe e sobram uns 50 tons de cinza dos muros. Só o futebol é colorido, como um quadro em uma parede com reboco. A liberdade que ele traz dura dois tempos de 20 minutos. Mais cinco de chorinho. Ah, se eu tivesse trazido meu tênis...

Interpretação da Anistia foi 'erro grave', diz Vannuchi


O Estado de S.Paulo
O ex-ministro Paulo Vannuchi, que chefiou a Secretaria de Direitos Humanos no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, disse ontem que um dos maiores erros da história do Supremo Tribunal Federal foi cometido em 2010, no julgamento sobre a interpretação da Lei da Anistia de 1979.
"Foi um dos mais graves erros da história daquela Corte", afirmou, referindo-se à confirmação da interpretação de que a lei beneficiou os dois lados, tanto os perseguidos políticos quanto os agentes de Estado envolvidos com graves violações de direitos humanos no período da ditadura militar.
As afirmações de Vannuchi foram feitas durante um colóquio sobre justiça de transição em diferentes países, realizado em São Paulo pela Conectas, organização não governamental que atua na área de direitos humanos. Ao fim de sua exposição, o ex-ministro disse ter esperanças de que o Brasil acabe acatando a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considera imprescritíveis crimes contra os direitos humanos, ao mesmo tempo que não aceita nenhum tipo de autoanistia.
Na interpretação de alguns juristas - e daquela corte internacional, vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA) -, a lei da anistia foi promulgada ainda no período da ditadura militar e, portanto, seria uma autoanistia.
Vannuchi, que atua como assessor de Lula há 32 anos, também manifestou esperança de que os responsáveis por torturas e execuções no período da ditadura sejam punidos. "Creio que isso será inevitável após a divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014", afirmou. "O relatório vai revelar os horrores que ocorreram no Brasil."
A punição, segundo o ex-ministro, não precisa ser necessariamente a prisão, como ocorreu com ex-militares julgados na Argentina. "Pode ser uma punição simbólica. O importante é que, nas prisões, diante da possibilidade de torturar alguém, os policiais de hoje lembrem que crimes de tortura cometidos há 40 anos foram punidos", argumentou. / R.A.

O preço do trânsito travado


CELSO MING - O Estado de S.Paulo
Os congestionamentos das grandes cidades do Brasil não são apenas exasperantes. Avançam cada vez mais sobre o bolso dos proprietários de veículos e sobre o de cada cidadão.
Estudos do professor Marcos Cintra, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas, tiveram a conclusão ainda preliminar de que, só em São Paulo, o trânsito cobra em perdas de recursos e desembolsos mais de R$ 40 bilhões por ano. Equivale a 95% do orçamento do Município previsto para 2013; ao preço de 1,5 milhão de veículos populares novos (como o Gol); e ao investimento em 80 km de metrô.
Desse total, 75% correspondem ao custo de oportunidade - riquezas que deixam de ser produzidas enquanto as pessoas permanecem bloqueadas dentro do carro. Outros 25% são o que Cintra chama de custo pecuniário. Inclui gastos adicionais com queima de combustíveis; com tratamento de doenças respiratórias causadas por gases poluentes; e a alta do frete, pelo excessivo tempo gasto nas entregas. Fora isso, para driblar engarrafamentos, empresas atuam madrugada adentro, o que implica pagar adicional noturno e horas extras.
Os prejuízos não param por aí. Desde 2006, dobraram as tarifas cobradas pelos serviços de estacionamentos. Em 2011, subiram 13% - aponta a agência AutoInforme. E estacionar nas ruas de São Paulo virou uma batalha inglória. Quem acha uma vaga, ou desembolsa R$ 3,00 por hora pela folha do talão da zona azul e/ou é extorquido pelo flanelinha.
O congestionamento médio, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP), diminuiu em São Paulo. No entanto, em junho deste ano, a cidade bateu seu recorde histórico, com filas de 295 km, o que é sinal de que as últimas intervenções no fluxo de veículos não foram eficazes.
O entupimento das veias de trânsito não é um problema local. Em todo o País, há carros demais para ruas e estradas de menos. A frota nacional cresce progressivamente. Era de 29,5 milhões de veículos em 2000, chegou a 71,8 milhões neste ano. São 42,3 milhões de carros a mais em somente 12 anos - aumento de 143%.
Para Sérgio Ejzenberg, ex-diretor da CET-SP, o trânsito não voltará ao que era. Tende a piorar. Apenas investimentos pesados e de longo prazo em transporte de massa, principalmente em metrô, melhorarão a mobilidade urbana e a qualidade de vida do cidadão.
Em Nova York, por exemplo, há 22 mil carros para cada km², enquanto, em São Paulo, são 5 mil. Em Nova York, o metrô suporta as horas de pico, de uma ponta à outra da cidade, em 45 km de linhas para cada milhão de habitantes. São Paulo tem somente 7 km por milhão.
A desculpa de sempre é a de que o Brasil não tem recursos. Ejzenberg discorda: "Veja a nossa carga tributária... O problema é de aplicação". Ele dá exemplos do que considera casos de recursos mal empregados pelos governos municipal, estadual e federal: (1) o túnel em construção entre a Rodovia dos Imigrantes e a Avenida Roberto Marinho e a duplicação da Marginal do Tietê (R$ 6 bilhões); o (2) Rodoanel (R$ 30 bilhões); e (3) o futuro trem-bala (R$ 80 bilhões). "Para decisões estapafúrdias, não falta dinheiro. Querem ligar São Paulo ao Rio de Janeiro, mas fica tudo parado nas cidades." Com cada bilhão, garante, seria possível fazer ao menos dois quilômetros de metrô. Portanto, com a soma desses projetos, 232 quilômetros.
O rodízio de carros e as restrições aos veículos de carga no perímetro urbano não bastam. Um dos temas recorrentes nas discussões é a adoção do pedágio urbano - eleitoralmente inviável, mas de inegável sucesso em Londres, Milão e Cingapura. Mas, sem um sistema eficiente de transportes de massa, com integração entre metrô e corredores de ônibus por toda a cidade, essa taxação teria efeitos meramente arrecadatórios. COLABOROU GUSTAVO SANTOS FERREIRA