quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sutileza (sobre a desigualdade).


Nas "Lectures on Jurisprudence" (de 1766), Adam Smith afirma que todos os homens são iguais e têm um direito natural à vida, à liberdade e ao pleno gozo da sua propriedade, sem se preocupar como ficará a igualdade no correr da vida.
Condorcet, nas "Cinq Mémoires sur l'Instruction" (de 1791), reconhece a diferença natural dos homens e assegura que são direitos naturais de todos a liberdade, a segurança, a propriedade e a igualdade.
Na primeira metade do século 18, não havia um sistema de instrução pública organizado e a educação era, geralmente, feita por meio de preceptores privados aos quais só podiam ter acesso as famílias mais abastadas. Aliás, Smith era de uma delas.
O sistema de instrução pública (pago para Smith e gratuito para Condorcet) seria o caminho para o gozo dos direitos naturais, aperfeiçoaria a humanidade e aumentaria a solidariedade social.
Há uma divergência entre o papel da educação para Smith e para Condorcet. Para este, "a instrução pública destina-se a aperfeiçoar a espécie humana". Não se trata de promover a igualdade absoluta, mas de dar a todos a oportunidade de participar do progresso da humanidade e da ampliação do conhecimento.
É curioso ele já advertir para os riscos de uma educação pública gratuita, ao dizer claramente que "é preciso proteger o saber e seus agentes de possíveis controles do poder, seja ele civil, político, religioso ou econômico".
Para Smith, que postula a igualdade dos cidadãos ao nascer, os hábitos, os costumes e a educação são fundamentais na explicação das desigualdades dos talentos e no comportamento moral dos indivíduos.
Ele chega a dar um exemplo: a diferença entre um "filósofo" e um trabalhador comum. "Quando eles vieram ao mundo e durante os primeiros sete ou oito anos de suas vidas, deveriam ser muito parecidos. Depois, incorporaram-se ao mundo de formas diversas. Isso ampliou, pouco a pouco, a diferença de talentos, até que ao final a semelhança entre eles é irreconhecível".
Notemos que, para Smith, a coisa é mais sutil. Potencialmente, a simples ampliação da instrução não é, necessariamente, uma condição do progresso da humanidade, porque o aprendizado do conhecimento e do saber fazer corresponde ao papel desempenhado pelo indivíduo na divisão do trabalho, que gera o crescimento da riqueza.
Para Smith, um papel importante da educação é o de anular os males sobre os humanos produzidos pela condição do progresso material que é a divisão do trabalho.
ANTONIO DELFIM NETTO escreve às quartas-feiras nesta coluna.
Antonio Delfim Netto
Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade de São Paulo. Escreve às quartas-feiras na versão impressa da Página A2.

    terça-feira, 16 de outubro de 2012

    Ciência dos alimentos - XICO GRAZIANO


    O Estado de S. Paulo - 16/10


    Forte polêmica esquentou o mundo da biotecnologia. Pesquisadores de várias partes do mundo contestaram experimento, realizado na França, relacionando os alimentos transgênicos com câncer. Foram além. Denunciaram logro no trabalho.

    A pesquisa testou o efeito em ratos de laboratório de ração contendo milho geneticamente modificado, tolerante ao herbicida Roundup (milho RR). No experimento, porém, descobriram-se grosseiros erros metodológicos. Cientistas brasileiros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), norte-americanos das Universidades da Califórnia e da Flórida, ingleses do King"s College, de Londres, combateram os resultados, apontando falhas inaceitáveis. Com os mesmos dados poderia ter sido provado o contrário, ou seja, que o milho transgênico reduziu, e não aumentou, o risco de câncer nos bichinhos.

    A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EF-SA) publicou análise desqualificando a pesquisa conduzida por Giles-Eric Séralini, conhecido ativista contrário ao uso da engenharia genética na agricultura. Aposição apriorística dele construiu uma conclusão equivocada. Picaretagem científica.

    Vem de longe a discussão sobre a cor ideológica da ciência. Nas ciências sociais, sabidamente, existe enorme dificuldade de os cientistas se isentarem de suas posições políticas nos estudos que realizam. A visão de mundo afeta, inevitavelmente, suas formulações teóricas, induzindo ao viés. Por essa razão existem tantas polêmicas na sociologia e na economia.

    Nas ciências exatas, por outro lado, praticamente inexiste relação entre conhecimento e ideologia. Na física ou na química, os fenômenos analisados são quantificáveis na exatidão. Mede-se a velocidade da luz, detalham-se as estruturas moleculares. Na matemática, dois mais dois são quatro, e acabou.

    Já nas ciências naturais, como a biologia e a agronomia, que estudam os seres vivos e j seu ambiente, os fenômenos, j além de complexos, variam em sua manifestação. Sua mensuração é difícil, estimada, nunca precisa. Podem-se observar tendências, leis gerais a guiar os processos vitais, mas cada i um deles pode reagir distintamente aos estímulos do meio onde vivem. Existem incertezas, imprecisões.

    Como diz o caboclo, aqui é que o bicho pega. Mesmo quando não são politicamente engajados, os pesquisadores raciocinam segundo seus princípios culturais e éticos. Isso, obviamente, cria distinções dentro dos laboratórios. Sabendo ser impossível a isenção ideológica, as normas científicas exigem que sejam conhecidos, e divulgados com clareza, os pressupostos básicos e a metodologia dos estudos, estabelecendo uma espécie de lealdade na busca da verdade.

    O rigor do método científico separa o bom conhecimento do fajuto. Este surge da empulhação, da fabricação de resultados segundo objetivos não confessáveis. Aqui parece enquadrar-se essa pesquisa sobre o milho transgênico RR e o câncer. Nem a estirpe nem a idade dos ratinhos alimentados em laboratório se conheciam, e sabe-se que, naturalmente, ratos mais idosos tendem a contrair mais câncer do que os jovens.

    Neste 16 de outubro se passa o Dia Mundial da Alimentação. Estudiosos da questão da fome concordam que o desafio da segurança alimentar não se vencerá facilmente até 2050, quando se estima que a população mundial venha, com 9 bilhões de pessoas, a se estabilizar. Três processos básicos determinarão o sucesso nessa difícil empreitada contra as restrições alimentares dos povos: expansão das áreas de produção; desenvolvimento tecnológico, elevando a produtividade na agropecuária; e surgimento de novas alternativas de comida. 

    A engenharia genética cumprirá papel imprescindível rumo à segurança alimentar. Após | 15 anos, desde que deixaram os laboratórios e seguiram para o campo, as variedades transgênicas, manifestadas em dezenas de espécies Vegetais, já ocupam 160 milhões de hectares, plantadas por 16,7 milhões de agricultores, em 29 países. Recebidas inicialmente com temor, nunca se avaliou tanto uma tecnologia. Mesmo procurando chifre em cabeça de cavalo, jamais se provou qualquer dano à saúde humana em decorrência de alimento geneticamente modificado. Nenhum caso.

    Novas gerações de organismos geneticamente modificados surgem dos laboratórios mundiais. As primeiras transgenias forneceram resistência das plantas a herbicida, depois às lagartas, daí não pararam mais de evoluir. A engenharia genética está inventando plantas resistentes à seca, tolerantes à salinização dos solos, suportáveis a solos mais pobres. Surgem grãos mais ricos em proteínas e vitaminas, frutas mais duráveis ao armazenamento. Nos animais, acaba de ser anunciada, na Nova Zelândia, uma vaca transgênica capaz de produzir leite sem a proteína beta-lacto-globulinay responsável por causar alergia em até 3% das crianças no primeiro ano de vida. Incríveis fronteiras da ciência dos alimentos.

    Normas internacionais proíbem produtores orgânicos de cultivar plantas transgênicas. Cada vez mais se comprova, porém, com biossegurança, o seu benefício na sustentabilidade dos sistemas produtivos. Superplantas transgênicas, resistentes às pragas e doenças, eliminarão o uso dos agrotóxicos na lavoura. Afora o preconceito ecológico, nenhuma razão agronômica opõe o orgânico ao transgênico. Inimigos hoje, poderão andar de mãos dadas amanhã.

    Conhecimento científico não rima com ideologia nem com intolerância. Ele se move, estimulado pelo dinamismo civilizatório, pelo desafio do desconhecido. Transilvânia, em latim, significa “além da floresta”. Na Romênia, acredita-se que lá viveu o assustador Conde Drácula, o mais famoso dos vampiros. Mera crença. Nada que ver com transgênico. Pura ciência.

    Intimidade - FRANCISCO DAUDT

    A intimidade nos é algo tão caro que nem dada deve ser; no máximo emprestada; com direito a devolução 


    O ex-presidente Janio Quadros foi abordado pela repórter: 

    " -E aí, Janio, o que há de novo?" 

    "-Esta nossa intimidade. Intimidade, minha jovem, só traz aborrecimentos e filhos, e eu não quero nenhum dos dois com a senhorita". 

    Ele zelava por um bem precioso que a moça tentava lhe tomar. A intimidade nos é algo tão caro que nem dada deve ser. No máximo emprestada, com direito a devolução. Tomada de nós, jamais! 

    Olhe-a, portanto, como sua poupança, sua casa. Valiosa, pode ser bem aplicada, mas corre riscos. Ela passou a existir com o surgimento do indivíduo. Não me fiz claro: não é a partir do nosso nascimento, mas da criação do indivíduo. 

    Sua existência é uma novidade na história humana. Na aldeia primitiva, na tribo que não passava de 200 pessoas, não havia indivíduos. 

    As pessoas eram empasteladas, todos se metiam na vida dos outros, não havia intimidade, não havia indivíduo, pois uma coisa se alimenta da outra (ou a falta de uma, vai matando a outra). A aldeia homogênea continua na tirania das cidades pequenas, das tribos de adolescentes, dos colégios (o bullying patrulha diferenças), das religiões fanáticas: todos patrulham todos, para que todos sejam iguais. 

    Formigueiros, colmeias, o ideal comunista da "igualdade", não a democrática de oportunidade e de direitos, mas a dos cupins, em que todos são células de um só corpo, o Partido. "A morte foi vencida! As pessoas não são mais que células, o que importa é o corpo". Até tiranos são iguais. 

    O aparecimento do indivíduo só foi possível com os direitos humanos, a democracia e as grandes cidades, onde ser anônimo protege a intimidade. 

    O personagem da história de hoje é um indivíduo. Único o bastante para não participar de redes sociais nem ter celular. Um pária, portanto: empresta sua intimidade para poucos escolhidos; conversa assuntos; não interrompe ninguém para atender ao telefone, ou digitar mensagens. Estóico, resigna-se quando alguém menos íntimo o faz. É um homem de vida calma, apreciador das virtudes. 

    Adora carros desde criança. São, como diz, as esculturas contemporâneas que mais preza.
    Resolveu vender seu atual, que não é espetacular, apenas é lindo. Sua irmã ofereceu-lhe a postagem da belezura em sua página do facebook, vai que algum "amigo" se interessasse? Ele, pária que é, aceitou. Para quê? 

    Choveram mensagens metidas a engraçadinhas, debochando dele e de seu carro. Uma em particular, chocou-o, pois vinha de alguém que ele tem em alta conta. 

    Deu trabalho explicar-lhe que a internet serve para o bem, mas igualmente pode despertar, na massa linchadora, um bullying nas melhores pessoas. Contaminadas pela moda, viram patrulhadoras das diferenças, num território livre para a inveja e o ódio. 

    Ódios sarcásticos e "espertos" ganham pontos como símbolo de status. As redes sociais podem dar vazão à tendência humana a se encarneirar e em transformar indivíduos em carneiros. 

    O pecado desse personagem foi ter sua intimidade exposta. Mas não era nada pessoal, just business, como diz outra comunidade homogênea, a máfia.