segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Voto-desalento


JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO) - O Estado de S.Paulo

A indicação de que cresceu a proporção de votos nulos nessas eleições propõe, mais uma vez, a questão da compreensão do significado do antivoto ou do abandono do título eleitoral para expressar omissão e desinteresse político por uma eleição. Essas variantes do desalento político do eleitorado constituem, provavelmente, a mais interessante revelação da manifestação eleitoral recente, até mais que o rearranjo de posições partidárias que a votação válida indicou. O cansaço do eleitor está indicando, em suas diferentes formas de manifestação, o declínio do homem político e da própria política.
Abstenção, voto em branco e voto nulo parecem indicar uma gradação do desalento dos eleitores, começando daqueles que recusam desde a eleição propriamente dita, passando pelos que recusam os candidatos e partidos disponíveis e chegando àqueles que não só não se identificam com as alternativas oferecidas como se punem, anulando-se como eleitores ao anularem seu voto. Aqui, não é a recusa da cidadania nem a recusa de partidos e candidatos: é a recusa da política propriamente dita através de um gesto que será interpretado corretamente se interpretado como gesto político dos que não encontram abrigo nos canais partidários de expressão política.
É evidente que no interior da categoria dos aproximadamente 15% que se abstiveram nos colégios eleitorais mais importantes do País há desde os que, por idade, estão liberados de comparecer às urnas, como se diz, até os que, tendo mudado de município de residência, não providenciaram a mudança do domicílio eleitoral. Nos dois casos o eleitor preserva seus direitos eleitorais, embora não os exerça. Pode mudar de ideia e votar, como pode, se quiser, providenciar a transferência do título em tempo hábil, processo simples e fácil. Portanto, quem anula o voto não está distante dos que votam em branco nem propriamente discrepa dos que se abstêm.
O voto em branco é um voto cidadão e é por isso voto válido. O eleitor cumpre seu dever, mas nega seu voto aos candidatos disponíveis. O voto nulo já é mais complicado e nem por isso deixa de ser legítima manifestação do eleitor, ainda que deplorável porque expressa uma vontade política que não se materializa em nenhuma mensagem compreensível. O caso recente de sucedâneo do voto nulo foi o da acachapante votação do palhaço Tiririca, que se ofereceu explicitamente como candidato do deboche a deputado federal e foi eleito: "Vote em Tiririca que pior não fica". O eleitorado enviou à Câmara dos Deputados um representante que relembraria a seus pares, diariamente, o que deles pensa o eleitor.
Mesmo submetido à assepsia limitante da urna eletrônica, que impede os insultos e palavrões, o voto nulo é uma luz que fica muito mais vermelha numa eleição como essa se o somarmos aos votos em branco e às abstenções. Na cidade de São Paulo, os eleitores desalentados, 2.490.513, superaram em muito os dois primeiros colocados da votação válida: José Serra (PSDB) teve 1.884.849 votos e Fernando Haddad (PT) teve 1.776.317 votos. No Rio de Janeiro, a vitória em primeiro turno de Eduardo Paes (PMDB/PT), com 64,6% dos votos válidos, fica muito menos significativa se levarmos em conta que o segundo colocado foi o eleitor desalentado, que não votou em ninguém: 1.472.537 eleitores, uma vez e meia votação do colocado seguinte, Marcelo Freixo, do PSOL. Em Belo Horizonte, o fenômeno se repetiu. Márcio Lacerda (PSB/PSDB) teve 676.215 votos e foi eleito com 52,6% da votação válida. Patrus Ananias, do PT, teve 523.645 votos, enquanto os eleitores desalentados foram 576.673, segundo colocados. Em Recife houve um fenômeno parecido. Geraldo Julio, do PSB, foi eleito em primeiro turno com 51,1% dos votos. Mas o segundo colocado, Daniel Coelho, do PSDB (245.120 votos) e Humberto Costa, do PT (154.460 votos), tiveram individualmente menos votos do que o número de eleitores desalentados, 283.279, que nesse caso ficaram em segundo lugar. Em Salvador, os desalentados foram 589.437 eleitores, mais numerosos que os votos do primeiro colocado, ACM Neto, do DEM, que teve 518.976 votos, e Pelegrino, do PSB/PCdoB, com 513.350 votos. O mesmo fenômeno ocorreu em Fortaleza, onde Elmano, do PT, teve 318.262 votos, Roberto Cláudio, do PTB, teve 291.740 votos e Moroni, do DEM, teve 172.002 votos. Ali os eleitores desalentados foram 361.211, bem mais do que o primeiro colocado. Em Porto Alegre, em que Fortunati, do PDT, foi eleito em primeiro turno com 517.969 votos, a segunda colocada, Manuela d'Avila, do PCdoB, teve os votos equivalentes à metade dos eleitores desalentados, que somaram 282.048.
O fenômeno se repetiu, ou quase, em diversas outras capitais e em outros municípios emblemáticos. O que sugere uma crise da representação política e mesmo o declínio dos partidos. Uma parcela ponderável dos brasileiros está tendo seus direitos políticos cassados por falta de um sistema partidário que dê efetivamente conta do que a representação política deveria ser.

Rendição pragmática


ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, AUTOR DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
O segundo turno das eleições paulistanas retoma o dramalhão dos Montecchios contra os Capuletos, sem casal inocente para ser lamentado. PT e PSDB têm origens próximas e fontes comuns de pensamento. Ambos surgem como alternativas de esquerda ao "socialismo real", seus programas pretendem mudar as formas capitalistas no âmbito e limites do Estado democrático. Os dois partidos foram e são próximos da social-democracia europeia, com variantes próprias à cultura política brasileira.
O PT retoma três paradigmas de sociedade e de Estado. O primeiro é a doutrina clássica do poder político que deve ser colhido eleitoralmente. Mas para a representação marxista radical o Estado é ilegítimo, mesmo com eleições e demais ritos burgueses. Representantes dessas tendências estão no PT. Existem também os trotskistas, que postulam a luta revolucionária no plano internacional. Daí sua suspeita contra o PT e o sindicalismo nacionalista que o inspira. Alguns remanescentes da Quarta Internacional desconfiam de Lula: ele seria um líder pré-fabricado (José Nêumanne Pinto esclarece o tema em O que Sei de Lula). Os herdeiros de Trotski representam setores críticos contra os dirigentes partidários. PSTU e PSOL formalizam expulsões ou rupturas com o partido. Mas não poucos trotskistas, a exemplo de Palocci, se acomodam à burocracia partidária. Tal fusão heteróclita é relevante na construção do poder interno do petismo.
Também na origem do PT estão as formas da cultura católica de esquerda. Boa parte desse setor se forma nos anos 1960, quando a Igreja modifica seus elos com a sociedade capitalista nas encíclicas sociais e no Vaticano 2, sobretudo a declaração conciliar Gaudium et Spes. Nos inícios daquela década surge a Ação Popular (AP), inspirada nas ideias de Teilhard de Chardin e de Hegel, lidos pelo jesuíta Henrique Vaz. Ela opera com as ações juvenis católicas especializadas (JEC, JUC, JOC). A máxima expansão do movimento dá-se antes de 1964, quando a presidência da UNE é conquistada por José Serra. Após o golpe a Ação Católica sofre uma "intervenção branca" da CNBB e a AP perde seu elemento de mobilização política. Após o Congresso da UNE em Ibiúna, e com as guerrilhas, a AP deixa de ser estratégica para os religiosos. Com seu desaparecimento os católicos não estabelecem partido próprio, anseio que vem desde o Império. Os militantes e intelectuais cristãos encontraram no PT a oportunidade de agir num coletivo político não comunista e livre da Igreja, que na época sofre o Termidor dirigido por João Paulo II.
O PT é uma bricolagem de segmentos diferentes, um campo de lutas interno e externo. O equilíbrio de vários modelos, desejos, paixões, idiossincrasias, é nele muito difícil. A luta entre tendências conduz a direção ao uso do segredo contra as bases, aos atos impostos verticalmente, às alianças alheias ao espectro ideológico indicado no programa. O PT foi produzido como alternativa política para setores da esquerda, dos antigos comunistas aos católicos. Conduzir um programa unitário com tantas divergências doutrinárias e imaginários distintos é um desafio.
O PSDB teve sua origem no PMDB e foi liderado por setores políticos da esquerda marxista, mas também acolhendo intelectuais católicos de origem (caso de José Serra) e acadêmicos cuja produção teórica se desenvolveu fora dos parâmetros filosóficos do chamado "materialismo histórico e dialético". Já na ditadura civil-militar foi instaurado o Cebrap, think tank que até hoje possui relativa força na orientação programática tucana. Espécie de laboratório social e universitário, ele gera ideias, táticas e estratégias do partido. Sua figura maior é Fernando Henrique Cardoso, político hábil e pesquisador com ideias próprias. Sua colaboração para a "teoria da dependência"o tornou conhecido nacional e internacionalmente, dando-lhe credenciais para a carreira de governante.
Os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica do conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da "arte do possível" (o termo é de Bismark). Nas alianças pela "governabilidade", as duas agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas anteriores, de esquerda ou centro-esquerda. Oligarcas notórios (ACM, Sarney, Jader Barbalho, Quércia, Maluf, para citar apenas alguns) serviram aos dois partidos e deles se serviram ao longo dos 16 anos de administração tucano-petista. Ficam os eleitores paulistanos com a tarefa de fornecer alento suplementar para as duas siglas. Essas, em nome do poder, desfiguraram suas propostas originais para a sociedade. Esperemos que, depois do aperto sofrido por ambas, elas repensem táticas e estratégias, tornando-se menos dependentes das raposas que ainda dominam a política nacional e paulista.

A lógica do conflito urbano


LAURINDO DIAS MINHOTO É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP - O Estado de S.Paulo
LAURINDO DIAS MINHOTO
O funcionamento das polícias no Brasil caracteriza-se por um acentuado viés militar, vinculado a um arranjo constitucional esdrúxulo que legaliza a militarização da função civil de segurança pública no país. A própria organização das forças policiais constitui uma espécie de claro-escuro jurídico-institucional, em que se encontram baralhadas as dimensões civil e militar da segurança.
Em outro nível, sabe-se também que a prática policial brasileira tem sido marcada por uma perversa "divisão do tempo de trabalho", em cujos termos alguns agentes alternam entre o plantão e o bico, as ações judiciais e as extrajudiciais, o serviço público e os serviços privados, mimetizando, em outro plano e a seu modo, a porosidade e o hibridismo do arranjo institucional e reforçando a zona cinzenta do legal e do ilegal em que muitas vezes se movem nossas polícias.
Esse desenho institucional civil-militar e essas práticas policiais legais/ilegais parecem o resultado de um padrão autoritário de gestão de conflitos que historicamente caracteriza o controle social à brasileira. Numa sociedade de enclaves, caracterizada por uma arquitetura urbana de secessão, por um Estado permeável a interesses particularistas e por desigualdades muito expressivas, a gestão política de conflitos entre nós tem privilegiado a militarização da segurança pública, o uso arbitrário da força policial e as operações de guerra interna travadas nas inúmeras zonas de não direito de nossa sociedade.
Em suas incursões contra "territórios inimigos", as forças policiais gozam de ampla margem de manobra para instituir, desmontar e reconfigurar fronteiras: entre o cidadão e o subcidadão, o crime e o trabalho precário, o público e o privado, especialmente nas zonas urbanas de intersecção entre os enclaves fortificados do andar de cima e os enclaves - também muitas vezes fortificados - do andar de baixo.
No entanto, o que poderia ser visto como mais uma "sobrevivência arcaica" em país de modernização incompleta - algo que deita raízes em nosso passado escravista e no "código do sertão" a ele associado -, apresenta-se hoje como fenômeno mais complexo: ao mesmo tempo o laboratório e a ponta de lança de um novíssimo urbanismo militar, que se alimenta justamente da geografia de enclaves fortificados, da guerra securitária interna e da militarização das funções civis de segurança pública e tende a se disseminar por algumas das principais cidades do capitalismo global.
O urbanismo militar contemporâneo consiste na colonização crescente do espaço urbano e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por práticas e discursos que têm no centro a noção de guerra. Dessa forma, questões e eventos da ordem do cotidiano das cidades são convertidos em assuntos de guerra, em questões militares. Uma visão de mundo militarizada vai se espraiando e se combinando de modo particular às racionalidades próprias de outras esferas da vida social, como a econômica, a política, a jurídica e assim por diante.
Nota-se no campo ideológico a ampliação a fórceps das noções de risco, insegurança e guerra (contra as drogas, o crime, o terror, etc.), que, no saco sem fundo da retórica de guerra permanente, legitima a suspensão de direitos e garantias fundamentais, a adoção de leis de emergência e mecanismos jurídicos de exceção, a "gentrificação" do espaço público e a conversão de locais públicos e manifestações populares em praças de guerra.
Dessa perspectiva, pode-se verificar a emergência de novas economias, políticas públicas e formas jurídicas da guerra, que articulam o militar e o urbano de diferentes maneiras. Fenômenos bastante conhecidos, e analisados de modo setorial em suas respectivas áreas de conhecimento, talvez pudessem ser reconsiderados à luz desse processo de militarização. Destacam-se aqui:
O capitalismo de choque, ou de desastre, movido à base de estratégias de acumulação por despossessão em que a incursão militar é decisiva para abertura e consolidação à força de novos mercados.
O planejamento urbano de perfil higienista, que se vale da edificação de cordões sanitários entre classes sociais e encontra no emprego do aparato militar um elemento estratégico ao patrulhamento de fronteiras e à segurança da circulação seletiva de bens, serviços, informações e pessoas.
O direito penal do inimigo e a política de encarceramento em massa, que normalizam procedimentos legais de exceção e buscam legitimação na retórica e nas práticas de defesa militar, convertendo ilícitos penais comuns em atos de guerra.
O emprego cotidiano da racionalidade da guerra e das forças militares na gestão das cidades do capitalismo global passa a ser decisivo, entre outros, para a geração e ampliação dos negócios. E também para: o desenvolvimento de novas tecnologias de controle; a articulação crescente entre indústria da guerra, do automobilismo e do entretenimento (vide fenômenos de venda como os SUV e os jogos bélicos de computador); a gestão do crime; a formulação e a execução do planejamento urbano; a manutenção da disciplina em ambiente escolar; a legitimação política das administrações das cidades (de que constituem capítulo notável as recentes eleições municipais brasileiras) e a organização de eventos esportivos mundiais (como a Copa e a Olimpíada).
Esse parece ser justamente o maior desafio para quem pretende se opor ao urbanismo militar dos dias de hoje: já não se trata apenas, mais uma vez, da importação de modelos dos países centrais; trata-se de um processo histórico que parece se alimentar de uma homologia crescente entre estruturas sociais, arranjos institucionais e formas de consciência que tem em seu centro o amálgama entre guerra, política e negócios e, nessa medida, tende a inscrever a racionalidade militar no cotidiano das nossas cidades para muito além dos limites geográficos dos espaços nacionais.