segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Torciam pra ela dar errado...


O Estado de S.Paulo
JOSÉ HAMILTON RIBEIRO
Era a segunda metade dos anos 60.
1. Loira oxigenada, gostosona, fogosa, seios enormes e bonitos (depois ela os desbastaria um pouco), expansiva quase ao exagero, rindo sempre, disponível - já logo disseram: ela tem programa na tevê porque dá pro diretor. Galinha.
2. Vacilando no português, usando gíria do povão, voltada ao mundo artístico e assim desligada da política, das notícias ditas "importantes", do que acontecia no mundo - mataram: loira burra!
3. Vinda de meio humilde (seu pai, violinista, mexia com circo e música caipira), despreparada, ingênua, aberta, espontânea, não teria armas para sobreviver num meio - a tevê - habitado por gente boa, mas também por bruxas e traíras, onde um não vacila na hora de empurrar o outro pro buraco a fim de tomar seu posto. Não vai durar!
Era esse o panorama em redor de Hebe Camargo, no ano de 69 (1969), quando a revista em que eu trabalhava - Realidade, antecessora da Veja - "pautou" a ideia de se fazer um perfil de Hebe. Seu programa na TV Record, então a grande emissora brasileira, com os instigantes festivais de música, era produzido por uma equipe de craques (chamavam-na internamente de Equipe A). No horário nobre, o programa atingia audiências quase inimagináveis nos dias de hoje. Literalmente, parava a cidade.
Previa-se que a história pessoal de Hebe na Realidade resultasse numa reportagem picante, uma sucessão de amantes e gaviões, envolvimento com homens por dinheiro, denúncia de tramas na diretoria e da influência até de políticos para que ela mantivesse sua posição na tevê.
Realidade era um ninho de feras. Alguns de seus repórteres mais famosos - Narciso Kalili, José Carlos Marão, Luís Fernando Mercadante, Carlos Azevedo, João Antônio, Eurico Andrade, Roberto Freire (este um perigoso mix de repórter com psiquiatra e psicanalista, que ele também era) - poderiam, se fosse o caso, transformar o perfil de Hebe numa sucessão de escândalos, amores de interesse, casamentos destruídos em busca do troféu (a loira gostosona), futricas e fofocas do mundo sempre efervescente, e às vezes perverso, da televisão.
Por questão de destino (como tinha acontecido antes, com minha ida para a Guerra do Vietnã), a "pauta" Hebe foi atribuída a mim. Não sabia nem como começar. Saí como um cachorro perdigueiro atrás de rastros e sinais, para ver de que maneira poderia confirmar - ou aumentar - o lado sombrio da vida de Hebe, que era o aspecto preferido da imprensa escrita, sempre (então mais ainda) preconceituosa com o povo da tevê.
Antes da reportagem, já tinha tido um contato com Hebe. Assim que cheguei da Guerra do Vietnã, no que foi uma surpresa para mim, passei uns dias "famoso". Quase todos os programas de entrevista me convidaram para falar da minha aventura como correspondente de guerra lá no fim do mundo.
O programa da Hebe foi o primeiro a me cercar. Eu tinha que ir, e ainda, me comprometer a não participar de nenhum outro programa naquela semana. O programa da Hebe na Record era assim: exigia ser o primeiro e ainda regulava a ida a outras tevês.
Alguns amigos me disseram:
- Não vá no programa da Hebe, é muito popularesco. E periga ela pedir pra você mostrar a perna mecânica, dizendo: "Mas que gracinha!..."
Fui com um pé atrás (o bom). A parafernália de um programa de tevê ao vivo - o da Hebe era ao vivo - é tão grande que só fui falar com a apresentadora já no palco, o programa já no ar. Não houve condição para vê-la antes, combinar alguma coisa. Foi tudo no "sufragrante".
Alguém ficou comigo ali no corredor esperando a hora e, quando Hebe disse que o programa já tinha recebido gente de todo tipo, mas nunca entrevistara um "herói de guerra" (tremi), a pessoa me empurrou para o palco e me vi diante daquele povão (no auditório), eu assustado e perdido.
- Com vocês, um herói: o repórter José Hamilton Ribeiro!
Eu não era nada daquilo. Herói é quem vai pra guerra defender seu país e lá se machuca, ou quem arrisca a vida para salvar outro. Eu era só um repórter, o fato de ter me ferido na guerra não me levava a nenhuma condição de herói ou coisa parecida. Pensei comigo: esta entrevista vai acabar mal...
Estava tenso e nervoso, no começo. À medida, porém, que as perguntas se sucediam, passei a sentir-me seguro e confiante. Aquela mulher - aquela bela mulher! - passava calor, passava carinho e a gente sentia que tudo nela era, ou parecia, verdadeiro: suas perguntas, sua reação espontânea, o modo como expressava o sentimento ali, da hora, os votos e as aleluias que desejava pra gente.
Enfim, a entrevista transcorreu de maneira agradável, senti-me tratado com dignidade e, toda vez que a espontaneidade dela levava a um assunto mais íntimo ou delicado, ainda assim Hebe o fazia com naturalidade e visível boa intenção.
Na semana que se seguiu ao programa da Hebe, em todo lugar que eu ia, faziam referência a ele: dava impressão de que a cidade toda tinha visto.
Uma reação diferente tive num programa de auditório, no Rio de Janeiro. Programa do tipo que tem uma pessoa (que não aparece na tevê) comandando o auditório:
- Agora bate palma!
- Agora grita, só grita.. Mais alto, mais alto!
- Agora grita e bate pé.
Enfim, um programa animado... O apresentador deixou para o fim esta pergunta:
- Zé Hamilton, você foi na guerra, saiu ferido, mas voltou e continua trabalhando. É difícil ser repórter de uma perna só?
Respondi (já tinha a resposta na ponta da língua):
- Bem, ser repórter com uma perna só é mais difícil do que com duas, mas é mais fácil do que com quatro...
Ter estado no programa da Hebe, como entrevistado, não ajudou muito na reportagem que eu devia fazer para a Realidade. Afinal, tudo ali fora público, e uma boa reportagem é justamente aquela que mostra coisas que os outros não viram.
Saí a campo, atrás de pessoas e fatos que ajudassem a contar aspectos da história (que eventualmente as pessoas não conheciam) daquela mulher de sucesso, que tanta inveja causava às mulheres (não a todas) e tanto desejo provocava nos homens. Procurei conhecidos, parentes, colegas e, principalmente, pessoas que não gostavam dela ou tinham alguma coisa grave a contar sobre ela, que eu pudesse confirmar.
Ó, andei e rolei quase um mês remoendo o assunto Hebe, procurando pelo em ovo.
Afinal, a reportagem foi publicada. Quem esperava uma história picante, cheia de traições e trocas de cama, esperou em vão.
Vista hoje, 43 anos depois, aquela peça precisaria de ajustes, aqui e ali. No seu conteúdo, porém, poderia ser mantida.
Hebe Camargo, aquela loira oxigenada, de seios enormes e bonitos, sorriso fácil e braços sempre abertos, era uma pessoa verdadeira, autêntica, espontânea, natural, com enorme capacidade de observação e apreensão dos fatos, dotada de inteligência fina e instintiva que fazia com que ela se destacasse no meio em que trabalhava e vivia. Um ser especial, iluminado.
Não disse, mas gostaria de ter dito: ela é a fada boa da televisão brasileira, será a sua rainha e brilhará perante as câmeras - contando apenas com seu talento e sua energia, que parecem inesgotáveis - até morrer de repente.
JOSÉ HAMILTON RIBEIRO É PAULISTA DE SANTA ROSA DO VITERBO. GANHADOR DE OITO PRÊMIOS ESSO E DONO DE UM DOS ESTILOS MAIS SABOROSOS DA IMPRENSA BRASILEIRA, AOS 77 ANOS É REPÓRTER ESPECIAL DO GLOBO RURAL, DA TV GLOBO.

Armas:O eclipse americano


Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos, diz sociólogo de Northeastern

29 de julho de 2012 | 3h 11
JULIANA SAYURI - O Estado de S.Paulo
Não era Gotham City. Era um cinema de Aurora, no subúrbio de Denver, no Estado norte-americano do Colorado. Em cartaz na sexta, dia 20, a estreia de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge. No lugar do Coringa encarnado por Jack Nicholson e Heath Ledger noutros tempos, um transtornado James Holmes, estudante de neurociência, doutorando na Universidade do Colorado. Disparos feitos, 12 mortos e 58 feridos. Mas a conta não fecha aí.
"Se fizermos o cálculo, o principal problema não são os massacres. É a violência pequena", diz Jack Levin, diretor do Brudnick Center on Violence & Conflict da Universidade Northeastern, de Boston. Para investigar os diferentes "gatilhos" dos serial killers, mass killers e criminosos "cotidianos", o sociólogo prefere mirar as questões a partir de uma grande angular, com estatísticas do FBI e pesquisas próprias sobre a mentalidade, o modus operandi e a realidade dos assassinos brutais.
Para Levin, a cultura das armas, o fenômeno copy cat e a frustração dos outsiders são os principais detonadores desse pesadelo americano. "Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos. É um eclipse da ideia de comunidade", critica o autor de Extreme Killing (2011) e The Violence of Hate (2010), entre outros 30 livros. A seguir, a entrevista de Jack Levin ao Aliás.
Como o sr. analisa o que aconteceu em
Aurora na semana passada?
É possível analisar massacres com estatísticas do próprio FBI. Sabemos que acontecem entre 20 e 25 massacres, com cerca de 200 vítimas, todos os anos nos EUA. Mas, certamente, esse número deve ser mantido em perspectiva, pois há mais de 15 mil vítimas de crimes isolados por ano nos EUA. Então, se fizermos as contas, o principal problema não são os massacres. É a violência pequena: a agressão doméstica, o assassinato de familiares, os crimes contra amigos e colegas de trabalho, os confrontos entre gangues de jovens e assim por diante. Além disso, apenas 16% dos massacres miram alvos aleatórios, isto é, atentados contra desconhecidos em lugares públicos como cinemas e clubes. A maioria é seletiva: os ataques visam a amigos e colegas de classe, quer dizer, conhecidos que os assassinos culpam por suas infelicidades na vida. O assassino quer se vingar e o faz pelas armas. Outro fator especialmente presente na cultura norte-americana é o fácil acesso a armas semiautomáticas. Isso esclarece parte, mas não todo o problema. Na maioria, os atiradores são solitários e socialmente isolados. Não têm a quem recorrer quando passam por momentos difíceis. Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos. Muitas pessoas estão dispostas a se mudar para lugares distantes milhares de quilômetros por um novo emprego, ou por um novo começo, ou por uma última chance. É um eclipse da ideia de comunidade.
Após o tiroteio, a venda de armas subiu 43% no Colorado.
Muitos americanos acreditam que a dimensão do massacre em Aurora poderia ser reduzida se uma pessoa da plateia do cinema portasse uma arma. Realmente duvido disso. A polícia chegou à cena do crime 60 segundos depois do ataque. E chegou 60 segundos tarde demais. No calor da hora, seria difícil diferenciar o assassino e as vítimas. Uma pessoa armada possivelmente poderia ter atirado na pessoa errada.
Nesse contexto, qual é o peso da cultura americana das armas?
Nos EUA, a maioria dos mass killers usa armas semiautomáticas. Reduzir a disponibilidade de armas de alta potência poderia reduzir a prevalência desses ataques body count. Mas é sempre possível usar outras armas. Em 1995, Timothy McVeigh plantou uma bomba num prédio federal de Oklahoma, tirando 168 vidas. Em 2001, os ataques terroristas com aviões em Nova York e Washington resultaram na morte de quase 3 mil pessoas - sem uso de armas portáteis. Quer dizer, a substituição é possível.
Atualmente assistimos a guerras civis, massacres e outros crimes violentos no
cotidiano. O que está acontecendo?
Não sei se a violência é parte da natureza humana ou se é parte da cultura da sociedade. A melhor resposta é: ambos. Ao mesmo tempo, há longos períodos na história marcados pela ausência de fortes conflitos e guerras. Além disso, a violência política não é encontrada no mundo inteiro. Do mesmo modo, certos países têm notavelmente mais massacres que outros. Isso indica que a cultura desses países certamente faz diferença. E recentemente o fator copy cat (imitação) se fortaleceu devido à atenção que a violência conquistou na mídia. O que antes atraía uma cobertura apenas local agora é nacionalmente (e internacionalmente) divulgado, dando a episódios isolados o poder de inspirar outros. O massacre de Columbine de 1999 inspirou muitos jovens a atirar em colegas de classe em vários países, inclusive no Brasil.
No Brasil, aliás, cidades como Rio e São Paulo estão vivendo uma onda de crimes.
Sim, mas o mass murder é bem diferente dos diversos homicídios "cotidianos", cometidos principalmente por jovens. É preciso notar que a taxa de homicídio varia especialmente de acordo com a pobreza de certas cidades, onde os jovens não têm esperança para o futuro. Se você olhar atentamente para as taxas de homicídio internacionais poderá ver que a maioria dos países pobres tende a ter os mais altos índices desses crimes. Muitos assassinatos "cotidianos" são homicídios culposos. Não são premeditados, mas acontecem no calor do momento. Esses homicidas não perpetram violência aleatoriamente. Por outro lado, os que se sentem outsiders na sociedade são mais propensos a descarregar seu ódio contra os outros.
Há diferenças entre serial e mass killers?
Os serial killers tendem a ser sociopatas, capazes de matar sem sentir nenhuma culpa, nenhum remorso moral. Já os mass killers padecem de uma psicopatologia provocada por uma situação terrível - quer dizer, por eles interpretada como terrível. Eles sentem que estão se vingando, fazendo justiça. O gatilho é quase sempre alguma perda catastrófica - do emprego, de um relacionamento importante, de uma posição acadêmica e assim por diante. Ao que parece, o atirador de Aurora foi expulso do programa de doutorado da Universidade do Colorado. Talvez isso tenha sido o gatilho. Porém, tanto serial killers quanto mass killers são motivados pela necessidade de se sentirem importantes, se tornarem celebridades, amadas ou odiadas. E a mídia não tem apenas o direito, mas a obrigação de informar as pessoas sobre esses ataques. Ao mesmo tempo, também deve ter muito cuidado para não dar atenção excessiva a esses crimes. Não devemos dar espaço a esses monstros nas revistas de celebridades, contando detalhes das vidas desses assassinos. Não podemos transformar os vilões em vítimas.

domingo, 14 de outubro de 2012

Retrofit faz casas dos Jardins trocarem arquitetura clássica por contemporânea


ADRIANA FERRAZ - O Estado de S.Paulo
Nada de restauro na fachada ou simples troca de acabamento. Nos Jardins, área nobre da zona sul, centenas de casas têm passado por uma verdadeira transformação. Aos poucos, quarteirões tombados pelo órgão estadual de patrimônio histórico adquirem novo visual - perdem espaço traços arquitetônicos clássicos e se multiplicam projetos de linhas contemporâneas, assinados por arquitetos de grife.
Modelos tipicamente europeus, delimitados por colunas, janelas viradas para a rua e jardins frontais, têm dado lugar a fachadas com linhas retas, grandes vãos, cores claras e uso frequente de vidro e madeira. As mudanças já começam a preocupar a Associação de Moradores dos Jardins (Ame Jardins), que aponta a existência de 3,5 mil imóveis nos quatro bairros. Desse total, 279 casarões sofreram intervenções nos últimos quatro anos.
Como a maior parte da região é tombada, alterações exigem aprovação do Conselho Estadual de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). O órgão impede divisão dos lotes, alterações no traçado urbano e corte de vegetação.
"É claro que os donos de imóveis têm direito de promover intervenções de acordo com a legislação, mas o alto número de reformas já nos preocupa", diz o diretor executivo da Ame Jardins, João Maradei.
Cuidados. Em sua opinião, a demanda por mudanças - ou pelo chamado retrofit - valoriza as novas construções, mas descaracteriza a região. "Nosso objetivo é preservar os Jardins e impedir sua desfiguração." Há duas preocupações principais: o respeito à vegetação e os transtornos provocados pelas obras. "Em alguns casos, o barulho invade a madrugada por causa da circulação de caminhões para carga e descarga. Em outros, tapumes tomam as calçadas, dificultando a passagem de pedestres."
Basta circular pelas ruas dos Jardins Europa, América, Paulista e Paulistano para notar a existência de vários tapumes envolvendo terrenos até a conclusão do serviço. O entra e sai de operários, engenheiros e arquitetos também tem alterado a rotina de moradores dos bairros. Em alguns quarteirões, há mais de uma obra em andamento.
Para a artista Roberta Britto, de 46 anos, o prazer de viver na região supera a dificuldade de qualquer exigência. Moradora do Jardim Paulista, ela iniciou uma reforma em 2010 e já trocou o piso, as janelas, o portão, construiu um jardim de inverno e subiu o muro. "Não é uma operação barata, mas está ficando com a minha cara. É maravilhoso morar nos Jardins e acompanhar essa mudança", diz.
Já a Prefeitura diz fiscalizar a execução das reformas de acordo com a planta apresentada pelo proprietário. A legislação municipal impõe a obrigatoriedade de alvará para imóveis com área construída igual ou maior a 1,5 mil metros quadrados.