quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Poderosos se protegem, e corrupção se alastra, Editorial FSP

 

A mulher do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), manteve contrato de R$ 129 milhões com um banco delinquente. O jornal O Globo noticiou que o magistrado teria conversado com o Banco Central sobre temas de interesse da instituição financeira e, pois, de sua esposa. Moraes nega.

Dias Toffoli, seu colega de tribunal, viajou em jato com o advogado de um diretor do mesmo banco para assistir a um jogo de futebol no Peru; depois assumiu e pôs sob sigilo o caso —fraude de R$ 50 bilhões, provavelmente a mais custosa da história do sistema financeiro nacional.

Com a anistia que o mesmo Toffoli decretou sobre confissões de suborno de empresas investigadas pela Lava Jato, foram derrubadas ações em que o Ministério Público cobrava mais de R$ 17 bilhões em multas.

O líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante, teve uma pilha de dinheiro vivo apreendida pela polícia. A catarata de recursos do contribuinte que jorra pelas emendas parlamentares dá ensejo a desmandos aos borbotões.

Quadrilhas se aboletaram no INSS para saquear aposentados sob as barbas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os nomes de um irmão e de um filho do mandatário circularam nas investigações do escândalo.

No Rio de Janeiro, há indícios crescentes da infiltração do crime organizado na política e nas instituições.

Em todos esses fatos recentes, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, está à espreita a corrupção —a mesma que um pacto de autoproteção entre poderosos quis varrer para debaixo do tapete da impunidade.

O objetivo, correto, de combater abusos da Lava Jato e congêneres levou a um mal maior —um estímulo à corrupção com uma redoma indevassável de impunidade. Nesse vale-tudo, petistas, bolsonaristas, centrão e elites das autoridades puseram-se de acordo.

O procurador-geral da República, exemplar nas denúncias de quem conspirou contra a democracia brasileira, não deveria ser menos enérgico quando atos e relações de ministros do Supremo Tribunal merecerem inquéritos. Ninguém, afinal, está acima da lei.

Congresso Nacional, foro constitucional do julgamento de altas autoridades da República, poderá exercer o seu papel com legitimidade desde que se livre do corporativismo que persegue a imunidade e a opacidade no manejo rapace do Orçamento.

Que não haja complacência com petistas e cupinchas de Lula pelo fato de amigos do presidente comandarem a Polícia Federal e vestirem togas no Supremo.

A ruptura do pacto da impunidade fará mal apenas aos corruptos. Prestará um serviço urgente ao cidadão que sustenta com o seu trabalho os agentes públicos e combaterá a deterioração da imagem do Estado brasileiro como território de vale-tudo.

editoriais@grupofolha.com.br

A bancada silenciosa do STF, Elio Gaspari, FSP

 A manifestação de cinco ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal favoráveis à criação de um código de conduta para os atuais ministros da corte foi um tiro certeiro contra a bancada que combate a ideia.

Estranha bancada. Manifesta-se com a capa ectoplásmica do off, pela qual sua opinião é divulgada, mas sua identidade é preservada. Foi assim que surgiu a notícia segundo a qual Fachin estaria isolado ao propor o código. Tudo bem, a maioria dos ministros pode não gostar da ideia, mas eles não põem a cara na vitrine. Salvo engano, a única resistência pública à ideia partiu do ministro Alexandre de Moraes, mesmo assim, numa fala de 2024:

"Acho que não há a mínima necessidade, porque os ministros do Supremo já se pautam pela conduta ética que a Constituição determina."

Dois homens vestidos com togas pretas conversam em ambiente interno com parede clara ao fundo. Um deles é calvo e olha para baixo, o outro tem cabelo grisalho e sorri levemente.
Os ministros do STF Edson Fachin e Alexandre de Moraes, durante posse de Fachin como presidente do tribunal - Pedro Ladeira - 29.set.2025/Folhapress

Entre os cinco ex-presidentes do STF que defendem a conveniência de um código de conduta (Rosa Weber, Celso de Mello, Ayres Britto, Marco Aurélio Mello e Carlos Velloso), nenhum celebrizou-se pela presença em farofas. Sinal de que essa vulnerabilidade é coisa recente, estimulada por arrogantes exageros. Primeiro naturalizou-se a conduta de viajar em jatinhos de empresários para assistir a partidas de futebol.

Em seguida, foi-se adiante, viajando com o advogado de um banqueiro quebrado. Onde vai parar essa liberalidade, ninguém sabe, porque, como diria Alexandre de Moraes, não há a mínima necessidade, pois a Constituição já tratou da "conduta ética" dos ministros.

A sucinta Constituição proposta pelo historiador Capistrano de Abreu dizia:

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Artigo 1º: Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário

A adoção de um código de conduta merece ser discutida às claras, com nomes e sobrenomes. Vilegiaturas, parentelas e ligações perigosas não podem ser preservadas no escurinho de Brasília. Nunca será demais repetir a lição de Louis Brandeis (1856-1941), da Suprema Corte dos Estados Unidos: "A luz do Sol é o melhor desinfetante".

O silêncio da bancada desconfortável com um código de conduta é o sinal mais gritante da sua conveniência, para não dizer necessidade. A imagem do Supremo passa por um lamentável processo de erosão. Houve tempo em que o Supremo era conhecido por suas decisões. Hoje, são mais frequentes as reportagens que tratam de condutas discutíveis.

Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia são defensores da adoção de um código de conduta. É provável que sejam acompanhados por outros três colegas. É certo que pelo menos três detestam a ideia de limitações às próprias condutas.

Fachin teve o cuidado de blindar-se levantando a possibilidade da inspiração no código da Corte Constitucional alemã. Não citou a corte americana. Pudera, desde que o grande Antonin Scalia deu-se às farofas, a corte desprezou o julgamento de suas condutas. O juiz Clarence Thomas tem uma mulher que pinta e borda. Isso para não mencionar que, desde 1991, quando ganhou a cadeira, raramente abriu a boca, mesmo nas reuniões secretas.

Fachin defende a necessidade de um código de conduta. Até agora, não apareceu um só argumento contra, mas a insatisfação é silenciosa.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Waldemar Magaldi - Espiritualidade funcional legitima desigualdades em nome da fé, FSP

 

Waldemar Magaldi Filho

Analista junguiano, mestre e doutor em ciências da religião e fundador do IJEP (Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa). Autor de "Dinheiro, Saúde e Sagrado"

São Paulo

[RESUMO] O texto analisa a ascensão da teologia da prosperidade como expressão de um deslocamento mais amplo da fé em direção à lógica do mercado. Ao transformar riqueza material em sinal de bênção e pobreza em falha espiritual, essa teologia submete o sagrado à gramática do desempenho, do cálculo e da recompensa. O antigo conceito bíblico de Mamon reaparece como símbolo desse processo, no qual o dinheiro deixa de ser meio e passa a ocupar o centro da experiência religiosa. O resultado é uma espiritualidade funcional, que oferece consolo individual, mas esvazia o mistério, enfraquece a crítica social e legitima desigualdades em nome da fé.

Em muitos templos pelo país, fiéis são convidados a subir ao púlpito para relatar conquistas materiais: a casa financiada, o carro novo, a empresa que prosperou "pela fé". Carteiras de trabalho, chaves de carro e contratos são ungidos em cultos transmitidos ao vivo. Pastores falam em "sementes", "investimentos" e "retornos". O vocabulário não é casual. Ele traduz uma teologia em que prosperidade material se tornou sinal de bênção divina, e a pobreza, indício de falha espiritual.

Esse deslocamento não surgiu do nada. Ele tem nome antigo. Mamon é um conceito quase arquetípico que atravessa a teologia ocidental desde que um carpinteiro da Galileia fez uma advertência radical: "Não podeis servir a Deus e a Mamon" (Mateus 6:24).

No aramaico, māmōnā significava riqueza ou propriedade. No discurso de Jesus, porém, o termo se personifica: deixa de ser coisa e se torna poder rival, uma soberania que exige lealdade exclusiva. Mamon não é o dinheiro no bolso, mas o dinheiro entronizado no coração.

Ilustração de uma mão feminina com unhas pintadas de vermelho, colocando uma moeda dourada em uma carteira vermelha aberta. O fundo da imagem é cinza escuro.
Autor reflete sobre como prosperidade passa a ser sinal de bênção; pobreza, de fracasso espiritual. - Catarina Pignato/Folhapress

Em um mundo secularizado, no qual grandes sistemas de crença perderam força, Mamon não apenas sobreviveu como prosperou. Sua manobra mais eficaz foi deixar de se apresentar como adversário da fé para tornar-se seu patrocinador.

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A infiltração de Mamon nas religiões contemporâneas se expressa de forma mais visível na chamada teologia da prosperidade, nascida nos Estados Unidos e hoje globalizada. Nela, a lógica tradicional do cristianismo sofre uma inversão decisiva: a riqueza passa a ser sinal inequívoco do favor divino, enquanto a pobreza é associada à falta de fé, ao pecado ou à maldição.

Deus é então reimaginado como uma espécie de sócio-investidor celestial, disposto a "derramar bênçãos" desde que o fiel demonstre confiança —quase sempre por meio de atos financeiros. A fé se materializa em doações, ofertas especiais e "votos de sacrifício", tratados como investimentos espirituais com promessa de retorno. Essa lógica não se limita ao neopentecostalismo: ela se infiltra em espiritualidades seculares, como a chamada Lei da Atração, que promete que o universo conspirará a favor de quem "vibrar na frequência da abundância".

As práticas que decorrem dessa visão são explícitas e ritualizadas. Campanhas financeiras estabelecem desafios de doação para "quebrar correntes da miséria". O léxico é importado do mundo dos negócios: fala-se em honrar a Deus com as primícias, devolver o dízimo para afastar o "espírito devorador" e destravar bênçãos "sem medida". O púlpito se converte em vitrine de sucesso material, e o testemunho de fé se mede por bens adquiridos.

Nesse modelo, a relação com o divino assume um caráter profundamente transacional. A oração se aproxima de uma ordem de compra; a bênção, de um dividendo esperado. A fé se organiza como um sistema de recompensas, com placar visível nos extratos bancários. É a gamificação da espiritualidade.

As consequências são profundas. A primeira é uma inversão ética. A cobiça, antes condenada, reaparece sob o nome de "visão de futuro" ou "fé ousada". A segunda é um individualismo espiritual radical, no qual salvação e bem-estar dependem exclusivamente da performance pessoal. O senso de comunidade e a responsabilidade coletiva se enfraquecem.

No plano social, a Teologia de Mamon oferece uma justificativa conveniente para a desigualdade. Se a riqueza é sinal de bênção, a pobreza se transforma em culpa individual. O sistema econômico deixa de ser questionado, e a vítima passa a ser responsabilizada por sua própria condição. Desmonta-se, assim, a base teológica da caridade, da justiça social e da compaixão, pilares históricos do cristianismo. O "amai-vos uns aos outros" cede lugar a um silencioso "enriquecei-vos por mérito".

O resultado é uma espiritualidade que anestesia. Ela promete consolo e ascensão individual, mas evita qualquer enfrentamento das estruturas que produzem a pobreza que diz combater. O sagrado se adapta sem atrito à lógica do capitalismo tardio.

Em suma, a Teologia de Mamon representa a rendição de parte do campo religioso à lógica do mercado. É o Bezerro de Ouro reconstruído em alta definição, com marketing digital e transmissão ao vivo. Mamon não exige altares de pedra, mas de vidro e aço: arranha-céus, shoppings, telas de smartphones. O impacto final é a erosão do mistério e a transformação do sagrado em mais um produto na prateleira da vida contemporânea.

O desafio para as religiões —e para os buscadores sinceros— não é exorcizar o dinheiro, mas destroná-lo. É reaprender a distinguir o que tem preço do que tem valor, antes que a cotação da alma humana despenque no pregão do esquecimento