quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A bela Belém é utopia de um visionário que não viu a COP30, Eliana Trindade, FSP

 Eliane Trindade

Belém (PA)

Se tivesse incluído em sua agenda uma visita a ícones arquitetônicos e parques de Belém, o chanceler alemão, Friedrich Merz, não teria ficado feliz de ir embora tão rapidamente da capital paraense, como declarou ao retornar da COP30.

Autoridades e turistas que se deram ao prazer de mergulhar na rica herança colonial e na beleza exuberante da natureza belenense certamente voltaram para casa com belas imagens da cidade-sede desta 30º Conferência do Clima das Nações Unidas, encerrada no domingo (22).

O chanceler alemão "não viu e não gostou" de marcos de uma Belém que ainda guarda o esplendor da Belle Époque e de um patrimônio histórico oriundo do ciclo da borracha.

Parte dessa riqueza arquitetônica foi restaurada graças a um gesto público visionário e polêmico, o arquiteto e urbanista Paulo Chaves. Falecido em março de 2021 aos 75 anos, ele infelizmente não viveu para ver uma de suas obras, o Hangar Centro de Convenções da Amazônia, se tornar palco principal de uma COP.

Pavilhões da conferência foram instalados sob a estrutura metálica de um antigo hangar de 1950, que restaurado ganharia então novo uso graças a Chavez, secretário de cultura do Pará ao longo de 20 anos, nos governos Almir Gabriel (1995-2003) e Simão Jatene (2003-2007 e 2015-2019).

Chaves deixou um legado de grandes construções e reformas de alguns dos principais cartões-postais da capital paraense. A começar pela Estação das Docas, o antigo porto de ferro resgatado para ser um complexo de gastronomia e cultura à beira do Guajará.

Theatro da Paz, de 1878, inspirado no Scala, de Milão. Com a plateia dividida de acordo com as classes sociais, o térreo é dedicado aos abastados que queriam ver e ser vistos e os andares superiores deixados para a plebe
Inspirado no Scala de Milão, o Theatro da Paz, de 1878, foi restaurante sob a batuta do arquiteto Paulo Chavez, então secretário da Cultura - Luíza Zaidan/Folhapress

Depois de séculos de costas para o rio, a cidade se voltou para a baía, transpondo para os trópicos o exemplo de Puerto Madero, em Buenos Aires. Novas docas foram reformadas pré-conferência. O Complexo Porto Futuro 2 passou a abrigar em seus galpões espaços culturais como o Museu das Amazônias, inaugurado em outubro.

A recuperação de parte da rica herança arquitetônica de Belém foi liderada pelo secretário que enfrentou resistências ao ser tachado de elitista por priorizar o restauro do centenário Theatro da Paz, por exemplo, um reduto operístico.

Inaugurado em 1878, no auge do Ciclo da Borracha, para refletir a prosperidade da elite da época, o teatro neoclássico viveu períodos de abandono, chegando a ter o teto do salão nobre desabado.

Sob a batuta de Chaves, renasceu também no depredado centro histórico o Complexo Feliz Lusitânia, que compreende a Igreja Santo Alexandre, o Forte do Presépio e a Casa das Onze Janelas.

Autoridades menos apressadas poderiam se deleitar a uma visita à residência colonial, tesouro da Belle Époque belenense, onde hoje funciona o badalado restaurante do chef Saulo Jennings.

Utopia não é a impossibilidade. É a transformação. É o que está te acenando do futuro como bússola.

Paulo Chaves

ex-secretário de Cultura do Pará

Chaves realizou outras obras de impacto como o Parque da Residência e o Espaço João José Liberto, polo joalheiro em um antigo convento.

Remodelada em 2002, a área conta espaços culturais como a Capela São José e o Museu de Gemas do Pará.Para Chaves, a restauração era um ato de futuro.

"Quem não sabe de onde vem, dificilmente sabe para onde vai," disse ele em entrevista em 2020.Além de mergulhar a fundo na história da Belém do Grã-Pará que tanto amava, o urbanista também idealizou projetos como o parque do Utinga e o Mangal das Garças, em sintonia com a natureza e a sustentabilidade, foco da conferência sobre o clima.

Inaugurado em 2005, o mangal sintetiza o ambiente amazônico no coração da capital paraense, com matas de várzea, animais e espécies de árvores nativas compondo um espaço onde natureza e arquitetura se complementam.

Na visão de Chaves, locais que seriam "uma aula de ecologia", essenciais para a educação das futuras gerações.

Vista aérea de parque com três lagoas conectadas por passarelas de madeira. Áreas gramadas cercam as lagoas, com bancos, pergolados e duas construções de palha. Caminhos de terra e vegetação densa delimitam o espaço.
Vista aérea do Parque Ecológico Mangal das Garças, que sintetiza o ambiente amazônico no coração de Belém - Maurício Mercer/Folhapress/Maurício Mercer/Folhapress

"Utopia não significa apenas o devaneio e a fantasia, embora tenha um componente disso, pois há que se ter um pouco de loucura para que as coisas aconteçam", declarou Chavez, em uma de suas últimas entrevistas ao jornal "O Liberal". "Mas a utopia não é a impossibilidade. É a transformação. É o que está te acenando do futuro como bússola."

Um futuro que se tornou presente no agito do Mercado São Brás durante a conferência internacional. Após anos de má conservação por parte do poder público, o antigo mercado que mescla elementos art nouveau e neoclássico foi revitalizado como parte do pacote de obras da COP.

Reaberta ao público em dezembro de 2024 como centro gastronômico e cultural, a construção projetada pelo engenheiro italiano Filinto Santoro ganhou lojas descoladas de comidinhas no estilo boteco, livrarias e galerias de arte.

Sofisticação que contrasta com os prédios modernos sem identidade inspirados em Dubai e Miami, também parte da nova paisagem urbana de uma capital paraense que destoa da utopia de Paulo Chaves.


Carta - Carlos Drummond de Andrade

 Há muito tempo, sim, não te escrevo.

Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelhecí: olha em relevo

estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:

são golpes, são espinhos, são lembranças

da vida a teu menino, que a sol-posto

perde a sabedoria das crianças.


A falta que me fazes não é tanto

à hora de dormir, quando dizias

"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.


É quando, ao despertar, revejo a um canto

a noite acumulada de meus dias,

e sinto que estou vivo, e que não sonho.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A prisão de Bolsonaro é um sintoma de um problema muito maior, Rodrigo da Silva, OESP

 Todos nós lemos essa notícia no final de semana. Bolsonaro foi detido preventivamente pela Polícia Federal após tentar destruir a própria tornozeleira eletrônica.

Ele se tornou o quarto ex-presidente brasileiro preso na última década – ao lado de Collor, Temer e Lula – e o décimo na história da República.

Brasil prende um presidente, atual ou ex, a cada 14 anos (embora 6 dos 10 membros dessa lista tenham encarado a prisão em contextos de golpe, estado de sítio ou ditadura).

Para você

Não dá para negar que nosso histórico democrático é ruim.

Só 6 presidentes brasileiros eleitos pelo voto nos últimos 100 anos completaram o mandato:

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Eurico Gaspar Dutra

Juscelino Kubitschek

Fernando Henrique Cardoso

Lula

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Dilma

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Bolsonaro

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Mas Dilma sofreu impeachment no segundo mandato, e Lula e Bolsonaro foram presos após a presidência. Eurico Gaspar Dutra foi ministro da Guerra de Getúlio Vargas e participou da operação que levou ao fechamento do Congresso e à implantação da ditadura do Estado Novo. E se não dá pra dizer que a emenda da reeleição foi um autogolpe, também não foi um gesto de grandeza republicana: FHC usou o prestígio do cargo para mudar a regra em benefício próprio, num processo marcado por escândalos.

E esse é o nosso dream team. Todos os demais presidentes brasileiros eleitos pelo voto foram derrubados, renunciaram sob pressão ou tiveram o mandato interrompido.

Na verdade, quando nós julgamos nossa história, quase a metade dos presidentes brasileiros sequer foram escolhidos pelo voto popular – alcançaram o poder de forma indireta, por imposição militar ou pelo Congresso.

Para piorar, até 1989, nenhuma eleição presidencial brasileira contou com a participação de mais de 20% da população. Pode não parecer, mas nós estamos no período mais longevo de normalidade democrática já experimentado no Brasil, com recordes de participação popular na escolha dos nossos representantes – e dos sete presidentes empossados desde a redemocratização, quatro foram presos e dois foram afastados do cargo por processos de impeachment.

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É um péssimo registro, mas coerente com o lugar do mundo onde nós vivemos. A história da América Latina é a história da instabilidade política.

Entre 1907 e 1966, nossa região experimentou 20 golpes de Estado – uma média de um a cada três anos. Se nós considerarmos só o período entre a segunda metade do século 20 e hoje, pelo menos 34 golpes de Estado foram realizados na região.

Só a Bolívia viu 13 tentativas de golpes de Estado no século 20. Desde a independência, o Brasil sobreviveu a 9.

Em menos de um século, a Argentina foi marcada por seis golpes militares: em 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976. Só em 1989, pela primeira vez em mais de seis décadas, um presidente civil argentino entregou o poder a um sucessor eleito.

E se as coisas melhoraram com o fim da Guerra Fria, a América Latina ainda viu 10 presidentes serem afastados pelo Congresso desde 1989.

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Nesse contexto, a prisão de Bolsonaro é um sintoma de um problema muito maior. Nós temos o hábito de eleger péssimas elites políticas, e sofremos duras consequências por causa disso.

Quando os economistas medem quantas vezes um país troca abruptamente de governo, eles percebem que isso cobra um preço bem alto no crescimento: se um país derruba governantes com frequência, cada troca está associada a uma queda de 2,4% de crescimento no PIB per capita.

Isso acontece, em parte, porque quando um país está preso a um clima de tensão – com greves, protestos e ameaças de golpe e impeachment –, quem tem dinheiro fica com medo do futuro, e com isso adia os investimentos, cancela projetos e manda o dinheiro para fora do país. A bagunça política vira bagunça econômica.

Uma parte importante de por que a América Latina cresce pouco é porque você não constrói refinaria, ferrovia ou rede de telecomunicação apostando num país onde cada governo novo ameaça reescrever as regras do governo antigo – ou cair na primeira crise política.

Com a instabilidade, o país passa a funcionar pior. Não é só que se investe menos em máquinas ou escolas. É que os contratos deixam de valer, e as reformas param no meio do caminho. Com isso, as empresas produzem menos, inovam menos e arriscam menos.

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E o impacto não fica preso ao presente. Alguns estudos mostram que, nos momentos de crise, muitas famílias tiram os filhos da escola para cortar gastos. Isso reduz as matrículas quando a crise começa, mas derruba a produtividade muito tempo depois que ela acaba.

Para piorar, como revelou o turco Dani Rodrik, professor de economia em Harvard, países politicamente polarizados e com instituições frágeis sofrem muito mais quando o resto do mundo piora. Não é inteligente viver em instabilidade.

Quando os partidos políticos são estáveis, o Judiciário funciona e as regras do jogo são respeitadas, um choque externo vira, no máximo, um período difícil: corta-se o gasto, ajusta-se o câmbio, o crescimento desacelera por alguns anos, mas com o tempo tudo volta ao normal.

Na América Latina, onde o sistema político vive quase sempre à beira do fim, o mesmo choque vira uma tragédia. O que poderia ser um ajuste temporário se transforma em calote de dívida, hiperinflação e colapso bancário. Qualquer vento contrário vira uma tempestade.

A literatura mostra que, se a América Latina tivesse a mesma estabilidade dos países desenvolvidos, poderia ter crescido algo como um ponto percentual a mais por ano nas últimas décadas.

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Pode parecer pouco, mas, em décadas, essa é a diferença entre um país de classe média baixa e um país de classe média.

Imagine que a renda média anual na América Latina fosse de US$ 10 mil por pessoa em 1980. Se essa renda cresce 2% ao ano, após 40 anos isso se transforma em US$ 22 mil. Com 3% ao ano, ela iria para perto de US$ 32 mil. Esse é o tamanho do estrago que a instabilidade política traz.

No fim, é isso que a prisão de Bolsonaro escancara. O nome mais popular da direita brasileira está atrás das grades. E este é só mais um capítulo de uma longa história de instabilidade institucional que atravessa fronteiras, séculos e regimes. Uma história que parece longe de acabar.

Foto do autor
Opinião por Rodrigo da Silva

É jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Em suas colunas, usa texto, vídeo, gráfico, mapa e fotografia para ajudar o público a entender os maiores eventos globais, com clareza e contexto.