quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Globo faz dança das cadeiras e transforma a cara de seus principais telejornais, FSP

 Guilherme Luis

São Paulo

Quem vê os telejornais da Globo vai se deparar com rostos novos e outros nem tanto nos programas desta sexta-feira. Com a saída de William Bonner do Jornal Nacional, anunciada no mês passado, o canal dá início à dança das cadeiras entre os âncoras dos seus principais jornalísticos.

As mudanças começam no Hora 1, o primeiro jornal do dia, exibido bem cedo, às 4h. Apresentado por Roberto Kovalick há seis anos, o programa será entregue agora ao jornalista Tiago Scheuer, que passa a a comandar a atração na sexta.

Kovalick, por sua vez, vai começar a acordar mais tarde. Ele será o novo apresentador do Jornal Hoje, que passa na TV logo depois da hora do almoço, por volta de 13h25. Sai da bancada César Tralli, que, promovido, vai tomar o lugar de Bonner no Jornal Nacional. Essa última passagem de bastão, a mais simbólica das três, acontece na sexta, e Tralli assume o telejornal do horário nobre na próxima segunda.

Retrato dos jornalistas Roberto Kovalick e Tiago Scheuer na sede da TV Globo de São Paulo - Bob Paulino/Divulgação

O remelexo na programação da Globo, que por 29 anos manteve Bonner à frente do símbolo máximo de seu jornalismo, deve causar um misto de estranhamento e curiosidade nos telespectadores. Afinal, para além do "boa noite" que Bonner deixa de dar todos os dias, mudam também os "bons dias" e "boas tardes" de costume.

As alterações devem respingar no caráter de cada programa. Nas mãos de Tralli há quatro anos, o Jornal Hoje, por exemplo, ganhou uma abordagem mais opinativa em relação ao passado —o programa, nascido em 1971, já foi apresentado por Sandra AnnenbergLéo Batista e Pedro Bial.

Tralli ficou célebre pelos comentários críticos, cobrando atenção das autoridades —numa espécie de versão nacional do que já fazia no SPTV.

Kovalick diz que não vai emular o colega, mas que sabe da importância de se colar ao público. Boa parte da audiência do Jornal Hoje é formada por donas e donos de casa, geralmente pessoas mais velhas que não trabalham e têm tempo livre à tarde. "Na hora de apresentar, imagino que estou à mesa do almoço com aquelas pessoas para contar novidades", diz Kovalick, que tem um perfil mais sóbrio e técnico do que Tralli.

A imagem mostra dois homens sorrindo, posando juntos. O homem à esquerda está usando um terno escuro com uma gravata listrada e uma camisa branca. O homem à direita está vestido com um terno escuro e uma gravata com padrão. Ambos têm cabelos curtos e estão em um ambiente com fundo de madeira. Eles parecem estar em um evento formal.
Os jornalistas César Tralli e William Bonner - João Cotta/Divulgação

"Carisma é uma coisa que a gente não controla, mas é preciso ser espontâneo. As pessoas têm que nos reconhecer como pessoas que sofrem e percebem a dor alheia."

Aos 56 anos, Kovalick recebe agora seu maior cargo na Globo, mas, de certa forma, terá de volta um gostinho daquilo que fazia no começo da carreira. É que sem o peso de ter de comandar os bastidores do jornal —além de âncora, ele era editor-chefe do Hora 1—, Kovalick terá agora tempo para exercer as funções de um repórter.

Quando não estiver à frente das câmeras, então, o jornalista vai sacar o celular para fazer ligações aos contatos valiosos que ele acumulou ao longo dos mais de 30 anos na Globo —"pretendo trazer informações que eu sou capaz de apurar porque as pessoas gostam de falar com quem aparece na televisão". No canal, Kovalick já foi correspondente em Tóquio, em Londres, e depois, no Brasil, virou repórter especial do Fantástico e do Jornal Nacional.

Tiago Scheuer, que assume o Hora 1, pegou dicas com Kovalick para se adaptar à rotina de dormir à tarde, embora ele próprio já tenha sido repórter da madrugada na Globo. O catarinense de 42 anos, que hoje trabalha no Bom Dia São Paulo, às 6h, vai agora entrar no ar duas horas mais cedo.

Scheuer chamou a atenção da alta cúpula da emissora por usar um tom leve e didático para apresentar a previsão do tempo no próprio Hora 1, jornal em que ele entrou meses depois da sua criação, em 2015. Scheuer havia se mudado de Santa Catarina para trabalhar na Globo de São Paulo quatro anos antes.

Para além da TV, Scheuer usou as redes sociais para ampliar sua popularidade. Com quase 500 mil seguidores no Instagram, mais que o dobro de Kovalick, ele mostra bastidores dos jornais com vídeos engraçadinhos, ensina receitas de sobremesas e publica fotos das suas muitas viagens.

"As pessoas adoram descobrir como se faz o trabalho que veem pronto na TV. É importante se manter ‘cronicamente online’", ele diz, citando um bordão criado na internet. "Assim você se conecta com o público também na tela que está nas mãos."

A promoção de Scheuer, Kovalick e Tralli culminam neste que é um momento histórico para o jornalismo da Globo. Bonner não sai completamente de cena —ele vai apresentar o Globo Repórter com Sandra Annenberg às sextas-feiras.

É tempo de renovação, mas nem tanto, diz Kovalick. "Tenho 35 anos de jornalismo. Quando comecei, me diziam que estávamos vivendo um momento de transformação. Mas a gente ainda vive isso. O jornalismo profissional ainda é, e deve continuar sendo, um farol no meio da neblina."

Marcos Augusto Gonçalves - 'O Agente Secreto' é Fellini no Recife, filme B e bom cinema, FSP

 Há muito o que falar sobre "O Agente Secreto", de Kléber Mendonça Filho, melhor diretor no festival de Cannes —que também premiou o ator Wagner Moura, protagonista da história. Falarei um pouco.

O filme não se concentra numa narrativa central, embora ela exista, mas cercada de outras situações e derivas, uma delas marcante, que nos acompanha como uma espécie de filme B dentro filme. É a história, em clima fantástico e popular, da Perna Cabeluda. Isso mesmo, uma perna que aparece na barriga de um tubarão, é cercada de mistério, roubada do Instituto Médico Legal e transformada pelo disse que disse do povo e pela imprensa num ser com vida própria, que faz aparições violentas em horas noturnas na cidade.

Quatro homens estão em pé em um ambiente externo, possivelmente em um parque ou praça. Eles estão vestidos de maneira casual, com um deles usando uma camisa azul clara e outro uma camisa marrom. O homem no centro parece estar sendo tocado na cabeça por um dos outros. Ao fundo, há uma estrutura grande e arredondada, que parece ser uma escultura ou um objeto decorativo. A iluminação é natural, sugerindo que é um dia ensolarado.
Cena do filme 'O Agente Secreto' com Wagner Moura, Igor de Araújo, Ítalo Martins e Robério Diógenes - Divulgação

A Perna Cabeluda é um desses mitos inflados por antigos jornais populares sensacionalistas. Em 1975, por exemplo, época do filme (que se passa em 1977) o Notícias Populares, de São Paulo, atraía leitores com a história do Bebê-Diabo.

O jornal diário, aliás, desempenha papel de destaque em "O Agente Secreto", não somente pela Perna Cabeluda, mas por servir como registro noticioso, precário que seja, de acontecimentos diretamente ligados à trama.

Dos filmes de ficção do diretor, este parece ser o que mais o aproxima, digamos assim, de um Fellini no Recife. O longa, a propósito, foi lançado depois de "Retratos Fantasmas", uma incursão memorialística pelos caminhos da presença do cinema na vida de sua cidade natal.

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Em "O Agente Secreto" temos um expressivo passeio pela paisagem humana, social e urbana daquele Recife de final dos anos 1970 —aspecto essencial ao filme. Mendonça não coloca dentaduras e tampouco aplica injeções emagrecedoras em seus personagens. Trata-os com um realismo felliniano, em que se combinam afeto, repulsa, humor e vida.

Sobre as relações com a ditadura, a história é mais oblíqua, por não tratar diretamente do núcleo militar, ressaltando a capilaridade do arbítrio policialesco, o ambiente de tensões e o lado empresarial, privado e estatal, do regime —estávamos sob Geisel, que aparece lá, no retrato oficial, pendurado na parede.

Kleber Mendonça Filho chamou a atenção de início com seu ótimo "O Som ao Redor", de 2012. Depois vieram "Aquarius", em 2016, e "Bacurau", em 2019. Gosto dos dois, mais de "Bacurau", que acabou embrulhado pelo clima de polarização da época, animado pelo fato de o diretor e sua estrela Sonia Braga terem usado ocasiões públicas proporcionadas pelo filme para divulgar o "Lula livre", liderado pelo PT.

Atacado por antipetistas e defendido pela esquerda, "Bacurau" foi predominantemente analisado no contexto de questões cinemanovistas e da resistência ao imperialismo americano. Para alguns reavivou o tema, para outros o retomou de maneira anacrônica. Não vejo assim. Diria que sua fabulação distópica da violência arbitrária evoca o cinema marginal e se aproxima mais do que vemos em operações policiais em favelas do Rio ou em situações em Gaza do que do velho imperialismo.

De todo modo, percebo (e gosto) de alguma coisa que me parece coxeante nos filmes de Kleber Mendonça. Talvez por isso tenha ficado siderado pela expressiva sequência de uma longa caminhada do personagem Alexandre (Carlos Francisco) pelas ruas da cidade.