terça-feira, 28 de outubro de 2025

Wilson Gomes - ‘Centrão’ é um rótulo que protege siglas FSP

 Diz-se há muito tempo que, no Brasil, não se governa sem o centrão. Que ele é fisiológico, chantagista, faminto por cargos e dinheiro. O que normalmente não se nota, porém, é que o mesmo jornalismo que o fustiga em reportagens, colunas e editoriais acaba lhe concedendo o benefício com que todo investigado sonha: proteção de identidade.

O leitor lê que "o Planalto precisa dos votos do centrão para aprovar matérias de interesse" ou que "integrantes do centrão admitem desacelerar o desembarque da gestão petista". Aprende que há ali um poder decisivo, mas mascarado por um rótulo genérico. Entende que "um cardeal do centrão" trama nos bastidores, mas sem saber se o religioso atende por PPUnião BrasilRepublicanosMDB ou até mesmo PSD. O grupo aparece como classe profissional, mas sem nome no crachá.

Levantei, ao longo de um mês, 51 menções ao centrão na Folha. Em 84% delas, centrão é apenas "o centrão", uma espécie de ente metafísico do fisiologismo, designado sem que se diga quais partidos nele se abrigam.

Mantém-se, assim, um enigma: nenhum eleitor votou em um partido chamado centrão, mas é ele quem ocupa o noticiário, sempre barganhando, chantageando, pressionando, quando não metido em corrupção. Governo, base de apoio, oposição, direita são categorias que o eleitor facilmente decompõe em siglas partidárias e nomes; mas, com o centrão, essa operação raramente se faz.

Aliás, por hábito ou comodidade, assimilamos de tal maneira a existência dessa nebulosa institucional que esquecemos que ela não tem equivalente direto em outras democracias —não à toa, "centrão" não tem tradução pronta. É, afinal, a nossa jabuticaba institucional.

E há, claro, a cereja da camuflagem: a elasticidade do rótulo. O PL já esteve dentro; agora parece que está fora. O PSD às vezes é centrão, às vezes é "centro". É uma conta conjunta em que os sócios entram e saem de acordo com as necessidades contábeis —e reputacionais— do momento.

A Ilustração de Ariel Severino mostra um homem obeso de terno azul e gravata listrada em verde e amarelo, deitado preguiçosamente em uma rede.  Sua cabeça não é visível, e o umbigo está à mostra porque um botão da camisa se abriu devido à pressão da barriga volumosa.  Do umbigo, brota um poste de localização com placas apontando em várias direções e em tons de verde e amarelo.  Há detalhe em linhas de movimento para realçar que o poste que sai do umbigo está girando de forma aleatória, a rede também ganha essas linhas de movimento.  A cena sugere inércia, confusão e acomodação. A figura simboliza o “centrão” — bloco político genérico e oportunista — representado como uma entidade sem rosto, relaxada e contraditória, que ocupa espaço e poder, mas sem identidade clara ou responsabilidade definida.
Ariel Severino/Folhapress

A lógica se revela ainda mais engenhosa quando há escândalo envolvendo um membro do centrão. Basta que a denúncia ganhe nome e sobrenome (geralmente os do acusado) e o centrão some na fumaça. O PP de Arthur Lira passa a ser apenas PP. O Republicanos responde como Republicanos. O União Brasil dá explicações em nome próprio. E pronto: o rótulo maligno, que a opinião pública tanto odeia, não aparece para contaminar a marca.

No dia seguinte, quando já estiver tudo resolvido —ou devidamente engavetado—, os mesmos PP, União Brasil, Republicanos, MDB e quem mais se pressupõe incluído no rótulo voltam ao abrigo do guarda-chuva do centrão. Agora, não como suspeitos em um caso específico, mas como necessidade pragmática da governabilidade. Quem se deu mal? O centrão, entidade sem CNPJ. Ora, o centrão pode ser o vilão do dia, mas não pagará no ajuste de contas eleitorais —pois, na urna, só aparecem partidos.

O ajuste de contas eleitoral, peça fundamental da democracia, exige que o eleitor saiba quem fez o quê, lembre disso na hora de votar e possa punir quem achar que merece. Mas, quando a cobertura diária fala em "centrão", em vez de partidos, ao criticar comportamentos, ela cria um inimigo público sem CNPJ. E ajuda a preservar exatamente aqueles que deveriam responder por suas ações.

Ao preferir um rótulo elástico a nomes e siglas, o jornalismo transforma vícios conhecidos em pecado sem pecadores. O centrão pode tudo —bloquear, liberar, cobrar pedágio—, mas nunca responde na urna porque não está nela. Já os partidos nomeados todos os dias, como PT ou PSDB (ontem), PL (hoje) e PSOL (amanhã), arcam sozinhos com o custo simbólico da política real.

Se a crítica cotidiana é dirigida ao rótulo —e não às siglas—, o rótulo absorve o dano e as siglas seguem ilesas. É como tentar culpar o "crime organizado" sem citar nenhuma facção. Tudo fica mais fácil de narrar —e muito mais difícil de responsabilizar.

Talvez seja pedir muito que, no debate público, se deixe de oferecer camuflagem justamente ao conjunto de partidos políticos que se considera a quintessência do clientelismo e do patrimonialismo que as pessoas dizem detestar na vida pública. Mas não parece exagero pedir que, pelo menos, o jornalismo, sempre atento ao poder dos outros, desconfie um pouco mais do poder que sua linguagem dá aos de sempre.

Se o centrão manda tanto quanto dizem, o mínimo que a democracia pode exigir é que todos os partidos políticos sejam tratados singularmente, sem oferecer a um punhado deles um rótulo genérico com o qual se protegem dos eleitores nas urnas.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Com banco de 5 mil cérebros, USP tem maior acervo da América Latina; veja como é a doação, OESP

 O que banco da USP com mais de 5 mil cérebros revela sobre os casos de demência no Brasil

Capa do video - O que banco da USP com mais de 5 mil cérebros revela sobre os casos de demência no Brasil

Crédito: Fabiana Cambricoli, Taba Benedicto e Bruno Nogueirão | Estadão

Para estudar melhor as causas e características das demências no País, pesquisadores do Biobanco para Estudos do Envelhecimento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) construíram, ao longo de 21 anos, um acervo com mais de 5 mil cérebros de brasileiros. Mas o trabalho no maior banco do tipo da América Latina vai muito além da análise de fragmentos cerebrais em busca de sinais de doenças neurodegenerativas.

PUBLICIDADE

O processo começa ainda no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), ligado à FMUSP, para onde são encaminhadas todas as pessoas que morreram na cidade de causas naturais, mas que não tiveram o motivo exato do óbito determinado por um médico. Esse trabalho fica sob a responsabilidade dos patologistas do SVOC, que realizam a autópsia.

É nesse momento que começa o trabalho do Biobanco. Duas entrevistadoras do laboratório, treinadas para a situação, atuam de segunda a sexta no SVOC na abordagem de familiares. Elas consultam os parentes de falecidos com mais de 18 anos sobre a disposição da família em doar o cérebro do ente querido para pesquisa.

A abordagem é feita numa sala privativa e de forma cuidadosa diante do momento delicado. Caso a família aceite, ela assina um termo de consentimento e passa por uma entrevista de cerca de uma hora sobre a saúde do familiar falecido.

Publicidade

“A gente explica o que é o banco de cérebros e, se aceitam participar, respondem um questionário extenso com perguntas sobre as doenças que o familiar tinha, sintomas cognitivos e neuropsiquiátricos. Esse questionário tem que ser respondido por um familiar que conhecia muito bem a pessoa que faleceu. Nosso critério é que a pessoa tenha convivido pelo menos uma vez por semana durante os seis meses anteriores ao óbito”, explica a geriatra Claudia Suemoto, diretora do banco de cérebros e professora da FMUSP.

De acordo com Claudia, cerca de 60% das famílias abordadas aceitam fazer a doação. Já em outros bancos de cérebro ao redor do mundo, a taxa de aceitação fica entre 20% e 30%, segundo Renata Leite, coordenadora do Biobanco. “O brasileiro é muito solidário, então, quando a gente explica que a doação pode ajudar outras pessoas, a maioria das famílias aceita”, diz ela. “O processo não altera em nada o tempo de autópsia, nem a forma como o corpo é entregue de volta para a família, para o velório.”

imagem newsletter
newsletter
Saúde & Bem-Estar
Inspire-se com notícias sobre cuidados e qualidade de vida, às segundas e quintas.
Ao se cadastrar nas newsletters, você concorda com os Termos de Uso e Política de Privacidade.

A generosidade mesmo em um momento de dor permite que a FMUSP tenha hoje um dos biobancos mais diversos do mundo. Isso porque, em bancos de cérebros da Europa e dos Estados Unidos, onde estão os maiores acervos, a maioria dos encéfalos é de idosos já diagnosticados com demência, o que reduz as possibilidades de comparação com cérebros saudáveis. Também há um predomínio de indivíduos brancos e com alta escolaridade.

“Aqui, a maior parte são pessoas que morreram sem perda cognitiva, o que é uma baita plataforma para estudar envelhecimento. Quanto à escolaridade, a média no nosso acervo é de quatro anos de estudo, contra 12 anos nos países de alta renda. E temos 31% de pessoas pretas ou pardas. É importante para estudar o cenário da demência na nossa região”, explica Claudia.

Publicidade

Essa diversidade permitiu aos pesquisadores do biobanco descobrirem, por exemplo, que a demência vascular, que tem causas preveníveis, é mais prevalente na população brasileira do que em países de alta renda. Também levou a estudo que mostrou que mesmo poucos anos de estudo já conferem alguma proteção contra demência em comparação a pessoas analfabetas (leia aqui mais detalhes sobre essa e outras descobertas do grupo).

“Outro diferencial daqui é que temos uma autópsia completa do indivíduo. Não é só o cérebro que a gente vai examinar, porque, para determinar a causa do óbito, o patologista do SVO olhou todos os órgãos e a gente usa essas informações do laudo, o que permite um estudo mais completo”, diz Claudia. Os cientistas também coletam uma amostra de sangue da pessoa morta para análises genéticas.

Uma das pesquisas já desenvolvidas correlacionou, por exemplo, problemas no sistema cardiovascular a alterações cerebrais. As descobertas são compartilhadas com a comunidade científica internacional. Além disso, uma parte das pesquisas é feita em parceria com institutos e universidades dos Estados Unidos e da Europa.

O Biobanco da USP disponibiliza, ainda, amostras para outros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, desenvolverem seus próprios estudos. “Tem um cadastro universal em que as pessoas, os cientistas, conseguem pesquisar onde tem determinado tecido para realizar uma pesquisa”, afirma Renata. “Nós somos encontrados, muitas vezes, por esse cadastro ou pelos artigos que nós publicamos. Eles se interessam e entram em contato com a gente pedindo colaboração.”

Publicidade

Processamento e análise dos cérebros

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Após a coleta do órgão doado, os dois hemisférios cerebrais (direito e esquerdo) são separados. Um deles é cortado em 40 ou mais fragmentos e armazenado em um freezer para análises futuras. O outro hemisfério é fixado em formol por cerca de 15 dias e, depois desse período, tem partes cruciais retiradas e transformadas em lâminas para posterior análise dos médicos neuropatologistas.

Duas das partes mais importes analisadas são o hipocampo, área do cérebro responsável pela formação e consolidação de memórias, e a amígdala, região que atua no processamento de emoções e na conexão dessas emoções com memórias e aprendizados.

“Normalmente, em casos de Alzheimer, a amígdala é uma das primeiras afetadas, então ela normalmente fica atrofiada. Ela fica bem pequenininha, bem miúda”, explica a biomédica Jacqueline Nogueira Souza, técnica de macroscopia do biobanco, enquanto mostra ao Estadão a área em questão.

Após o trabalho de Jacqueline, os fragmentos de cada área do cérebro a ser estudada são fixados em parafina e, em seguida, cortados em lâminas de 5 micrômetros, uma espessura 20 vezes menor do que um fio de cabelo.

Publicidade

“A parte de classificação das demências é feita através de imuno-histoquímica, reações que, através de anticorpos, marcam proteínas específicas de cada doença”, explica Claudia.

Com as lâminas prontas, entra em campo o time de neuropatologistas para fazer a análise e classificar os casos. Dos mais de 5 mil cérebros coletados, cerca de 2,5 mil já tiveram a análise neuropatológica finalizada. O acervo do Biobanco tem hoje mais de 100 mil lâminas com fragmentos de cérebros.

“Quando a gente recebe as lâminas, consegue ver toda estrutura microscópica do cérebro, os neurônios. A gente consegue observar se tem uma quantidade de neurônios dentro daquilo que a gente esperaria, se dentro dele tem alguma coisa que sugira acúmulo de alguma proteína”, diz Vitor Ribeiro Paes, neuropatologista do banco de cérebros.

O especialista explica que é importante correlacionar o que é observado no microscópio com as informações fornecidas pelas famílias dos doadores sobre o histórico de saúde do paciente.

Publicidade

“A gente tem casos de pacientes mais velhos que têm depósitos proteicos mais avançados, mas o paciente não tem histórico de demência, não tem atrofia cerebral importante. E daí a importância da interação com os dados que a gente tem da família, com os dados clínicos, para tentarmos entender o que esse paciente tinha que pôde permitir a ele resistir a esses acúmulos proteicos e não ter aquela alteração da memória ou do comportamento que a gente esperaria”, diz o neuropatologista.

Ele explica ainda que essas análises podem contribuir para métodos diagnósticos futuros. “Quando os exames ficarem mais avançados, será que a gente não conseguiria diagnosticar esse paciente em fase mais precoce e, desses com o diagnóstico precoce, saber quem tem mais risco de evoluir para demência e quem provavelmente vai se manter com uma condição preservada?”, questiona Paes.

Como doar para o biobanco da USP?

Atualmente, o Biobanco só recebe doações de corpos que passaram pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Capital. É possível manifestar desejo de doação para a instituição ainda em vida somente em casos específicos, como o de personalidades com perfil de interesse da instituição para estudo.

Os boxeadores brasileiros Éder Jofre e Maguila, por exemplo, expuseram em vida a vontade de doar seus encéfalos. Os órgãos foram analisados após a morte dos lutadores, em 2022 e 2024, respectivamente, e permanecem armazenados no Biobanco para compreensão dos efeitos do esporte no cérebro e possíveis fatores protetivos.

Publicidade

Mesmo nesses casos, o biobanco não faz qualquer tratativa, análise ou questionário do doador em vida. Foram as famílias dos boxeadores que responderam às perguntas sobre seus estilos de vida, históricos de doenças e capacidades cognitivas. Além disso, autorizaram o acesso aos laudos médicos ao longo do desenvolvimento das doenças e documentação sobre número e frequência de lutas.