Em 2013, no seu auge, a Camargo Corrêa faturava quase R$ 20 bilhões por ano e empregava 65 mil pessoas. Era um dos maiores símbolos do capitalismo brasileiro, com presença nos setores mais diversificados - da construção ao vestuário, passando por energia e cimento. Então, veio a Operação Lava Jato, a crise financeira, e o império fundado por Sebastião Camargo em 1939 desmoronou.
No início deste mês, a Mover, nome atual da holding do grupo, fechou um acordo para a entrega de seus dois últimos grandes ativos para saldar dívidas de R$ 14 bilhões. No acordo, o grupo concordou em vender a participação de 15% na concessionária de infraestrutura Motiva (ex-CCR), considerada a joia da coroa, para pagar um dívida de mais de R$ 3 bilhões com o Bradesco. A cimenteira InterCement, que atua no Brasil e Argentina, por sua vez, será transferida aos grandes credores financeiros - Bradesco, um empresário argentino e detentores de títulos estrangeiros - para acabar com um débito de R$ 9,4 bilhões.

Com isso, a companhia fundada por Sebastião Camargo e outros dois sócios há 86 anos praticamente sai de cena, ficando com apenas uma empresa operacional - a incorporadora de imóveis para baixa renda HM Engenharia, que fatura menos de R$ 500 milhões por ano. Além da HM, fica também com metade do estaleiro EAS (que está desde 2020 em recuperação judicial); passivos e ativos da construtora (desativada); e com uma fazenda no Pantanal sul-mato-grossense. Mesmo assim, pessoas ligadas ao grupo comemoraram: ele sai do processo sem dívidas, sem litígios com credores e ainda com R$ 1 bilhão no caixa.
“Assim como diversas outras organizações empresariais brasileiras, o Grupo Mover enfrentou, nos últimos anos, um cenário adverso que combinou fatores como o desmonte da engenharia nacional, os efeitos nocivos de um custo Brasil extremamente elevado e uma política monetária que culminou com as maiores taxas básicas de juros dos últimos 20 anos. Em função desse contexto, e com o compromisso de honrar suas obrigações com seus stakeholders, o Grupo Mover optou por vender parte de seus ativos. Esse processo foi levado adiante até a eliminação de seu endividamento, que ocorrerá com a conclusão do recente processo de reestruturação de sua operação de cimentos”, afirmou a Mover, em nota ao Estadão.
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O que sobrou não é, nem de longe, sombra do que foi a companhia no auge, em 2013, quando tinha o controle de mais de 30 empresas no Brasil e exterior e uma receita líquida de R$ 19,2 bilhões. Estava presente em 20 Estados brasileiros e em 22 países. Fizeram parte de seu portfólio, como controlador ou acionista, nomes como Alpargatas, CPFL Energia, Santista, Alcoa, Usiminas, Banco Geral do Comércio e Itaúsa, além das cimenteiras Loma Negra e Cimpor e da CCR. O grupo deixa para trás uma marca na engenharia e na construção nacional, mas também uma imagem abalada por escândalos na execução de grandes obras públicas - investigados nas operações Castelo de Areia e Lava Jato.
Pressionada pelo endividamento crescente e em divergências sobre o pagamento dos passivos, a Camargo Corrêa, no ano passado, aceitou vender a cimenteira, um dos últimos ativos de grande porte, mas resistiu o quanto pôde a se desfazer das ações na Motiva, que via como uma fonte futura de dividendos aos acionistas da Mover. Não teve sucesso em ambos os casos. No final de 2024, sem opções, o grupo não viu outra saída que não o pedido de recuperação judicial, agora em seus trâmites finais de homologações legais.
“A saída de uma empresa tradicional do setor de infraestrutura é motivo de preocupação para todo o país. Companhias desse porte e trajetória constituem importantes ativos nacionais, pois geram empregos, estimulam o desenvolvimento regional, promovem inovação tecnológica e acumulam know-how fundamental para a execução de projetos complexos e estratégicos”, diz Humberto Rangel, diretor executivo do Sinicon (Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada - Infraestrutura).
O episódio, acrescenta o executivo, reforça a importância de um ambiente de negócios estável, com segurança jurídica, previsibilidade regulatória e políticas públicas que incentivem a permanência e o fortalecimento das empresas nacionais. “O Sinicon defende que o Brasil, que já teve 5% do mercado mundial de engenharia e construção e hoje tem menos de 1%, necessita de um setor de infraestrutura sólido, dinâmico e competitivo.”
A terceira geração de herdeiros da família dona do grupo Camargo Corrêa, que assumiu o comando em 2015 no lugar dos pais, tentou, mas não conseguiu, mesmo com o suporte de profissionais do mercado, estancar a crise financeira do conglomerado, que havia expandido nos cinco anos anteriores. De lá para cá, a situação só se agravou, ano a ano, levando a pique o conglomerado fundado pelo avô a partir de uma pequena empresa de obras rodoviárias que atuava no interior de São Paulo.
O ano de 2013 foi o último em que o grupo registrou lucro líquido consolidado. A partir daí, com a exceção de R$ 131 milhões em 2019, os resultados negativos foram constantes e crescentes nos balanços da companhia. O montante acumulado de prejuízos até 2023, último ano de publicação das demonstrações financeiras, foi de mais de R$ 12 bilhões.
Início com 200 contos de réis
A construtora Camargo Corrêa chegou a ser a segunda maior empreiteira de grandes obras públicas no País, atrás da Odebrecht e à frente de colossos como Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e outras que dominaram esse setor no País por décadas, a partir do fim dos anos de 1950. Foi a empresa por trás de grandes obras que se tornaram símbolos do “milagre brasileiro”, como hidrelétricas, aeroportos e metrôs.
A companhia foi criada como uma construtora, com investimento inicial de 200 contos de réis, em uma sala no centro da cidade de São Paulo. À frente do leme sempre estava a figura de Sebastião Camargo, nascido em Jaú, interior de São Paulo, em 1909 (o empresário morreu em 1994). Era um empreendedor nato, que começou a trabalhar ainda adolescente. Aos poucos, cresceu na atividade, mas começou a ganhar destaque mesmo com o início da construção de Brasília.
Naquela época, Camargo começou a transitar pelos bastidores da nova capital brasileira. Fez amizade com ministros e com presidentes da República, civis e militares, o que garantiu à sua construtora presença na maioria dos grandes projetos governamentais.
Um dos maiores exemplos disso foi a obra da hidrelétrica de Itaipu, um megaprojeto do Brasil e do Paraguai. A Camargo Corrêa ficou de fora do consórcio de empreiteiras montado para tocar o empreendimento, iniciado em 1974. Mas Sebastião Camargo recorreu às suas relações com o ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que governou o país por 35 anos, e daí um pedido especial chegou ao governo brasileiro para a Camargo compor o grupo de empreiteiras. Mais tarde, já no governo de João Batista Figueiredo (1979-1985), a empresa foi escolhida para a construção da hidrelétrica de Tucuruí.

A expansão da Camargo na área de engenharia e construção teve grande salto exatamente durante esse período do chamado “milagre econômico” brasileiro, nos anos 1970, quando o governo militar lançou uma série de grandes obras: Itaipu, aeroporto de Guarulhos e Ponte Rio-Niterói. As hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, no Rio Paraná, foram as primeiras grandes obras da Camargo Corrêa no País. Ao mesmo tempo, também começou a ganhar projeção em países da América do Sul e África.
Além da construção, esse império ficou mais robusto a partir do final dos anos 1960, com a diversificação de negócios, a começar pela fabricação de cimento. Sebastião Camargo descobriu, durante obras rodoviárias, que havia grandes jazidas de calcário na região de Apiaí (SP). Lá ele montou sua primeira cimenteira.

Depois veio a internacionalização na construção pesada, carro-chefe do grupo. A primeira grande obra fora do País foi a construção da hidrelétrica de Guri, na Venezuela, uma gigante de 10 GW, em 1986. No cimento, o primeiro grande passo fora do Brasil se deu em 2005, na Argentina, pagando US$ 1 bilhão pela icônica cimenteira Loma Negra.
Alguns anos mais tarde, a empresa fez uma grande aposta na Europa e na África. Em 2012, tornou-se a dona da portuguesa Cimpor, um negócio de cerca de € 3 bilhões — o que acabou elevando de forma acelerada o endividamento do grupo.
Castelo de Areia, Lava Jato e um grande negócio
Naquele momento, a Camargo Corrêa já havia passado por uma grande turbulência. Em 2009, a construtora do grupo tinha sido alvo da Operação Castelo de Areia, que investigava supostos crimes financeiros e lavagem de dinheiro em obras da linha 4 do Metrô de São Paulo e do Rodoanel, além de doações ilegais a sete partidos políticos. Um dos genros de Sebastião Camargo chegou a ser indiciado. A operação acabou sendo anulada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2011, com a invalidação das provas. Mas a imagem do grupo ficou arranhada.
Segundo relatos de pessoas próximas à empresa, à época, as herdeiras de Sebastião Camargo manifestaram o desejo de sair totalmente da atividade de construção pesada, em especial de obras públicas. Foi um sinal à terceira geração, que já galgava postos no grupo. Isso efetivamente viria a ocorrer mais à frente — mas por conta de uma outra investigação da Polícia Federal, sobre o pagamento de propinas em obras da Petrobras: a Operação Lava Jato.
A Lava Jato, iniciada em 2014, foi um divisor de águas no setor da construção pesada de obras públicas, por ter envolvido praticamente todas as grandes empreiteiras. De uma hora para a outra, as obras sumiram ou as empresas, envolvidas em atos de corrupção, foram impedidas de participar das licitações. Empresários e executivos foram presos e as construtoras tiveram de firmar acordos de leniência com as autoridades.
Cláudio Frischtak, economista e sócio da consultoria em infraestrutura Inter.B, porém, defende que a desorganização do setor de engenharia nacional não foi decorrência direta da operação Lava Jato. “É incorreto dizer isso. O fato é que a nossa legislação dificulta a separação entre o controlador/acionista e companhia em questão. O certo era o acionista ser afastado e a empresa continuar operando com todos seus ativos”, afirma.
As ações da empresa seriam colocadas numa “scrow” (conta intermediária, mantida por agente de custódia) e seriam usadas para indenizar os eventuais danos, afirma. “A legislação deveria permitir a separação para não penalizar as empresas. Para elas continuarem operando”. O problema reputacional, diz, é um crime do controlador e alguns gestores. “Todos teriam de ser afastados e definida nova estrutura de gestão e governança. Isso teria evitado a desintegração do setor que vimos”.
Dívida alta, faturamento baixo
Nesse período, as dívidas da Camargo Corrêa, que foi a primeira a firmar acordo de leniência, cresceram e o faturamento emagreceu. A primeira saída encontrada pela direção à época foi vender ativos para poder acalmar a situação com credores.
O setor nunca mais se reergueu ou voltou a ser o que era até 2014. A Camargo ainda tentou continuar na construção pesada até poucos anos atrás, mas teve de jogar a toalha por desmantelamento das equipes, processos judiciais no Brasil e exterior, dificuldades nas licitações e falta de capital. Desativou também a CCDI, incorporadora de imóveis de médio e alto padrão.
Após a venda de vários ativos em 2015 e 2016, levantando quase R$ 10 bilhões que foram usados para abater o endividamento, o grupo tentou mudar seu perfil. Procurou se tornar uma gestora de ativos, e não mais uma companhia operacional. A primeira inciativa foi mudar o nome da holding Camargo Corrêa S/A para Mover Participações, em 2018, também numa forma de minimizar a imagem arranhada pelos escândalos. Outra empresas do setor também adotaram a mesma linha: a Odebrecht, por exemplo, virou Novonor.
O problema é que a Mover ainda continuava dona de uma grande empresa, a InterCement, com operações de cimento e concreto em Portugal, África, Brasil, Paraguai e Argentina. Afogada em uma dívida enorme, com alto custo e em dólar, a empresa enfrentava em seu principal mercado, o brasileiro, uma crise de demanda histórica por conta da crise econômica do País. Em quatro anos, a contar de 2015, as vendas de cimento tiveram recuo de quase 30%.

De 2016 em diante, o faturamento do grupo ficou praticamente concentrado na cimenteira. O foco, a partir de 2017, foi a reestruturação da dívida financeira da InterCement. Para isso, foram vendidas as operações em Portugal e Cabo Verde, por US$ 800 milhões. Em 2017 ocorreu a abertura do capital da argentina Loma Negra em Nova York e Buenos Aires, que rendeu US$ 1,1 bilhão, com a colocação em bolsa de 48% do capital da empresa.
Esses movimentos garantiram fôlego para cinco anos. Em 2023, após insucesso em abrir o capital da InterCement Brasil em meados de 2021, o grupo teve de buscar outras soluções. A InterCement foi colocada à venda e o dono da CSN, Benjamin Steinbruch, quase a comprou em fevereiro de 2023. Segundo informação obtida pelo Estadão, Steinbruch se dispôs a pagar R$ 9,5 bilhões, incluindo os ativos da África, que foram vendidos separadamente, alguns meses depois, por R$ 1,12 bilhão.
Em julho deste ano, com dívidas de R$ 9,9 bilhões, a empresa chegou a um acordo de transferência de suas ações com os credores nacionais e estrangeiros, com a Mover saindo definitivamente do setor.
Sem o “China”, divergências entre herdeiros
Sebastião Camargo, que era conhecido como “China”, por sua aparência asiática, faleceu em 1994, aos 85 anos. O império erguido por ele ficou em mãos da esposa, Dirce, das três filhas - Regina, Rosana e Renata -, e dos três genros, que passaram a fazer a gestão junto com executivos que eram de confiança do fundador. Em 1996, ao se criar a holding Camargo Corrêa S/A, foi dado um passo relevante para profissionalizar o comando da companhia.
Nos anos seguintes, o grupo entrou em vários negócios e se desfez de outros tantos, os quais avaliou como fora do foco estratégico delineado pelos novos gestores e pela família: construção e engenharia, cimento, concessões de energia, vestuário e calçados e concessões de transporte.








