quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Bráulio Borges - O tamanho da herança maldita fiscal - FSP

 A Folha publicou uma reportagem no dia 21 passado com o seguinte título: "Fazenda estima que R$ 76,5 bi em despesas para 2026 são herança do governo Bolsonaro". Ela tem como base os cálculos de um estudo preparado pela Secretaria de Política Econômica (SPE). São cálculos parecidos com alguns que eu preparei e foram publicados no blog do Ibre no começo de setembro. A diferença é que eu fiz as contas olhando para o impacto em meados de 2025, ao passo que as contas da SPE correspondem ao impacto esperado em 2026. Eu também incluí o forte aumento das emendas parlamentares a partir de 2020.

Muitos analistas criticaram o ministro Fernando Haddad, dizendo que ele coloca toda a responsabilidade pelos resultados fiscais ainda deficitários nos governos anteriores ("herança maldita"), menosprezando o impacto de decisões tomadas pelo atual governo. Acho que a verdade está no meio do caminho.

Um homem com cabelo grisalho e um terno cinza está sentado, com a mão direita segurando o queixo, em uma expressão pensativa. O fundo é desfocado, com tons azuis.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad - Adriano Machado - 24.set.25/Reuters

Sim, parte relevante do aumento das despesas federais nos últimos dois anos e meio decorreu da chamada PEC da Transição, aprovada no final de 2022 e que reajustou os gastos do governo federal em cerca de R$ 170 bilhões. Foi um valor bem maior que os R$ 70 bilhões a R$ 100 bilhões necessários para acomodar o valor de R$ 600 do Bolsa Família (prometido por todos os candidatos à Presidência nas eleições de 2022) e para recompor algumas despesas discricionárias que estavam em níveis críticos.

Ademais, o próprio indexador das despesas do arcabouço fiscal introduzido a partir de 2024, com uma alta real de 2,5% ao ano (teto do intervalo), parece ser elevado para uma economia com crescimento potencial de cerca de 2% e 2,5% e que ainda possui déficit primário (quando precisaríamos de um superávit de pelo menos 1% a 1,5% do PIB todos os anos para estabilizar a relação entre a dívida pública e o PIB).

A despeito disso, o ministro Haddad tem razão em chamar a atenção para o impacto nada desprezível sobre as contas públicas, hoje, de decisões (ou a ausência delas) tomadas em governos anteriores.

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Em 2017, por exemplo, o governo federal perdeu a disputa envolvendo a chamada "tese do século", com o STF apontando a inconstitucionalidade do ICMS na base de incidência de PIS e Cofins. Isso geraria dois impactos sobre as contas públicas: uma redução das receitas recorrentes com PIS/Cofins e a materialização de um gigantesco passivo contingente ("esqueleto fiscal").

Qual foi a reação dos governos anteriores diante disso? Nenhuma. Vale notar que, até hoje, essa decisão vem impactando as contas públicas, subtraindo, nos meus cálculos, algo como 0,9% do PIB de arrecadação bruta via excesso de compensações tributárias. Esse impacto negativo somente deverá cessar entre 2026 e 2027.

Uma outra decisão, tomada pelo Congresso em 2020, me pareceu ainda mais grave. Foram aprovadas a prorrogação e um aumento dos valores dos repasses da União para o Fundeb, saindo de cerca de R$ 20 bilhões por ano entre 2011 e 2020 para quase R$ 70 bi entre 2021 e 2026 (valores a preços de hoje). Como era uma despesa que estava fora do teto de gastos anterior (EC 95/2016), o Congresso deveria ter apontado uma fonte de financiamento via receitas para esse aumento de despesas, de modo a não impactar o resultado fiscal. Mas isso não aconteceu.

Algo semelhante aconteceu no episódio da prorrogação e ampliação da desoneração da folha pelo Congresso, no final de 2023 (que mereceu uma coluna minha há alguns meses).

Como já argumentei antes neste espaço, a responsabilidade pelo equilíbrio das contas públicas não deve caber somente à União.

Manter a linha 10 sob operação da CPTM não seria retrocesso, Mauricio Portugal Ribeiro, FSP

 Nos últimos anos, a política de concessões transformou profundamente o transporte sobre trilhos em São Paulo. Linhas da CPTM e do Metrô migraram para a operação privada, em um movimento que promete investimentos, modernização e eficiência. O caminho parece consolidado: em breve, praticamente toda a rede estará sob gestão de concessionárias. Mas uma discussão ainda restrita aos bastidores do governo paulista lança uma pergunta incômoda: até que ponto é saudável o Estado renunciar a toda a sua capacidade operacional?

O debate gira em torno da Linha 10-Turquesa, que liga Brás a Rio Grande da Serra. Diferentemente de outras linhas já concedidas, técnicos defendem que ela permaneça sob gestão da CPTM, por meio de um contrato de desempenho entre a empresa e o governo estadual. A lógica é simples: se em algum momento uma concessionária desistir ou fracassar, o poder público terá de assumir a operação. Para tanto, precisa manter expertise interna –e isso só se garante com a experiência direta de operar e investir em linhas.

A imagem mostra uma grande multidão de pessoas em uma plataforma de trem, com muitos indivíduos alinhados e esperando. A plataforma é iluminada, destacando as pessoas que estão em pé, algumas com mochilas e outras com chapéus. Ao fundo, é possível ver os trilhos do trem e uma estrutura de concreto que forma a parede da estação. A cena transmite uma sensação de movimento e espera, típica de horários de pico em estações de transporte público.
Movimentação de passageiros nas plataformas 5 e 6, que atendem as linhas 7-Rubi e 10-Turquesa, na estação Barra Funda da CPTM. - (Foto: Rafaela Araújo/Folhapress) /Folhapress

A reflexão não é teórica. O estado do Rio de Janeiro vive hoje os desdobramentos do pedido de falência da Supervia. Há mais de um ano discute-se a retomada da concessão, e o desafio de montar estrutura técnica suficiente para substituir o operador privado. Tanto é que contratou a CPTM como consultora, justamente para suprir essa lacuna.

O paralelo argentino também assombra: as concessões ferroviárias dos anos 1990 colapsaram diante de acidentes e falta de investimentos, e o governo federal só conseguiu reassumir definitivamente as linhas em 2015, após anos de improviso e serviços precários.

A experiência inglesa reforça o alerta: depois da quebra de diferentes operadoras privadas, o governo precisou acionar a posição de "operador de última instância" para assumir linhas como a East Coast, a Northern e a Southeastern. A transição envolveu recompor equipes, integrar sistemas, renegociar contratos de manutenção e material rodante e lidar com a fragmentação institucional entre operação e infraestrutura –um processo lento e custoso, com melhora de desempenho apenas gradativa.

A questão central é a continuidade do serviço público. Concessões são instrumentos importantes de política pública, mas partem da premissa de que o Estado é o garantidor último da operação. Se todo o conhecimento técnico for delegado, quando houver crise ou abandono não haverá quem saiba conduzir trens, planejar escalas, gerir oficinas e manter a rede funcionando. Em outras palavras: sem musculatura interna, o Estado se torna refém das concessionárias.

Esse dilema ultrapassa o setor ferroviário. Em rodovias, energia elétrica, saneamento ou saúde, a pergunta é a mesma: caso a concessionária deixe o contrato, o poder concedente teria condições reais de assumir o serviço no dia seguinte? A resposta honesta, em muitos casos, é não. E isso coloca em risco o princípio fundamental que orienta qualquer concessão: a garantia da continuidade do serviço essencial.

A eventual decisão de manter a Linha 10 sob operação direta da CPTM, portanto, não seria um retrocesso. Pelo contrário: funcionaria como seguro institucional. Não se trata de enfraquecer o modelo de concessões, mas de equilibrá-lo. Preservar uma ilha de expertise pública pode ser o que fará a diferença no futuro, quando o imprevisível bater à porta.

São Paulo, pioneira nas concessões sobre trilhos, tem agora a chance de também inovar no desenho institucional: combinar a força do capital privado com a prudência de manter viva a capacidade operacional estatal. Antecipar-se a esse debate, antes que a crise estoure, pode ser o verdadeiro sinal de maturidade na política de mobilidade urbana.