Nos últimos anos, a política de concessões transformou profundamente o transporte sobre trilhos em São Paulo. Linhas da CPTM e do Metrô migraram para a operação privada, em um movimento que promete investimentos, modernização e eficiência. O caminho parece consolidado: em breve, praticamente toda a rede estará sob gestão de concessionárias. Mas uma discussão ainda restrita aos bastidores do governo paulista lança uma pergunta incômoda: até que ponto é saudável o Estado renunciar a toda a sua capacidade operacional?
O debate gira em torno da Linha 10-Turquesa, que liga Brás a Rio Grande da Serra. Diferentemente de outras linhas já concedidas, técnicos defendem que ela permaneça sob gestão da CPTM, por meio de um contrato de desempenho entre a empresa e o governo estadual. A lógica é simples: se em algum momento uma concessionária desistir ou fracassar, o poder público terá de assumir a operação. Para tanto, precisa manter expertise interna –e isso só se garante com a experiência direta de operar e investir em linhas.
A reflexão não é teórica. O estado do Rio de Janeiro vive hoje os desdobramentos do pedido de falência da Supervia. Há mais de um ano discute-se a retomada da concessão, e o desafio de montar estrutura técnica suficiente para substituir o operador privado. Tanto é que contratou a CPTM como consultora, justamente para suprir essa lacuna.
O paralelo argentino também assombra: as concessões ferroviárias dos anos 1990 colapsaram diante de acidentes e falta de investimentos, e o governo federal só conseguiu reassumir definitivamente as linhas em 2015, após anos de improviso e serviços precários.
A experiência inglesa reforça o alerta: depois da quebra de diferentes operadoras privadas, o governo precisou acionar a posição de "operador de última instância" para assumir linhas como a East Coast, a Northern e a Southeastern. A transição envolveu recompor equipes, integrar sistemas, renegociar contratos de manutenção e material rodante e lidar com a fragmentação institucional entre operação e infraestrutura –um processo lento e custoso, com melhora de desempenho apenas gradativa.
A questão central é a continuidade do serviço público. Concessões são instrumentos importantes de política pública, mas partem da premissa de que o Estado é o garantidor último da operação. Se todo o conhecimento técnico for delegado, quando houver crise ou abandono não haverá quem saiba conduzir trens, planejar escalas, gerir oficinas e manter a rede funcionando. Em outras palavras: sem musculatura interna, o Estado se torna refém das concessionárias.
Esse dilema ultrapassa o setor ferroviário. Em rodovias, energia elétrica, saneamento ou saúde, a pergunta é a mesma: caso a concessionária deixe o contrato, o poder concedente teria condições reais de assumir o serviço no dia seguinte? A resposta honesta, em muitos casos, é não. E isso coloca em risco o princípio fundamental que orienta qualquer concessão: a garantia da continuidade do serviço essencial.
A eventual decisão de manter a Linha 10 sob operação direta da CPTM, portanto, não seria um retrocesso. Pelo contrário: funcionaria como seguro institucional. Não se trata de enfraquecer o modelo de concessões, mas de equilibrá-lo. Preservar uma ilha de expertise pública pode ser o que fará a diferença no futuro, quando o imprevisível bater à porta.
São Paulo, pioneira nas concessões sobre trilhos, tem agora a chance de também inovar no desenho institucional: combinar a força do capital privado com a prudência de manter viva a capacidade operacional estatal. Antecipar-se a esse debate, antes que a crise estoure, pode ser o verdadeiro sinal de maturidade na política de mobilidade urbana.
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