domingo, 24 de agosto de 2025

A distopia realizada na América Nos EUA, Muniz Sodré FSP

 


O medo comporta gradações, que variam do temor ao pânico. Devem oscilar entre um e outro os sentimentos de milhões com a notícia de que Pete Hegseth, secretário de Defesa dos EUA, compartilha em vídeo a opinião de pastores contrária ao direito feminino de voto. É a primeira vez em séculos que o poder americano desfaz publicamente um voto de modernidade democrática.

A esse barbarismo segue-se outro: figura central do grupo, o pastor nacionalista cristão Doug Wilson associa hierarquia patriarcal à racial, garantindo que havia afeição mútua entre escravistas e escravos. Infere-se que também mulheres estariam afeitas à escravidão patriarcal. Tudo isso faz parte da ofensiva antifeminina de Trump, que agora tenta demitir a primeira mulher negra a dirigir o Federal Reserve, o banco central americano. O autocrata é conhecido pelo comportamento repulsivo para com mulheres. A intimidade de 15 anos com o pedófilo Jeffrey Epstein sugere que parceira segura é um misto de escrava sexual e boneca inflável.

A imagem mostra um homem de terno escuro e gravata, que está em pé atrás de um púlpito, falando para a imprensa. Ele tem cabelo loiro e está gesticulando enquanto fala. Ao lado dele, um homem com cabelo escuro e terno azul claro parece estar ouvindo atentamente. Ao fundo, há uma parede com o emblema da Casa Branca.
O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, ao lado do presidente americano, Donald Trump, em entrevista coletiva, na Casa Branca, em Washington - Annabelle Gordon - 11.ago.25/Reuters

Mas o medo não comparece só em preocupações democráticas como também, sob forma de terror, em causas primais da aversão ao feminino. Ganha proporções o tópico da "vagina dentata", fonte mítica de fantasias de castração masculina. Disso é exemplar a comédia de terror feminista "Teeth" (2007), de Mitchell Lichtenstein. Com reflexo na modernidade big tech: Mark Zuckerberg, boneco ventríloquo de Trump, atemoriza-se em público com a "falta de energia masculina nos EUA". A raiz do pânico é a indistinção entre delírio e realidade, moldada pelo cinema de catástrofe. A tela tanto precede a vida que a ficção se materializa aos olhos de todos.

Isso inspira uma distopia como a de Margaret Atwood em "O Conto da Aia" (1985), sucesso no streaming: no futuro, as mulheres se tornam escravas sexuais de uma elite poderosa. Uma distopia feita de imaginação, realidade da opressão feminina nas ditaduras islâmicas e ideologia patriarcal de comunidades espelhadas no nacionalismo cristão. Nos EUA, país de cidadania conformista com o sistema e religião como modo de vida, as seitas dão continuidade às utopias nostálgicas que radicalizam exigências morais de suposta proveniência bíblica. Cultua-se não o país real, mas o que se supõe ter sido no passado.

Daí um primitivismo aberto a mitos regressivos, refratários à autarcia feminina. Concretizado, o terror mítico é fissura na dita modernidade da América. Não simples detalhe de superfície numa poderosa infraestrutura econômica-militar, mas indício embrionário do colapso moral que sinaliza o fim do ciclo hegemônico de um império. "Tem um momento em que toda família começa a apodrecer", dizia Nelson Rodrigues ("Flor de Obsessão"). Pode acontecer com nações. São claros os sinais na América trumpista

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Juan Pablo Glasinovic Vernon: “Madeira e a Economia Circular”

 O caminho para uma economia neutra em termos de clima — na qual as emissões de gases de efeito estufa são compensadas por sua captura — exigirá ações conjuntas em sete áreas estratégicas: eficiência energética; implantação de energia renovável; mobilidade limpa, segura e conectada; indústria competitiva e economia circular; infraestrutura e interconexões; bioeconomia e sumidouros naturais de carbono; e captura e armazenamento de carbono para lidar com as emissões restantes.

Na economia circular, a madeira é a matéria-prima por excelência, pois atende a todos os requisitos para gerar crescimento sustentável. É por isso que a Região de Los Ríos e o nosso país em geral estão bem posicionados para apoiar a economia circular de duas maneiras: por meio da produção de diversos produtos de madeira e pela captura de carbono por meio de sua extensa cobertura florestal.

Vamos rever rapidamente as vantagens da madeira.

Do ponto de vista energético, a madeira é a matéria-prima que requer o menor consumo de energia para sua fabricação. Isso ocorre porque as árvores, sua fonte, crescem naturalmente, exigindo apenas luz e água suficientes.

A madeira é essencialmente reutilizável, com um ciclo de vida praticamente infinito, mantendo suas propriedades. Em última análise, é compostável, enriquecendo a biosfera.

A madeira também é um ótimo isolante térmico e acústico, além de regular a umidade. Somam-se a essas propriedades seus benefícios à saúde. Ela não apresenta riscos à saúde por contato, inalação ou ingestão, como outros materiais, especialmente na construção civil.

Devido à sua flexibilidade, também é um excelente material para construções resistentes a terremotos.

Por fim, o uso sustentável da madeira tem um impacto social significativo, contribuindo para a preservação das florestas e possibilitando a vida e o progresso das comunidades do meio rural.

Considerando seus múltiplos benefícios, a madeira deve desempenhar um papel mais importante na economia emergente. Portanto, Los Ríos e o Chile devem investir em seu desenvolvimento em todas as suas facetas. Expandir a certificação florestal, aprofundar a pesquisa científica sobre todos os aspectos da madeira e gerar valor agregado por meio de sua produção, almejando se tornar um player de liderança nos níveis regional e global.

Um ponto de partida, dadas as suas implicações económicas e ambientais, é o setor da construção. De facto, os edifícios são atualmente responsáveis ​​por 40% do consumo de energia e por mais de metade da poluição das nossas cidades. Os materiais mais comuns, como cimento, tijolo, cerâmica, metal, vidro, PVC e diversos plásticos, são incorporados no cálculo energético.

Além disso, a construção civil é responsável por 50% dos materiais extraídos, 30% do consumo de água e 35% dos resíduos. E como se não bastasse, pelo menos 50% dos materiais de demolição acabam em aterros sanitários em vez de serem reutilizados.

Nesse sentido, para refletir melhor o impacto benéfico da madeira: a substituição de uma janela de madeira por uma de PVC reduz as emissões de CO2 em 2 toneladas. Pisos de madeira em vez de pisos cerâmicos reduzem as emissões de CO2 em 4 toneladas. Paredes de madeira em vez de tijolos reduzem as emissões de CO2 em 24 toneladas.

O concreto, por sua vez, é responsável por 8% das emissões mundiais (na China, entre 2010 e 2012, foi usado mais concreto do que nos EUA em todo o século XX). Muitas construções que utilizam concreto podem ser feitas de madeira.

Já estamos presenciando a construção de grandes projetos de madeira no Chile, como o edifício corporativo da CMPC em Los Angeles. A Arauco também realizou um concurso para construir sua sede em Concepción.

Os primeiros arranha-céus de madeira já foram construídos em todo o mundo. Na Noruega, uma torre de 80 metros de altura foi construída inteiramente de madeira. Outros arranha-céus estão em construção em Londres, nos Estados Unidos e no Japão. No Japão, há um projeto para construir um edifício de 350 metros de altura em Tóquio, 90% do qual será de madeira, com previsão de conclusão até 2041.

Novos produtos, como a madeira laminada cruzada (CLT), permitem a construção de peças altamente precisas, que podem ser produzidas em massa e montadas no local. Isso leva, em média, um terço do tempo que levaria para fazer o mesmo com concreto e ferro.

Apesar de todas essas evidências, a verdade é que não estamos totalmente convencidos das vantagens da madeira. Continuamos falando de "construção leve" como algo precário ou de menor qualidade. A madeira é frequentemente reservada para segundas residências, mas não para a residência principal. Há, sem dúvida, uma questão cultural a ser abordada, relacionada aos padrões de construção. Se aspiramos a ser líderes no uso da madeira, devemos valorizá-la adequadamente: um material nobre e sustentável.

Você consegue imaginar as cidades do futuro com maior uso de madeira? Prédios antigos não serão mais demolidos, mas sim desmontados, e quase toda a madeira recuperada será reutilizada em construções futuras ou outros projetos. Não haverá desperdício, e os projetos de construção serão muito mais curtos e menos poluentes.

Mas a madeira oferece muito mais. Subprodutos da indústria madeireira podem criar novos plásticos recicláveis ​​ou reutilizáveis ​​ao final de sua vida útil. A lignina, um componente da madeira que cimenta as fibras de celulose e lhes confere rigidez, é crucial nesse sentido. O teor de lignina em uma árvore depende de sua espécie, mas representa aproximadamente 25% dos componentes lignocelulósicos de uma árvore inteira.

Produtos derivados da extração da casca da madeira também estão sendo desenvolvidos, em especial um bioadesivo termofixo, um adesivo extremamente duro e resistente. Esses desenvolvimentos permitirão a substituição dos adesivos químicos atuais na produção de painéis à base de madeira, além de criar um compósito altamente tecnológico e resistente que poderá ser introduzido em outros setores.

A economia circular, portanto, nos oferece uma grande oportunidade como país produtor de madeira. O desafio não é apenas ser um fornecedor de matéria-prima, mas também desenvolver produtos acabados de alta qualidade e alta tecnologia. E para atingir esses níveis, precisamos aumentar o uso de madeira internamente, começando pela construção civil.

O maior uso do recurso deve ser acompanhado por uma silvicultura mais extensiva. Só assim multiplicaremos nossos esforços para mitigar as mudanças climáticas.

Por fim, do ponto de vista social, é crucial que a crescente sofisticação deste setor permaneça independente do território em que opera. Isso exige o desenvolvimento e o fortalecimento de fornecedores locais e a contribuição para a elevação do padrão de vida das comunidades locais. Só assim o setor florestal terá a legitimidade necessária para se desenvolver no nível e na velocidade exigidos pela emergência climática que vivemos.

Abracemos a expressão “somos um país e uma região de boa qualidade”.

Salvar a democracia significa ficar longe das multidões enlouquecidas, João Pereira Coutinho, FSP

 Como é insuportável entrar nos museus das grandes cidades! Não falo das multidões que frequentam o espaço para tirar selfies com a Mona Lisa.

O problema está nos museus mesmo —descrições ideológicas, invariavelmente "woke", das obras diante de nós. O visitante, modestamente, quer contemplar um pouco de beleza formal para recuperar da feiura do mundo. Mas o ideólogo, com seus dedos gordurosos e grosseiros, introduz política nesses santuários laicos.

Turistas fazem selfie em frente a quadro da Mona Lisa - Gardel Bertrand/AFP

democracia também se destrói assim: quando os lugares de repouso cívico são conspurcados pela mente ideológica.

São incontáveis os livros que, nos últimos anos, tentaram explicar à plebe como salvar a democracia. Mas raros são os ensaios que começam pelo óbvio: salvar a democracia significa manter distância das seitas políticas. Significa "solidão cívica", para usar o conceito luminoso do filósofo Robert Talisse.

No ensaio com o mesmo título ("Civic Solitude: Why Democracy Needs Distance", Oxford Univertsity Press, 208 págs.), Talisse relembra que uma democracia pressupõe uma sociedade de iguais que se autogovernam. É um conceito revolucionário, historicamente falando, porque dispensa o paternalismo benigno ou maligno de reis ou tiranos.

É uma forma de afirmação da autonomia individual: ninguém é superior a mim, o que naturalmente implica que ninguém é inferior. Mesmo os adversários são dotados dessa igualdade basilar —e é meu dever cívico encará-los como iguais, dotados das suas razões e interesses.

A democracia exige civilidade e imaginação, escreve Robert Talisse, para seguidamente descer ao inferno das sociedades de hoje: onde está essa civilidade? Onde está essa imaginação de nos colocarmos no lugar do outro, ainda que discordemos dele?

Não está. Especialistas diversos falam em "polarização", como se isso fosse o problema. Não é: uma sociedade democrática é uma sociedade polarizada, sempre, porque pessoas diferentes têm diferentes concepções de vida. Só deseja a uniformidade quem, no fundo, não nasceu para democrata.

A polarização só é um problema quando somos incapazes de pensar politicamente para lá das nossas "lealdades de facção", para usar a expressão do autor.

Explico melhor: quando só funcionamos em alcateia, não viramos apenas lobos. Tornamo-nos mais dogmáticos e mais confiantes no nosso dogmatismo.

Além disso, a política, que é uma parte da vida em conjunto, se converte em fenômeno totalitário —e no sentido preciso da palavra: tudo é política, até a forma como nos vestimos, a linguagem que usamos, os espaços que frequentamos etc.

Robert Talisse usa como exemplo um estádio de futebol. Quando assistimos a um jogo do nosso time, torcemos por ele, vestimos suas cores, perdemos a cabeça com o juiz, insultamos a torcida adversária. Felizmente, esse transe só dura 90 minutos.

Agora imagine viver num estádio de futebol, entre a torcida, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não imagine. Essa é a condição do "democrata" contemporâneo —ou, melhor dizendo, do "hooligan" contemporâneo. Essa é a imagem que você vê no espelho.

Para grandes males, grandes remédios, aconselha Talisse. A "saturação política" precisa de "higiene cívica", escreve ele. E oferece outra metáfora poderosa: um piloto de avião tem de observar certas regras para garantir a segurança dos passageiros. Dormir bem. Não beber álcool. Não acumular horas excessivas de voo. E, claro, checar o estado do avião.

Participar no jogo democrático também exige certas precauções. Como preservar espaços mentais e até físicos onde a política do cotidiano não entra, muitos menos seus fanatismos de seita.

A leitura de obras clássicas e a fruição da grande arte não servem apenas para apurar nosso sentido estético. Elas permitem que habitemos territórios estranhos, não contaminados pelo lixo ideológico, onde podemos refletir e imaginar livremente.

Iguais funções têm bibliotecas, museus, parques públicos —refúgios onde podemos nos abrigar do "idioma tóxico da democracia de facção", escreve o filósofo.

Quem pensa que esses lugares são gastos supérfluos está enganado. Eles são os cilindros de oxigênio da democracia, onde podemos respirar outros ares. Se também os conspurcarmos com as neuroses da política, não teremos para onde fugir.

Salvar a democracia começa em cada um de nós, eis o ponto de Talisse. Ou, para usar esse verso que Thomas Hardy escolheu como título do seu melhor romance, significa ficar longe das multidões enlouquecidas.