quarta-feira, 4 de junho de 2025

Precisamos de um contrato entre humanidade, natureza e tecnologia, Rui Tavares, FSP (definitivo)

 O século 19 foi o tempo do liberalismo político, dos direitos e liberdades cívicas. No século 20, o grande desafio foi como responder às necessidades das classes trabalhadoras e das massas empobrecidas, e por isso esse foi o século da social-democracia, dos direitos econômicos, sociais e culturais e do Estado-providência.

O nosso século, o 21, tem de ser o século da responsabilidade ambiental perante a crise ecológica, as mudanças climáticas e a radical perda de biodiversidade no planeta, além da ocorrência de fenômenos meteorológicos extremos e de pandemias.

Incêndio florestal na região da Nhecolândia, no pantanal do Mato Grosso do Sul - Lalo de Almeida - 1º.ago.2024/Folhapress

Pelo esboço acima, fácil seria concluir que o essencial de um consenso político para os nossos tempos deveria ser um tripé com esses três elementos: o liberalismo político (legado pelo século 19); a social-democracia (consolidada no século 20); e a ecologia (de que precisamos no século 21).

Mas nesse caso, por que raios o que está acontecendo é praticamente o oposto? Em cada vez mais países pelo mundo há porções consideráveis do eleitorado, beirando a maioria ou mesmo por vezes a ultrapassando, que rejeitam simultaneamente esses três princípios que teoricamente nos deveriam deixar mais do que satisfeitos se fossem razoavelmente cumpridos.

Números perigosamente altos dos nossos concidadãos dizem rejeitar os princípios do liberalismo político (o Estado de direito, os direitos humanos, a alternância pacífica do poder), afirmam repulsa pelo igualitarismo e universalidade das políticas públicas social-democratas e negam radicalmente a realidade da emergência climática e ecológica.

O que explica isso?

Em primeiro lugar, creio que se trata da velocidade e do acúmulo de mudanças (como defendi há uns tempos na coluna "O problema é que a mudança mudou". O emaranhado dessas mudanças, da inteligência artificial às migrações em massa, do deslocamento da riqueza à desinformação, é de tal ordem que assusta e desorienta, levando muita gente a descrer de uma receita ideológica clássica, segura, mas trivial e não entusiasmante.

Em segundo lugar, essa incerteza é tal que nos coloca já não só perante uma "era de mudança", como dizia o papa Francisco, mas antes numa "mudança de era". A mudança de era significa que os pressupostos de base da ação política acabam sendo integrados até pelos seus adversários. Para dar dois exemplos: depois de Roosevelt, dos sociais-democratas (ou de Getúlio Vargas), até os conservadores concordaram em que era preciso garantir direitos trabalhistas; depois de Reagan e Thatcher, até os progressistas alinharam em privatizações e desregulamentação.

O problema é que ninguém sabe ainda para que mudança de era caminhamos. A proposta mais visível em todo o mundo é a do nacionalismo autoritário, que ganha força como forma de responder às ansiedades que descrevi.

Mas há uma alternativa: a de um Novo Contrato Verde, com investimentos públicos vigorosos, para alcançar um equilíbrio entre humanidade, natureza e tecnologia. Essa alternativa não pode ficar só na teoria: ela tem de ter objetos de desejo político concretos e palpáveis. Por isso voltarei a ela em crônicas futuras.

Os combos indigestos de Haddad, elio Gaspari, FSP

 O ministro Fernando Haddad e os çábios que o circundam tiveram uma ideia. Nas suas palavras: "Nós fizemos pela oportunidade de fazer um combo, prevendo receita, bloqueio, contingenciamento, mas essas medidas estão sendo analisadas há mais de um ano".

Traduzindo, o "combo", refinada versão do velho truque de dar uma martelada no cravo e outra na ferradura, queria prometer redução de gastos (em tese) e aumento de um imposto (de fato). Deu no que deu. O Congresso sinalizou que não digere o sanduíche, o Banco Central reclamou porque não foi ouvido, e a encrenca pousou na falta de coordenação política do governo.

Haddad conhece a velha lição, segundo a qual fazer de novo uma experiência esperando que venha um resultado diferente é sinal de que alguém está com um parafuso solto.

Um homem com cabelo escuro e levemente ondulado, usando um terno escuro e uma camisa clara, está sentado e olhando para o lado, com a mão direita segurando o queixo. A expressão facial dele é de reflexão ou preocupação. O fundo é desfocado, sugerindo um ambiente formal.
O ministro Fernando Haddad, durante agenda em Brasília, nesta terça (3) - Adriano Machado/Reuters

Em outubro do ano passado, a ekipekonômica pôs na mesa outro combo. Batendo no cravo, conteria os supersalários. Indo à ferradura, confiscaria parte do salário-desemprego dos trabalhadores demitidos sem justa causa. Assim como o Banco Central não foi ouvido adequadamente no combo do IOF, no do confisco do salário-desemprego não ouviram o Ministério do Trabalho. O sanduíche não foi servido.

Faz tempo as ekipekônomicas operam num mundo fantástico. Presumindo-se onipotentes, manipulam ilusões. O combo do ano passado atolou antes de sair da cozinha, o do IOF levou a um atrito com o Congresso.

Desde seu primeiro dia no Ministério da Fazenda, o ministro Haddad sabe que as contas públicas não fecham e que seus colegas de ministério não querem cortar gastos. Promete aumentos de arrecadação ilusórios e festeja minudências. O único gasto cortado pelo governo foi a compra de um novo avião com chuveiro para Lula.

Os problemas fiscais do governo não serão resolvidos com combos ou fantasias semelhantes. Encurralado pelo Congresso, Haddad pareceu ter aceitado a ideia de uma reforma administrativa. Beleza, mas logo sacou o velho combo do ano passado: "Nós já mandamos algumas dimensões da reforma administrativa que, na minha opinião, deveriam preceder toda e qualquer votação, que é a questão dos supersalários".

Os supersalários embolsados pelo Judiciário são uma praga difícil de ser corrigida. Vale a pena tentar, mas um Executivo que bomba os vencimentos de seus ministros e hierarcas aninhando-os em conselhos entra na discussão capengando.

Falta ao governo a sinalização de um compromisso com a austeridade. Aqui e ali revelam-se lances nos quais, em vez de poupar, esbanja. As farofas que levam ministros a feriadões no circuito Elizabeth Arden passam ideia de turismo perdulário. É verdade que essas boquinhas fazem mais o gosto do Judiciário, mas o Executivo acaba enfeitando-as.

O lado trágico dessa feira de ilusões está na exposição de um governo que gasta demais, porém cuida do andar de baixo. É contra as políticas sociais de Lula que o andar de cima brande o estandarte da austeridade. No combo do ano passado, os çábios queriam tungar desempregados.

A nova expressão da moda é a reforma estruturante. Não quer dizer nada, porque o que está estruturado são o privilégio, a boquinha.

Lula foi à França e anuncia-se que levou uma agenda para discutir a COP30. Tudo bem, a Cidade Luz tem um belo cenário, mas a Conferência da ONU será em Belém, com seus conhecidos problemas logísticos.