segunda-feira, 2 de junho de 2025

Hélio Schwartsman - Os mitos pelos quais vivemos,FSp

 A maioria dos valores liberais que nos são caros estão calcados em mitos, que não resistem a uma análise lógica. Isso vale para a democracia, a igualdade republicana, direitos humanos e até mesmo para os discursos de reparação histórica. Essa é a tese de "The Myths We Live By", do filósofo Peter Cave.

Cave corre riscos. Especialmente nos tempos histéricos em que vivemos, a problematização de ideias liberais pode ser lida como um ataque a elas, e não como um exame crítico, que, pelo menos no âmbito da filosofia, é sempre bem-vindo. No mais, Cave, embora toque em feridas, em nenhum momento sugere que devamos abandonar democracia, igualdade diante da lei ou direitos humanos. Pelo contrário, ele é detentor de impecáveis credenciais humanistas.

O ponto central é que muitos dos raciocínios costumeiramente utilizados para justificar instituições têm mais buracos do que um queijo Emmental. Tomemos o caso da democracia.

A imagem mostra uma balança da justiça, que é um símbolo tradicional do direito e da equidade. A balança é dourada e está apoiada em uma base marrom. O fundo da imagem é de uma cor azul clara.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, esta publicada também na versão impressa da Folha deste domingo (1º de junho) - Annette Schwartsman/Divulgação

A ideia de que um eleitorado bem-informado escolhendo livremente seus líderes é capaz de promover as melhores políticas públicas não faz muito sentido. O eleitorado como um todo não é nem deseja ser bem-informado e, mesmo que fosse, ainda assim precisaríamos de especialistas para tomar as melhores decisões sobre matérias mais técnicas.

Também dá para discutir o que significa escolher livremente, num mundo em que políticos, empresas e instituições fazem o que podem para influenciar, nem sempre com os propósitos mais nobres, eleitores, consumidores e cidadãos.

Cave aplica seu olhar crítico a vários dos temas que hoje dividem as sociedades, incluindo impostos, questões identitárias (quando e em que condições é legítimo discriminar) e imigração. Seus argumentos são no mais das vezes persuasivos.

Encontrar contradições em nossos discursos e atitudes nem deveria ser uma surpresa. Pelo menos desde Platão temos um rol de pontos fracos da democracia. Conhecê-los nos ajuda a tentar aprimorá-la ou, pelo menos, a procurar melhores argumentos para defendê-la.


Ruy Castro - Caixões ao relento, FSP

 É como se os fantasmas de Federico Fellini, Marcello Mastroianni e Anita Ekberg tivessem sido despejados de seu habitat —Fellini, o cineasta, com suas câmeras; Marcello, o jornalista, com seu caderninho de telefones das maiores mulheres da Europa; e Anita, a deusa descalça, de preto longo e busto continental. O cenário é o Café de Paris, em Roma, território de "A Doce Vida", o filme com que Fellini parou o mundo em 1960 —o Vaticano tentou proibi-lo, os liberais o defenderam, e todo mundo quis vê-lo para conferir. Mas há muito não há mais a doce vida. Não aquela que Fellini mostrou.

O Café de Paris, ao lado da embaixada americana e em frente ao Hotel Excelsior, na Via Veneto, está fechado há anos. Mas seu cadáver nunca foi sepultado. A fachada ainda conserva o logotipo original e quem espiar pela grade de ferro lavrado verá o hall de entrada e parte do bar. Pensará ouvir a música de Nino Rota feita para o filme e ver relances de Anouk AiméeMagali Noël e Nadia Gray, as outras grandes mulheres em cena, com seus ombros nus e narizes petulantes. Tudo miragem, claro.

É intrigante como um endereço com essa história fique tão abandonado —no Brasil, já teria se tornado um supermercado ou igreja evangélica. Talvez os que pudessem explorá-lo vejam nele uma caveira de burro, um ponto que não dá sorte. Ou um lugar condenado por tudo o que seus frequentadores supostamente aprontaram em 1001 noites dos anos 1950 —um turbilhão de conquistas, champanhe, cocaína, talvez até conspirações mafiosas.

Na verdade, nem a mítica Via Veneto existe mais. Seus últimos redutos boêmios, mesmo os com mesas na calçada, fecham cedo. À meia-noite, a rua está vazia. O Café de Paris é só um dos caixões ao relento.

E se nada ali jamais tiver existido? A Via Veneto de "A Doce Vida", por mais realista, era um cenário de estúdio, construída em Cinecittá. Talvez tudo o que se pensava ter acontecido nela fosse uma ilusão coletiva, induzida por Fellini para que, um dia, ele fizesse dela um filme.

Muniz Sodré - Um berçário de arapongas, FSP

 Fato espantoso: enquanto o filme "O Agente Secreto" fazia sucesso em Cannes, a Polícia Federal desmontava uma rede de espionagem russa no país. O choque deve-se à raridade do fato entre nós. Mas persiste na memória coletiva o caso vexaminoso dos nove chineses que, três dias após o golpe de 64, foram presos como espiões, supostamente armados com agulhas envenenadas, prontos para atacarem não se sabia o quê (eram agulhas de acupuntura). Torturados, condenados a dez anos de prisão, confirmou-se depois que eram uma delegação comercial de algodão. Um escândalo diplomático, fiasco dantesco, prenúncio das violências da ditadura.

A imagem apresenta seis retratos em preto e branco dispostos em uma grade de duas linhas e três colunas. Cada retrato mostra uma pessoa com expressão neutra, olhando diretamente para a câmera. As pessoas têm diferentes características faciais e estilos de cabelo, e estão vestindo roupas variadas. O fundo é liso e claro, destacando os rostos das pessoas.
Espiões russos, da esq. para a dir., na parte de cima: Iekaterina Leonidovna Danilova, Vladimir Aleksandrovitch Danilov, e Aleksandr Andreyevitch Utekhin, na parte de baixo: Olga Igorevna Tiutereva, Irina Alekseievna Antonova e Roman Olegovitch Koval - The New York Times /NYT

Agora, porém, se trata da Polícia Federal, a mesma que desbaratou a trama golpista de Bolsonaro e tem granjeado respeito social, até com elogios do "Times". Cabe perguntar, aliás, por que não tomar como modelo de polícia o da federal, em que inteligência parece ter se sobreposto à violência pura e simples. Foi precisamente a contrainteligência federal que descobriu os espiões adormecidos.

Novelas de espionagem como "O Agente Secreto", de Joseph Konrad, e "O Homem que foi Quinta-Feira", de G.K. Chesterton, são boa literatura alegórica. Mas o caso desses russos é parente folhetinesco mais próximo de thrillers como a série "Os Americanos", uma das melhores programações televisivas deste século, que dramatiza um casal disfarçado para dirigir, em plena Guerra Fria, uma rede de espionagem da KGB nos EUA. São propriamente "moles" (toupeiras), isto é, infiltrados com identidades americanas e atividades clandestinas. Como toupeiras, entocam-se à espera de um chamado à ativa.

Extraordinário que pareça, esse é em linhas gerais o roteiro dos russos desentocados pelos federais. Questão intrigante é saber o que haveria para ser espionado num país sem alta relevância na geopolítica mundial, nos jogos de guerra ou na vanguarda tecnológica. A espionagem eletrônica dos americanos no gabinete de Dilma Rousseff visava a bisbilhotar conversas políticas. No passado, a obsessão de Jânio Quadros em invadir a Guiana produziu o factoide de que um submarino desembarcaria espiões na praia de Amaralina, em Salvador. Mas Jânio era uma extravagância republicana, assim como as suas venetas.

O russo Sergey Shumilov apontado pela Abin como espião se passando por diplomara em Brasília
O russo Serguei Chumilov, apontado como espião pela Abin, em uma palestra realizada por uma escola de idiomas - Reprodução

Agora os espiões são de carne e osso, real é o laço que os federais jogaram na cabeça de um deles, já que os outros se escafederam, não fossem treinados no tempo em que Putin era mestre-espião da KGB. O que queriam mesmo do Brasil? A resposta tem um lado lisonjeiro, outro desolador. Primeiro, a diversidade étnica faz do brasileiro cidadão universal em termos de aparência física e nomes próprios. Aqui, um leve sotaque não aponta ninguém como estrangeiro. Em segundo, a obtenção de documentos é bastante flexível, ainda mais com a facilitação corruptiva de cartórios do interior. Os russos tinham certidões de nascimento autênticas, datadas de muito tempo atrás.

Segredos vitais pertencem a potências nucleares, nada a se espionar entre nós, portanto. Mas um mestre do gênero, estilo John Le Carré, certamente aproveitaria esse imbróglio para um thriller tropical, algo como "os espiões que não espionavam". Senão, com essa facilidade de trampolim, poderíamos ser um berçário de arapongas. Reborn, daqui para o mundo.