quinta-feira, 18 de julho de 2024

Premiar escolas?, FSP

 Em recente entrevista o ministro da Educação anunciou que o governo está planejando criar um programa para premiação das escolas cujo ponto alto seria a premiação pelo desempenho no Enem – "o Oscar da Educação".

Dependendo de como isso será feito, as escolas que atendem aos grupos representados pelos que subiram a rampa com o presidente Lula, não serão representadas. Não seria isso uma inconsistência programática?

Isso ocorrerá porque a pesquisa educacional já estabeleceu firmemente que uma medida isolada dos resultados educacionais dos estudantes de uma escola reflete mais de perto as características sociais dos estudantes fora, portanto, do controle da escola, do que o trabalho pedagógico nela desenvolvido.

Informação sobre três destes fatores podem obtidos com dados do Censo Escolar. Em pesquisa recente, Tereza Alves, Aguinaldo Fonseca e eu medimos o nível de exclusão educacional dos 40 grupos que podem ser formados pela interseção das variáveis: sexo –dois níveis; raça– cinco níveis e o nível socioeconômico (NSE) da escola, com quatro níveis. A exclusão educacional é medida pelo percentual de estudantes com trajetória irregular em cada um destes grupos.

Fotografia em preto e branco de um homem sorridente. Ele tem cabelos grisalhos e veste uma camisa com uma jaqueta clara por cima. O fundo da imagem está desfocado, mostrando uma janela com luz natural entrando.
É doutor em estatística pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos - Divulgação

É muito informativo para o debate educacional comparar o nível deste indicador entre os estudantes pertencentes aos grupos, entre os 40 considerados, que, conjuntamente, constituem os 20% estudantes com os menores valores deste indicador, com os 20% de estudantes com os valores mais altos.

Todos os estudantes sem exclusão educacional são de grupos com nível socioeconômico alto, há uma predominância de meninas e os estudantes pretos não estão presentes. O grupo dos mais excluídos, por outro lado, inclui a maioria dos estudantes de NSE baixo e médio baixo; é majoritariamente masculino e inclui os estudantes pretos e indígenas.

Há uma participação dos pardos pobres e apenas os brancos pobres estão presentes. Ou seja, para considerar adequadamente a exclusão educacional não basta considerar o nível socioeconômico dos estudantes, é preciso modulá-lo pela raça e sexo.

A diferença de desempenho entre os estudantes destes dois grupos é muito grande. Usando os dados públicos do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), até 2019, pode-se constatar que a diferença de desempenho entre os dois grupos se manteve estável ao longo dos anos, tanto em leitura como em matemática e é equivalente a mais de dois anos de escolarização.

Ou seja, pode-se dizer que, enquanto os estudantes do grupo sem exclusão educacional estão no nono ano, os do grupo mais excluído estão no sétimo ano.

Com dois anos de diferença, é praticamente impossível que uma escola que atende basicamente a estudantes do grupo de excluídos competir com sucesso com escolas cujos estudantes não estão submetidos a exclusão educacional. Assim sendo, premiar escolas, forçando-as a competir entre si, é uma política de utilidade educacional duvidosa e socialmente excludente.

No entanto, em relação ao Enem, existe uma forte demanda social para se conhecer os resultados dos estudantes no Enem. Esta demanda é tão grande que recentemente uma empresa, respeitando todas as determinações legais, obteve os dados e os vendeu. Diante disso, é razoável que o governo torne acessível, para cada escola, as suas informações.

Junto com este acesso, é razoável reconhecer o trabalho de escolas cujos resultados estão muito além do esperado. Para isso é preciso calcular o resultado esperado das escolas considerando seu porte, o número de estudantes que permaneceram na escola durante o ensino médio, a formação dos seus docentes e o NSE de seus estudantes.

Com este tipo de ação, nosso país conheceria as escolas que têm, de fato, impacto na vida de seus estudantes. Não se festejariam as escolas que apenas se apropriam das vantagens proporcionadas pelas famílias de seus estudantes, vinda de seus recursos financeiros e capital cultural.

O INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) já teve uma ação neste sentido que dava visibilidade a muitos projetos pedagógicos, que ficam invisíveis em uma divulgação centrada na competição.

Mas neste momento há outras importâncias e outras urgências em relação ao Ensino Médio. As escolas precisam saber como será a estrutura do Enem, depois da reforma do Ensino Médio.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Chico Soares foi "Xibom Bombom", do grupo As Meninas.

Conselho sem partido, FSP

 

pessoas de jaleco sendo controladas por fios e mãos gigantes, imagem em verde, amarelo e azul.
SoU_Ciência - Meyrele Nascimento

Talvez, antes da pandemia de covid-19, o papel do Conselho Federal de Medicina (CFM) no debate político não fosse colocado à mesa. Muito provavelmente porque o CFM atuava principalmente no que cabe a um conselho profissional, que é fiscalizar e disciplinar o exercício da profissão. O fato é que, desde que se tornou trincheira da extrema direita, esse conselho de classe tem servido para avalizar discursos negacionistas e anticiência.

Recentemente, vimos a bandeira antiaborto sendo hasteada pelo CFM, por meio da Resolução n. 2.378/2024, que proíbe os médicos de realizarem o procedimento da assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas, decorrentes de estupro. Essa medida proíbe um procedimento seguro e respaldado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), além de fazer parte de protocolos internacionais para casos de aborto legal. No entanto, ressalta-se que não cabe ao CFM legislar no país, nem é coerente um conselho de medicina abraçar uma ideologia anticiência, a fim de levantar as pautas do bolsonarismo.

Apesar de derrubada pelo STF, a resolução antiaborto do CFM serviu de base para o Projeto de Lei 1904/2024. Conhecido popularmente como "PL do estupro", tal projeto busca proibir o aborto a partir de 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro. A repercussão negativa que esse PL encontrou na sociedade fez com que o próprio presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, entrasse em defesa do PL antiaborto com argumentos meramente morais e sem evidências científicas. Em sessão de debate na câmara, José Hiran chegou a afirmar que a autonomia da mulher deveria ter limites e que a constituição coloca a defesa da vida como dever da sociedade.

Por outro lado, durante a pandemia de covid-19, o mesmo CFM defendeu a autonomia médica irrestrita, uma autonomia que o profissional da medicina teria para, até mesmo, prescrever medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 e para a realização de práticas que poderiam agravar o quadro de pacientes com covid-19 e inclusive levá-los à morte. Apesar de o CFM ter afirmado por diversas vezes que não estaria recomendando o tratamento com cloroquina e hidroxicloroquina, a defesa da autonomia médica, para prescrever esses medicamentos no tratamento da covid-19, por meio de pareceres e declarações, deixou claro que o posicionamento do CFM estava direcionado a respaldar essa prática.

No início do enfrentamento à pandemia de covid-19, os medicamentos contendo cloroquina e hidroxicloroquina chegaram a ser cogitados como promissores no tratamento da doença. No entanto, diversos grupos de pesquisa realizaram estudos clínicos para avaliar a eficácia desses medicamentos na covid-19 e os resultados apontaram que os medicamentos não eram eficazes para tratar a doença. Diante das evidências científicas acumuladas, era esperado que o CFM adotasse a postura que lhe cabe, alinhando-se ao discurso pró-ciência e repudiando o uso de tais medicamentos no tratamento da covid-19. Não foi o que aconteceu. O CFM embarcou na pauta ideológica do bolsonarismo e continuou atuando na promoção do negacionismo científico. Não à toa, a alta cúpula do CFM não apenas se calou diante da política negacionista de Jair Bolsonaro, como também entrou em defesa do ex-presidente em diversas manifestações públicas durante a pandemia.

A atuação anticiência do CFM não se concentrou apenas na defesa da autonomia médica para prescrever medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, essa atuação se estendeu acobertando o crescimento do movimento antivacina dentro da classe médica. À medida que a pandemia avançava, grupos de pesquisa no mundo todo testavam possíveis candidatos vacinais e diversas tecnologias de vacinas que poderiam barrar o avanço da doença. E conseguimos! Ainda em 2020, os estudos clínicos com algumas tecnologias vacinais apontaram que a eficácia das vacinas contra a covid-19 poderia diminuir a gravidade da doença e, consequentemente, reduzir o número de óbitos. Os estudos, que também avaliaram a segurança das vacinas, apontaram que a vacinação da população era o caminho para o controle da crise sanitária. Apesar de as evidências científicas comprovarem que as vacinas eram seguras e eficazes, alguns médicos e políticos alinhados ao bolsonarismo contestavam a segurança e a eficácia das vacinas contra a covid-19. O próprio ex-presidente se manifestou diversas vezes contra a vacinação, disseminando desinformação sobre as vacinas, em suas redes sociais e discursos oficiais. Políticos bolsonaristas, desde então, têm promovido uma agenda anticiência, negando as evidências científicas que atestam a eficácia e a segurança da vacinação. O negacionismo científico está disseminado na política, mas médicos atuarem contra a ciência chega a causar espanto.

A politização das vacinas tornou-se evidente quando vimos nas redes sociais postagens com desinformação sobre vacinas disseminadas por médicos bolsonaristas. As eleições de 2022 confirmaram que a atuação de alguns desses médicos realmente tinha um caráter político, visto que muitos figuraram entre os candidatos bolsonaristas a cargos eletivos.

Médicos que propagaram desinformação sobre as vacinas de covid-19 encontraram um abrigo seguro no Conselho Federal de Medicina. Embora o CFM não tenha atuado de maneira explícita para descredibilizar as vacinas contra a covid-19, esse conselho permitiu que médicos contestassem as evidências científicas que mostram os benefícios da vacinação. E não parou por aí. Quando, em 2023, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão da vacina de covid-19 no Programa Nacional de Imunizações (PNI), tornando obrigatória a vacinação de crianças, médicos e políticos bolsonaristas se manifestaram contra a medida. Desde a participação em audiência contra a obrigatoriedade das vacinas no Senado até o levantamento de opinião dos médicos sobre a obrigatoriedade da vacinação, o CFM vem cravando opiniões contrárias ao que diz a ciência. A obrigatoriedade da vacinação é uma medida de saúde coletiva que visa ampliar a cobertura vacinal e estimular a imunidade da população, controlando epidemias. Além da história ter mostrado a importância da vacinação para o controle de epidemias, ao longo dos anos a ciência trouxe dados que permitem concluir que as vacinas são as ferramentas que mais salvam vidas. Estudo recente encomendado pela OMS concluiu que, nos últimos 50 anos, as vacinas para diversas doenças salvaram mais de 150 milhões de vidas no mundo.

Desde que o Conselho Federal de Medicina foi tomado pela ideologia bolsonarista, até mesmo a vacinação da população, medida respaldada pela comunidade científica, vem sofrendo ataques de médicos antivacina, sem nenhum tipo de sanção aplicada pelo CFM a esses médicos. Em 2023, a Secretaria de Vigilância e Meio Ambiente do Ministério da Saúde enviou um ofício ao presidente do CFM questionando sobre quais medidas esse conselho de classe tomaria contra profissionais que divulgam discursos antivacina. Na resposta ao ofício, o conselho informou que promove campanhas de incentivo à vacinação e que, dentre os mais de 550 mil profissionais médicos no Brasil, os médicos antivacina são exceção. Afirmou ainda que, diante de profissionais que propagam desinformação sobre as vacinas, mediante uma denúncia nos conselhos regionais, os fatos serão apurados e, se julgado culpado, o médico poderá sofrer desde uma advertência até a cassação do registro. Entretanto, o fato é que não há nenhuma atuação do CFM para punir médicos que estão diariamente nas redes sociais divulgando conteúdos inverídicos sobre as vacinas. Essa omissão do CFM em coibir práticas contrárias às evidências científicas é uma atuação anticiência. O que se espera do CFM é a defesa de práticas baseadas em evidências científicas e não dar espaço para a sustentação do negacionismo da extrema direita brasileira.

É direito do paciente e faz parte da ética médica a promoção da saúde, por meio de práticas baseadas em evidências científicas. A ciência norteia a prática da medicina e é por meio da ciência que a medicina evoluiu de forma a garantir maior expectativa de vida, seja por meio da vacinação, seja por meio da descoberta de tratamentos eficazes para grande parte das doenças e dos agravos a que estamos suscetíveis. Portanto, negar a ciência implica negar a própria medicina.

O CFM deveria se alinhar à comunidade científica e se preocupar com o crescimento do negacionismo nas práticas médicas e com o avanço do movimento antivacina no Brasil. Todavia, a atuação desse conselho de classe profissional, desde 2020, tem sido nitidamente uma atuação política, voltada a promover a agenda anticiência do bolsonarismo. Embora o posicionamento político do CFM não represente a opinião da maioria dos médicos do Brasil, a classe médica vem sendo desgastada por um conselho que se tornou um "clubinho" de médicos em defesa da ideologia anticiência da extrema direita brasileira. Quando é que o CFM deixará de ser a trincheira do bolsonarismo e voltará seus olhos para a prática da medicina e a defesa da vida, exercendo o papel que lhe cabe e impedindo a atuação de médicos anticiência?

Era uma vez na América, Ruy Castro, FSP

 Diante das imagens que nos chegam de Milwaukee, nos EUA, dando Donald Trump como já vitorioso nas eleições americanas, parece que logo veremos o fim da maior democracia do mundo. Não, não é um alarmismo simplório. Elas estão me fazendo perguntar se, por todos esses séculos, convivemos mesmo com a maior democracia do mundo ou com uma ilusão fabricada pelos próprios americanos.


O que significavam aqueles filmes de julgamento, em que a razão sempre triunfava sobre o obscurantismo e a mentira? Vide o jurado feito por Henry Fonda em "Doze Homens e uma Sentença" (1957), o velho professor por James Stewart em "Festim Diabólico" (1948), o advogado por Spencer Tracy em "O Vento Será Tua Herança" (1960) e muitos outros. Eram homens adultos, justos, lúcidos —pode-se imaginá-los em Milwaukee de chapéu de vaqueiro e apito na boca? Eram ficção ou tinham correspondentes na vida real?

Duke Ellington e Cole Porter estariam em Milwaukee? E Billie Holiday e Judy Garland? Bette Davis, Lauren Bacall, Jane Fonda? Fred Astaire, Cary Grant, Humphrey Bogart? Edgar Allan Poe, Mark Twain, Dorothy Parker? Não sei a filiação política da maioria deles, nem importa. Eram pessoas que admirávamos não só pelo talento, mas pela sensação de inteireza que transpiravam. Sabemos que existiram. Mas seriam amostras reais dos EUA ou uma casta, talvez até fabricada?

A dúvida agora é se, algum dia, os próprios EUA existiram. Ou se os EUA reais não seriam aquilo que Nova York e Los Angeles chamam de F.O.T, "flying over territory", o território que só serve para se passar por cima, de avião. O que nós, brasileiros, sabemos da gente que vive nesse imenso F.O.T. e que, pelo visto, está em massa em Milwaukee, apaixonada por Trump?

Eu me pergunto também se muitos americanos não se estarão fazendo essa mesma pergunta e suspeitando de que, até agora, viviam numa América do era uma vez.