Talvez, antes da pandemia de covid-19, o papel do Conselho Federal de Medicina (CFM) no debate político não fosse colocado à mesa. Muito provavelmente porque o CFM atuava principalmente no que cabe a um conselho profissional, que é fiscalizar e disciplinar o exercício da profissão. O fato é que, desde que se tornou trincheira da extrema direita, esse conselho de classe tem servido para avalizar discursos negacionistas e anticiência.
Recentemente, vimos a bandeira antiaborto sendo hasteada pelo CFM, por meio da Resolução n. 2.378/2024, que proíbe os médicos de realizarem o procedimento da assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas, decorrentes de estupro. Essa medida proíbe um procedimento seguro e respaldado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), além de fazer parte de protocolos internacionais para casos de aborto legal. No entanto, ressalta-se que não cabe ao CFM legislar no país, nem é coerente um conselho de medicina abraçar uma ideologia anticiência, a fim de levantar as pautas do bolsonarismo.
Apesar de derrubada pelo STF, a resolução antiaborto do CFM serviu de base para o Projeto de Lei 1904/2024. Conhecido popularmente como "PL do estupro", tal projeto busca proibir o aborto a partir de 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro. A repercussão negativa que esse PL encontrou na sociedade fez com que o próprio presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, entrasse em defesa do PL antiaborto com argumentos meramente morais e sem evidências científicas. Em sessão de debate na câmara, José Hiran chegou a afirmar que a autonomia da mulher deveria ter limites e que a constituição coloca a defesa da vida como dever da sociedade.
Por outro lado, durante a pandemia de covid-19, o mesmo CFM defendeu a autonomia médica irrestrita, uma autonomia que o profissional da medicina teria para, até mesmo, prescrever medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 e para a realização de práticas que poderiam agravar o quadro de pacientes com covid-19 e inclusive levá-los à morte. Apesar de o CFM ter afirmado por diversas vezes que não estaria recomendando o tratamento com cloroquina e hidroxicloroquina, a defesa da autonomia médica, para prescrever esses medicamentos no tratamento da covid-19, por meio de pareceres e declarações, deixou claro que o posicionamento do CFM estava direcionado a respaldar essa prática.
No início do enfrentamento à pandemia de covid-19, os medicamentos contendo cloroquina e hidroxicloroquina chegaram a ser cogitados como promissores no tratamento da doença. No entanto, diversos grupos de pesquisa realizaram estudos clínicos para avaliar a eficácia desses medicamentos na covid-19 e os resultados apontaram que os medicamentos não eram eficazes para tratar a doença. Diante das evidências científicas acumuladas, era esperado que o CFM adotasse a postura que lhe cabe, alinhando-se ao discurso pró-ciência e repudiando o uso de tais medicamentos no tratamento da covid-19. Não foi o que aconteceu. O CFM embarcou na pauta ideológica do bolsonarismo e continuou atuando na promoção do negacionismo científico. Não à toa, a alta cúpula do CFM não apenas se calou diante da política negacionista de Jair Bolsonaro, como também entrou em defesa do ex-presidente em diversas manifestações públicas durante a pandemia.
A atuação anticiência do CFM não se concentrou apenas na defesa da autonomia médica para prescrever medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, essa atuação se estendeu acobertando o crescimento do movimento antivacina dentro da classe médica. À medida que a pandemia avançava, grupos de pesquisa no mundo todo testavam possíveis candidatos vacinais e diversas tecnologias de vacinas que poderiam barrar o avanço da doença. E conseguimos! Ainda em 2020, os estudos clínicos com algumas tecnologias vacinais apontaram que a eficácia das vacinas contra a covid-19 poderia diminuir a gravidade da doença e, consequentemente, reduzir o número de óbitos. Os estudos, que também avaliaram a segurança das vacinas, apontaram que a vacinação da população era o caminho para o controle da crise sanitária. Apesar de as evidências científicas comprovarem que as vacinas eram seguras e eficazes, alguns médicos e políticos alinhados ao bolsonarismo contestavam a segurança e a eficácia das vacinas contra a covid-19. O próprio ex-presidente se manifestou diversas vezes contra a vacinação, disseminando desinformação sobre as vacinas, em suas redes sociais e discursos oficiais. Políticos bolsonaristas, desde então, têm promovido uma agenda anticiência, negando as evidências científicas que atestam a eficácia e a segurança da vacinação. O negacionismo científico está disseminado na política, mas médicos atuarem contra a ciência chega a causar espanto.
A politização das vacinas tornou-se evidente quando vimos nas redes sociais postagens com desinformação sobre vacinas disseminadas por médicos bolsonaristas. As eleições de 2022 confirmaram que a atuação de alguns desses médicos realmente tinha um caráter político, visto que muitos figuraram entre os candidatos bolsonaristas a cargos eletivos.
Médicos que propagaram desinformação sobre as vacinas de covid-19 encontraram um abrigo seguro no Conselho Federal de Medicina. Embora o CFM não tenha atuado de maneira explícita para descredibilizar as vacinas contra a covid-19, esse conselho permitiu que médicos contestassem as evidências científicas que mostram os benefícios da vacinação. E não parou por aí. Quando, em 2023, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão da vacina de covid-19 no Programa Nacional de Imunizações (PNI), tornando obrigatória a vacinação de crianças, médicos e políticos bolsonaristas se manifestaram contra a medida. Desde a participação em audiência contra a obrigatoriedade das vacinas no Senado até o levantamento de opinião dos médicos sobre a obrigatoriedade da vacinação, o CFM vem cravando opiniões contrárias ao que diz a ciência. A obrigatoriedade da vacinação é uma medida de saúde coletiva que visa ampliar a cobertura vacinal e estimular a imunidade da população, controlando epidemias. Além da história ter mostrado a importância da vacinação para o controle de epidemias, ao longo dos anos a ciência trouxe dados que permitem concluir que as vacinas são as ferramentas que mais salvam vidas. Estudo recente encomendado pela OMS concluiu que, nos últimos 50 anos, as vacinas para diversas doenças salvaram mais de 150 milhões de vidas no mundo.
Desde que o Conselho Federal de Medicina foi tomado pela ideologia bolsonarista, até mesmo a vacinação da população, medida respaldada pela comunidade científica, vem sofrendo ataques de médicos antivacina, sem nenhum tipo de sanção aplicada pelo CFM a esses médicos. Em 2023, a Secretaria de Vigilância e Meio Ambiente do Ministério da Saúde enviou um ofício ao presidente do CFM questionando sobre quais medidas esse conselho de classe tomaria contra profissionais que divulgam discursos antivacina. Na resposta ao ofício, o conselho informou que promove campanhas de incentivo à vacinação e que, dentre os mais de 550 mil profissionais médicos no Brasil, os médicos antivacina são exceção. Afirmou ainda que, diante de profissionais que propagam desinformação sobre as vacinas, mediante uma denúncia nos conselhos regionais, os fatos serão apurados e, se julgado culpado, o médico poderá sofrer desde uma advertência até a cassação do registro. Entretanto, o fato é que não há nenhuma atuação do CFM para punir médicos que estão diariamente nas redes sociais divulgando conteúdos inverídicos sobre as vacinas. Essa omissão do CFM em coibir práticas contrárias às evidências científicas é uma atuação anticiência. O que se espera do CFM é a defesa de práticas baseadas em evidências científicas e não dar espaço para a sustentação do negacionismo da extrema direita brasileira.
É direito do paciente e faz parte da ética médica a promoção da saúde, por meio de práticas baseadas em evidências científicas. A ciência norteia a prática da medicina e é por meio da ciência que a medicina evoluiu de forma a garantir maior expectativa de vida, seja por meio da vacinação, seja por meio da descoberta de tratamentos eficazes para grande parte das doenças e dos agravos a que estamos suscetíveis. Portanto, negar a ciência implica negar a própria medicina.
O CFM deveria se alinhar à comunidade científica e se preocupar com o crescimento do negacionismo nas práticas médicas e com o avanço do movimento antivacina no Brasil. Todavia, a atuação desse conselho de classe profissional, desde 2020, tem sido nitidamente uma atuação política, voltada a promover a agenda anticiência do bolsonarismo. Embora o posicionamento político do CFM não represente a opinião da maioria dos médicos do Brasil, a classe médica vem sendo desgastada por um conselho que se tornou um "clubinho" de médicos em defesa da ideologia anticiência da extrema direita brasileira. Quando é que o CFM deixará de ser a trincheira do bolsonarismo e voltará seus olhos para a prática da medicina e a defesa da vida, exercendo o papel que lhe cabe e impedindo a atuação de médicos anticiência?
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