quinta-feira, 25 de abril de 2024

Esquerda se dividiu e errou antes do golpe de 64, Marcos Augusto Gonçalves - FSP

 Como se desenhava o campo da esquerda e como partidos, organizações e lideranças atuaram no período que antecedeu o golpe de 1964?

Em nova edição, atualizada e ampliada, de seu livro "A Esquerda e o Golpe de 1964" (Civilização Brasileira), o jornalista e biógrafo Dênis de Moraes leva ao leitor respostas para essas e outras questões que ele levantou para si próprio antes de sentar para escrever: Por que a esquerda perdeu? Como explicar o fracasso na mobilização pelas reformas de base? Por que os setores progressistas se apresentavam tão divididos? Por que as lideranças populares foram sobrepujadas na arena ideológica em plena fase de ascensão do movimento de massas? Por que não resistiram?

As conclusões podem ser deduzidas de uma boa amarração interpretativa de pesquisas abrangentes e de depoimentos de personagens que participaram ativamente do momento histórico, entre os quais Celso Furtado, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Darcy Ribeiro, Herbert de Souza, Frei Betto e Luiz Carlos Prestes.

O autor nos mostra um quadro de rachas e controvérsias, com duros embates entre as diversas correntes, mais veementes até, como observa Herbert de Souza, do que os que se travavam contra a direita.

Não eram poucas as contestações à nova diretriz do Partido Comunista Brasileiro que pregava a necessidade de uma etapa democrática, nacional e burguesa, no caminho para uma posterior revolução socialista. A proposta de uma aliança com a chamada burguesia nacional para combater o imperialismo e consolidar um regime nacional-popular passou a ser refutada por organizações, entre outras, como a Polop e as Ligas Camponesas.

As Ligas, já sob a liderança de Julião, que pregava a reforma agrária radical "na lei ou na marra", mantinham relações estreitas com a revolução cubana, vitoriosa em 1959 sob a liderança de Fidel Castro, e aderiram à ideia de organizar focos guerrilheiros armados em diversos pontos do país –que nada fizeram de verdade.

Leonel Brizola, eleito governador do Rio Grande do Sul em 1962, vivia às turras com Miguel Arraes, de Pernambuco, e fazia campanha para dissolver o Congresso e convocar uma Assembleia Constituinte com a participação de "trabalhadores, camponeses, sargentos, oficiais nacionalistas e homens públicos autênticos", da qual deveriam ser excluídas "as velhas raposas da política tradicional".

Apostava-se, fantasiosamente, que um "dispositivo militar" legalista seguraria as pontas do oscilante ex-vice Goulart, enquanto investia-se com sua chancela em mobilizações pelas reformas de base e insubordinação de faixas subalternas das Forças Armadas, como marinheiros e sargentos.

O autor rechaça o bordão de que o golpe veio contra uma iminente ameaça comunista de tomada do poder, mas aponta que o ímpeto reivindicatório sugeria ruptura institucional e quebra de hierarquia militar.

Na ausência de uma avaliação mais realista das relações de força, acabou-se por oferecer à direita civil e grande parte do oficialato argumentos para fomentar uma intervenção das Forças Armadas.

Tudo, na realidade, foi muito mais complexo, como o livro bem expõe. Os acontecimentos se precipitaram numa correnteza de equívocos, voluntarismos, hesitações e erros de cálculo, num quadro de crise econômica com inflação em disparada, direita ativa e reflexos do cenário internacional da Guerra Fria.

As lições foram em boa parte aprendidas. Com Luiz Inácio Lula da Silva e o PT, a esquerda veio a encontrar uma expressão institucional representativa, estável e democrática, enquanto a direita acabou sucumbindo ao saudosismo golpista reacionário e tenta se impor "na marra". Como bem escreveu Celso Rocha de Barros, precisa-se mais do que nunca de uma direita democrática.

Lula segue conselho de Delfim Netto para evitar derrota no Congresso 22 anos depois, OESP

 

Foto do author Ricardo Corrêa

Em 2002, quando Lula venceu as eleições presidenciais após derrotas em 1989, 1994 e 1998, aliados do petista estavam em busca de conselhos de quem tinha experiência em estar do lado de quem comanda o País. Naquela ocasião, procuraram Delfim Netto, um dos maiores governistas da história brasileira (pelo menos em tempo dedicado a governos). Então deputado federal, Delfim tinha sido ministro da Fazenda, embaixador, ministro da Agricultura e do Planejamento durante duas décadas de gestões no período da ditadura militar. Ele aceitou a provocação dos petistas que diziam que estavam acostumados a ser oposição e queriam saber o que era o mais importante para quem iria passar a governar o Brasil.

Disse-lhes Delfim Neto, em uma visão naturalmente governista, que o Brasil corre riscos às terças, quartas e quintas, quando o Congresso se reúne. E que o segredo de um bom governo seria colocar bastante gente no Parlamento para obstruir, atrasar, dificultar, negociar e adiar toda e qualquer votação. Assim, evitando tais presentes do Legislativo, a vida do Executivo seria mais fácil.

Lula e Delfim Netto em encontro em 2006, quando o petista concorria ao segundo mandato
Lula e Delfim Netto em encontro em 2006, quando o petista concorria ao segundo mandato Foto: EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO CONTEÚDO

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O conselho certamente servia menos para a ditadura da qual Delfim participou do que para um governo democrático como os que vieram após a saída dos militares do poder. E certamente serve mais para o quadro atual do que para aquele de um Lula fortalecido pela onda vermelha que percorreu o Brasil na disputa de 2002. Aquele Congresso eleito junto com o petista tinha muito menos potencial de causar danos ao governo do que este de agora. Não por este ser pior ou nada do tipo, mas pelo fato de que foi construído com uma maioria de posições ideológicas diametralmente opostas à do eleito para o Executivo.

Nesta semana, os novos aliados de Lula seguiram o antigo conselho à risca. Fizeram o que era possível, não para vencer a batalha das votações dos vetos do presidente, mas para impedi-la. Negociaram até a última hora e, no fim, o novo adiamento da sessão do Congresso convocada para tal foi a maior vitória que um governo sem maioria poderia obter.

Hoje o Executivo sabe que suas conquistas no Parlamento serão limitadas. Nesta semana, o próprio Lula deixou isso claro ao reconhecer que o tamanho da base não comporta o que o governo gostaria de levar adianteJosé Dirceu admitiu a necessidade de compor com o centro e até com a centro-direita para que a gestão sobreviva. E Gilberto Kassab, presidente do PSD, um dos partidos que aceita justamente essa aliança em termos, afirmou que acha que o governo tem ido até bem na articulação, considerando o cenário que enfrenta no Parlamento.

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Nas condições atuais, o governo Lula sabe que só conseguirá avançar em pautas de forte apelo popular (como programas assistenciais) e em pautas de modernização econômica, como a reforma tributária, pois esta é uma agenda que está em sintonia com o que o Parlamento defende.

Nas pautas identitárias, naquelas em que há um choque claro entre as visões do governo e do Parlamento eleito, como é o caso da segurança pública, dos conflitos entre MST e a bancada do agro, dos indígenas ou mesmo da pauta ambiental, a chance de que o governo termine uma votação comemorando é pequena. O mesmo vale para tentativas de reverter reformas e ações das últimas legislaturas (como a reforma trabalhista ou o marco do saneamento) e, principalmente, para as disputas que envolvem o controle do Orçamento, como é o caso das emendas de comissão ou do calendário de empenhos desses recursos, ambos vetados pelo presidente e em vias de derrubada pelo Parlamento.

Cedo ou tarde, porém, os vetos terão que ser apreciados. O novo calendário prevê que isso se dê entre os dias 7 e 9 de maio, de acordo com o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco. Isso, claro, se o governo não conseguir de novo empurrar o prazo mais adiante. E a prudência diria que, quando esse momento chegar, o governo deveria gastar toda sua energia naqueles que impactam mais diretamente a gestão e o Orçamento, deixando de lado derrotas certas como o PL das saidinhas, que certamente será decidido depois em ação no Supremo Tribunal Federal (STF). O problema, para Lula, é que os conselheiros de hoje possuem bem menos experiência que o velho Delfim Neto, que deu, há mais de 20 anos, um conselho usado até hoje.

Foto do autor
Opinião por Ricardo Corrêa

Coordenador de política em São Paulo no Estadão e comentarista na rádio Eldorado. Escreve às quintas