terça-feira, 21 de novembro de 2023

Brasileiros pagaram toda a dívida da construção de Itaipu, e Paraguai teve receita, mostra estudo, FSP

 Alexa Salomão

BRASÍLIA

Análises dos fluxos financeiros e da repartição de energia da hidrelétrica de Itaipu mostram que os brasileiros pagaram integralmente a dívida da construção da usina binacional no rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai.

O pagamento da tarifa dessa energia no lado brasileiro está obrigatoriamente embutido em conta de luz, justamente para garantir que a dívida seria paga, e Itaipu, mantida.

Vista das comportas de um vertedouro de Itaipu Binacional; custos são bancados por brasileiros do Sul, Sudeste e Centro-Oeste
Vista das comportas de um vertedouro de Itaipu Binacional; custos são bancados por brasileiros do Sul, Sudeste e Centro-Oeste - Rubens Fraulini - 14.jan.2023/Itaipu Binacional/Divulgação

CALCULE O QUE FALTA PARA SUA INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA

A última parcela foi quitada em fevereiro deste ano. Foram pagos US$ 63,3 bilhões (R$ 313 bilhões) no total, US$ 35,4 bilhões (R$ 175 bilhões) a título de amortização de dívida e US$ 27,9 bilhões (R$ 138 bilhões) de juros. Os consumidores seguem mantendo a operação da hidrelétrica.

Um grupo de 31 distribuidoras que atendem dez estados e o Distrito Federal nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste repassa os custos para os brasileiros.

Cada país tem um tratamento para energia no seu mercado interno, mas as regras de funcionamento da usina estão definidas no Tratado de Itaipu, que completou 50 anos em 2023.

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Os itens financeiros ficam detalhados no chamado Anexo C desse documento, que começa a ser renegociado pelos dois país neste fim de ano.

Trata-se de um momento histórico, em que será possível redefinir o futuro da energia da usina.

Os cálculos sobre o fluxo financeiro de Itaipu foram realizados pelo Instituto Acende Brasil, um think tank da área de energia, espécie de centro de estudos dedicado ao desenvolvimento de ações e projetos que buscam reforçar a transparência e sustentabilidade do setor elétrico do país. O estudo já foi entregue ao Itamaraty, como contribuição para a revisão do Anexo C.

Os balanços financeiros divulgados pela própria empresa formam a base de dados.

O acompanhamento dos pagamentos e recebimentos líquidos de cada país mostram que o Brasil pagou para a hidrelétrica US$ 85,7 bilhões (R$ 428,9 bilhões) no período de 1985 a 2022. O Paraguai, por sua vez, recebeu US$ 5,9 bilhões (R$ 29,5 bilhões).

Segundo o estudo, o Paraguai não só garantiu seu suprimento de energia com a binacional como teve na usina uma importante fonte de receita.

"O Brasil pagou tudo, basta ver o fluxo do dinheiro. Pagou a dívida, a operação, o custeio. Tudo foi bancado pelos consumidores de energia do lado brasileiro", afirma Claudio Sales, presidente do Acende Brasil.

É preciso conhecer a dinâmica do consumo de energia e da contabilização dos diferentes custos da hidrelétrica para entender como algo assim é possível.

Pelo tratado, ficou acordado que Itaipu não teria lucro. Sua tarifa de energia deve ser o valor necessário para cobrir o Cuse (Custo Unitário dos Serviços de Eletricidade), ou seja, o valor exato para custear a hidrelétrica. O setor chama esse modelo de tarifa pelo custo.

Entre os grandes itens estão royalties pelo uso da água dos dois lados da fronteira (que é repassado a municípios), o custo de exploração, que na prática agrupa as despesas para operação e manutenção da usina, e os custos financeiros, cujo maior valor sempre foi a dívida contraída para construção da hidrelétrica. Historicamente, representou 60% das despesas.

O tratado também fixou que tudo em Itaipu é dividido meio a meio entre Brasil e Paraguai, despesas e benefícios.

O país vizinho, no entanto, até hoje não conseguiu consumir os 50% de produção de energia elétrica a que tem direito. No ano passado, o Paraguai ficou com 24% do total, por exemplo. A regra diz que a parcela não consumida por um parceiro é cedida para o outro mediante um pagamento.

O Brasil pagou no ano passado US$ 218,5 milhões (R$ 1,1 bilhão) por essa cessão, um valor considerado generoso.

O cálculo para definição do valor da cessão foi reajustado em 2009, após uma negociação bilateral que gerou muitos questionamentos no Brasil. A mudança elevou o fator de reajuste em favor do país vizinho, beneficiando o governo do então presidente Fernando Lugo, o único que conseguiu quebrar a hegemonia do Partido Colorado em 70 anos.

A título de explicação, o levantamento do instituto detalha o fluxo de receitas e despesas de Itaipu no ano passado. O Brasil foi responsável pela receita de US$ 2,8 bilhões (R$ 14 bilhões) enquanto o Paraguai, por US$ 495 milhões (R$ 2,4 bilhões).

A análise da contabilidade mostra que, considerando saldos financeiros de 2021, US$ 2,5 bilhões (R$ 12,5 bilhões) foram destinados a cobrir custos de manutenção da usina, como despesas com exploração e a dívida da obra.

Outros US$ 801 milhões (R$ 4 bilhões) foram para pagamentos fora da usina, por assim dizer, como royalties a municípios dos dois lados da fronteira e repasses a título de remuneração das empresas estatais que respondem pela usina, no Brasil, ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional), e, no Paraguai, Ande (Administração Nacional de Eletricidade).

Somando todos os repasses para o Paraguai, incluindo o valor da cessão, e fazendo um paralelo com a receita que ele destinou, o parceiro do Brasil ficou, no ano passado, com um saldo positivo de quase US$ 15 milhões (R$ 75 milhões), mostra o levantamento da entidade.

No balanço geral do ano, o Brasil foi responsável por 85% das receitas de Itaipu, adquirindo 76% da energia gerada. No total, 64% dos repasses da hidrelétrica destinam-se ao Paraguai.

"Quando olhamos o fluxo total líquido, o Paraguai recebeu não apenas energia, mas também pagamentos. Desde que Itaipu começou a operar apenas em um ano, 2021, o Paraguai não teve receita", diz Richard Hochstetler, diretor de assuntos econômicos e regulatórios do instituto, que coordenou o trabalho.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa de Itaipu disse que a empresa não conhecia o estudo e, por isso, não o comentaria.

Brasil e Paraguai dariam início às discussões sobre o Anexo C na quinta-feira (26), em uma reunião no Ministério de Minas e Energia, em Brasília, que contaria com a presença dos presidentes da binacional de cada lado da fronteira.

Em paralelo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente paraguaio, Santiago Peña, também fariam um encontro para tratar do tema. O governo brasileiro, no entanto, pediu o adiamento.


QUEM PAGA PELA ENERGIA DE ITAIPU NO BRASIL

Consumidores de 31 distribuidoras em dez estado e no DF são obrigados por lei a incluir na conta de luz a tarifa da usina binacional

São Paulo

  • Enel SP (Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo)
  • EDP SP (São Paulo Distribuição de Energia)
  • Elektro (Neoenergia Elektro)
  • CPFL Paulista (Companhia Paulista de Força e Luz)
  • CPFL Santa Cruz (Companhia Jaguari de Energia)
  • CPFL Piratininga (Companhia Piratininga de Força e Luz)
  • ESS (Energisa Sul-Sudeste)*

Rio de Janeiro

  • Light
  • Enel RJ (Ampla Energia e Serviços)
  • EMR (Energisa Minas Rio, antiga EMG)*

Minas Gerais

  • Cemig (Companhia Energética Minas Gerais)
  • CPFL Santa Cruz (Companhia Jaguari de Energia)
  • DMED
  • EMR (Energisa Minas Rio, antiga EMG)*
  • ESS (Energisa Sul-Sudeste)*

Espírito Santo

  • EDP ES (Espírito Santo Distribuição de Energia)

Mato Grosso

  • EMT (Energisa Mato Grosso)


Mato Grosso do Sul

  • EMS (Energisa Mato Grosso do Sul)

Goiás

  • Celg (Equatorial Goiás)
  • Chesp (Companhia Hidroelétrica São Patrício)

Distrito Federal

  • NDB (Neonergia, antiga CEB)

Paraná

  • Copel
  • Cocel (Companhia Campolarguense de Energia)
  • CPFL Santa Cruz (Companhia Jaguari de Energia)
  • Forcel (Força e Luz Coronel Vivida)
  • ESS (Energisa Sul-Sudeste)*

Santa Catarina

  • Celesc (Centrais Elétricas de Santa Catarina)
  • DCELT (Distribuidora Catarinense de Energia Elétrica, antiga Ienergia)
  • Cooperaliança (Cooperativa Aliança)


Rio Grande do Sul

  • CEEE distribuição (Equatorial Energia)
  • DEMEI (Departamento Municipal de Energia de Ijuí)
  • Eletrocar (Centrais Elétricas de Carazinho)
  • ELFSM (Empresa Luz e Força Santa Maria)
  • RGE Sul
  • Nova Palma Energia
  • Muxenergia (Muxfeldt Marin & Cia)

*A distribuidora aparece em mais de um estado porque tem área de abrangência regional
Fonte: Aneel

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Presidente do PT instiga militância contra jornalista do Estadão, OESP

 A presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, usou seu perfil no X (ex-Twitter), neste domingo, 19, para instigar a militância contra o Estadão e a jornalista Andreza Matais, editora-executiva de Política e chefe da sucursal do jornal em Brasília. Os ataques se devem às reportagens publicadas pelo Estadão sobre reuniões de Luciane Barbosa Farias, a “dama do tráfico amazonense”, com secretários do Ministério da Justiça, em março e maio deste ano. Luciane é casada com Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, líder do Comando Vermelho no Amazonas.

Gleisi compartilhou texto de um site simpático ao governo Lula, com informações falsas sobre o processo de produção das reportagens do Estadão, que constariam de uma denúncia feita ao Ministério Público do Trabalho. Inúmeros usuários do X recorreram à função “adicionar contexto” da plataforma, para mostrar que a acusação utilizava prints do site para envio de denúncias do MPT. Qualquer pessoa pode publicar nesta página sem verificação e sem o envio real da denúncia.

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, compartilhou em suas redes informações falsas sobre o processo de produção das reportagens do Estadão
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, compartilhou em suas redes informações falsas sobre o processo de produção das reportagens do Estadão Foto: ViniLoures

A postagem da presidente do partido do governo e deputada federal teve mais de mil compartilhamentos e passou dos mil comentários, até o fim da noite de domingo. Outros políticos, incluindo o ministro da Justiça, Flávio Dino, e influenciadores de esquerda compartilharam a mesma matéria postado pela petista. À tarde, o youtuber Felipe Neto direcionou nova onda de ataques a Andreza Matais, em post que expôs a imagem da jornalista. Menos de duas horas depois, Neto apagou a postagem, substituída por outra de teor similar, tendo apenas o jornal como alvo.

Estadão estuda ações legais em resposta à campanha de difamação promovida contra seus jornalistas.

“A reação furiosa orquestrada nas redes sociais contra jornalistas do Estadão em nada diminui a qualidade da apuração da reportagem sobre as intimidades da dama do tráfico com altos funcionários públicos. Ela mostra apenas a incapacidade de certos setores de conviver com o jornalismo independente”, afirmou o diretor executivo de jornalismo do Grupo Estado, Eurípedes Alcântara.

Política

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“Todo um ódio foi disseminado a partir de um print de um formulário de denúncia preenchido com informações falsas. Para agravar, trata-se de um ataque que, mesmo anônimo, virou matéria. Não é a primeira vez que uma mulher jornalista é alvo de uma rede antidemocrática. Infelizmente, pode não ser a última”, disse Andreza.

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O ataque em massa motivou críticas de jornalistas de vários veículos e foi condenado por profissionais de diferentes áreas.

“Esperava-se que a prática de destruir reputações em vez de debater os argumentos tivesse sido interrompida depois da última eleição. Infelizmente, isso não ocorreu. A melhor maneira de lidar com as divergências é com mais liberdade de imprensa, não menos. Preocupa a perseguição de pessoas em vez do debate sobre as ideias e os fatos”, disse o economista Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper e ex-Secretário de Política Econômica do primeiro governo Lula. Lisboa procurou o Estadão para prestar solidariedade ao jornal e a Andreza.

“Com essa campanha, com direito a foto da Andreza Matais e engajamento de superinfluenciador nacional, oficialmente recomeçam as campanhas governamentais para assediar e queimar jornalistas (no feminino), certo? Só que sob nova direção”, escreveu no X o cientista político Wilson Gomes.

Ministério da Justiça admitiu erro e mudou procedimento para reuniões

Luciane esteve pela primeira vez no Ministério da Justiça em março, em uma reunião com Elias Vaz, secretário Nacional de Assuntos Legislativos. Ela voltou dia 2 de maio, para reunião com Rafael Velasco Brandani, titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).

Na reportagem que revelou o caso, publicada em 13 de novembro, o ministério de Flávio Dino confirmou a presença da “dama do tráfico” na comitiva para ambas as reuniões, mas afirmou que era “impossível” o setor de inteligência detectar previamente a presença dela.

O ministro da Justiça Flávio Dino determinou mudanças no protocolo de visitas do ministério após publicação da reportagem do Estadão
O ministro da Justiça Flávio Dino determinou mudanças no protocolo de visitas do ministério após publicação da reportagem do Estadão Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

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Horas depois, diante da repercussão do caso, Vaz assumiu para si a culpa pela entrada de Luciane no ministério. “Se teve algum erro, esse erro foi de minha parte por não ter feito uma verificação mais profunda das pessoas que eu iria receber”, disse, em entrevista coletiva. “(O ministro Flávio Dino) me chamou a atenção, disse que eu deveria tomar mais cuidado com as pessoas que recebo”, prosseguiu.

Ainda no dia 13, o ministério elaborou portaria alterando as regras de acesso à sede. As novas normas exigem: envio de nome e CPF dos participantes de reunião ou audiência com antecedência mínima de 48 horas; reuniões ou audiência devem ser solicitadas por e-mail para fim de avaliação; todo visitante deve ser atendido na recepção do Palácio da Justiça ou dos anexos para identificação e orientação.

“Não adianta tentar reescrever essa história. Fatos são fatos e esses fatos foram confirmados pelos próprios envolvidos, tanto que um deles se desculpou publicamente e o Ministério da Justiça mudou as regras de entrada de visitantes depois da primeira reportagem”, afirmou David Friedlander, diretor de governança editorial e qualidade do Estadão.

Além do Ministério da Justiça, Luciane esteve na Câmara dos Deputados e no Conselho Nacional de Justiça. No início de novembro, participou de evento em Brasília sobre prevenção e combate à tortura com passagens e diárias custeadas pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

“As reportagens são irretocáveis na origem, apuração e execução; são inegavelmente relevantes. Revelam o perigoso encontro entre o relaxo na triagem de quem tem acesso à administração federal e a vontade do crime organizado de interferir na política. Ao invés de trabalhar para mudar essa realidade inconveniente, opta-se, mais uma vez, pelo caminho dos ataques baixos e orquestrados contra quem fez - e continuará fazendo - seu trabalho corretamente”, disse Leonardo Mendes Júnior, diretor de Redação do Estadão.

“Inteligência artificial traz risco igual à questão climática”, diz especialista Eduardo Matias, IstoÉ Dinheiro

Duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti (pelos livros A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado Soberano à Sociedade Global e A Humanidade Contra as Cordas: A Luta da Sociedade Global pela Sustentabilidade), Eduardo Felipe Matias acaba de passar um ano nas universidades californianas Berkeley e Stanford pesquisando especialmente inteligência artificial, tema central de seu próximo livro. “Ela já é, e será exponencialmente mais, decisiva para todos os governos, todas as instituições e em especial todas as empresas”, disse Matias, que é doutor em Direito, sócio responsável pela área empresarial do escritório Elias, Matias Advogados.

DINHEIRO — Parece consenso que os dados e seu uso por meio de inteligência artificial (IA) são determinantes para quem detém o poder, seja político ou econômico. Quais os ganhos e os riscos dessa situação?
EDUARDO FELIPE MATIAS — Você tem dois fatores de atribuição de poder hoje, a inteligência artificial e os dados, que estão interligados, porque os dados servem para alimentar os algoritmos. A inteligência artificial é o que a gente chama de tecnologia de propósito geral, por isso é muito comparada com a eletricidade, porque o impacto que ela traz é para toda a sociedade e é enorme.

Esse é o tema de seu próximo livro, certo?
Exatamente. E aí vem uma questão: a gente acredita que as decisões são tomadas por livre arbítrio. Só que a persuasão que os algoritmos promovem permite manipular as pessoas a ponto de esse livre arbítrio não ser mais tão livre. Então, as pessoas acreditam que estão tomando decisões, mas elas estão sendo guiadas pelos algoritmos.

Quais os riscos?
A democracia fica em risco. Esse é um lado. Outro lado, evidentemente, é o quanto governos podem usar esse poder pra tomar decisões ou mesmo conduzir a opinião pública para decisões que eles [governos] defendam. Sem dúvida, plataformas podem servir de instrumento para esse tipo de manipulação. Sem dúvida, há tentativas.

Há risco para a própria democracia?
Existe o problema das deepfakes [manipulação refinada de imagens e sons] que é algo que a gente não está nem aí… Imagine numa véspera de eleição que você pode colocar alguém falando algo que você não esperaria, que nem é verdade e, com isso, a pessoa perde votos. Então, eu acho que sim, que a tecnologia, se não for bem controlada, pode colocar a democracia em risco.

Uma situação totalmente nova?
Fake news sempre existiram. A diferença é que hoje, como tudo na internet, ganham volume e rapidez. É mais difícil controlar. Você nunca conseguiria soltar um boato para o Brasil inteiro na véspera de uma eleição 50 anos atrás. Hoje consegue por meio da internet. Esse é um ponto. Outro, grave também, é que você assiste ao aumento do autoritarismo, com governos populistas. Isso é muito beneficiado pela tecnologia. Pegue o reconhecimento facial e veja o que acontece com governos que detêm essa tecnologia, como no caso da China. Permite conhecer [e vigiar] o seu cidadão, ter um domínio sobre ele.

Já existe algum debate avançado sobre esse tema?
Existem algumas tendências importantes. Uma é inteligência artificial explicável, outra é inteligência artificial responsável, com obrigações como auditorias e relatórios de impacto. Então você não pode lançar um produto que possa afetar a sociedade sem considerar o impacto disso. Aí a gente entra um pouco na regulação que está sendo feita no Brasil: o quanto você pode ir no detalhe dessas inteligências artificiais? Nem entendemos direito como elas funcionam. Você talvez tenha que pensar em outras questões, como mecanismos de controle, mecanismos de avaliação de como aquilo funciona, para poder fazer com que a gente saiba o quanto elas são positivas.

Porque podem trazer soluções para problemas complexos…
Soluções importantíssimas para a mudança climática. Você tem captura de carbono, energia renovável, você tem produção de alimentos, soluções para a saúde. São incontáveis os benefícios.

“O autoritarismo é muito beneficiado pela tecnologia. Veja o que acontece com governos que adotam o reconhecimento facial, como no caso da China. Ela permite conhecer o cidadão, ter um domínio sobre ele.’’

E mesmo assim é necessário regular?
Regular de uma forma muito rígida talvez não seja a melhor solução. Tem que entender como funciona. Não será fácil porque o primeiro fator é a imprevisibilidade. Se é imprevisível, como regular? Esse é o primeiro problema. O segundo problema é você ter essa dificuldade em acompanhar a evolução. A inteligência artificial progride muito rapidamente. E o processo legislativo é lento. Principalmente porque ele é legítimo. E a questão maior deve ser a internacionalização. Porque se não for internacional, não adianta. Você pode ter alguns lugares em que a tecnologia é desenvolvida sem freios, e aí o risco vai continuar existindo, porque ela prolifera muito rapidamente. Mas talvez ter um guarda-chuva internacional possa servir como uma espécie de guia para que, enfim, regulações locais aconteçam a partir de premissas. Mas isso não vai acontecer.

Por quê?
A gente demorou muito para ter um acordo global sobre o clima. E esse acordo, infelizmente, pouco é colocado em prática. Então, assim, na prática, a gente pode ambicionar ter várias rodadas de negociação para ter um acordo sobre intervenção artificial global, mas a gente sabe que vai demorar e que não necessariamente vai ser seguido. Mas a gente tem um grande problema global e precisa de um tratamento global.

Há um grande impacto sobre pessoas, empresas e governos. Esse debate já está bem compreendido?
Todos começam a perceber como os dados são importantes, a ter compreensão até em relação à privacidade. Os dados estão cada vez mais sendo acumulados ­— desde o celular no bolso até a internet das coisas, dados que estão na sua geladeira —, mas você tem um tipo de empresa que domina, tanto os dados quanto a inteligência artificial, que são as Big Techs, as grandes empresas de tecnologia.

E aí entra a questão de concentração de poder?
Vamos pegar o poder econômico primeiro. Essas empresas têm uma riqueza muito grande. Isso vem da concentração de dados e do uso deles. Um exemplo: são 9 bilhões de buscas diárias realizadas no Google. Junte duas outras informações: a de que elas investem US$ 223 bilhões anualmente em Pesquisa & Desenvolvimento, a maior parte em IA [o que leva também à atração dos maiores talentos], mais o investimento que fazem em outras empresas de IA. A conclusão é que elas estão dominando ainda mais o mercado.

Qual a falha de sistema que permitiu isso?
Tem um ponto importante aí. A desmaterialização dos negócios delas leva a que elas sejam globais por excelência. Essas empresas crescem, crescem, crescem de forma desmesurada e é preciso igualmente entender o que está acontecendo em relação à concorrência. Porque para a inovação é importante que você tenha empresas, startups, em condições de competir no mercado, de trazer soluções melhores. Só que a gente tem assistido a algo um pouco diferente disso. A gente assiste à formação de monopólios.

Como conseguir romper isso?
É muito difícil. Porque você tem o que se chama em inglês de Gatekeeper Power, que basicamente é o poder de porteiro, de controle dos conteúdos. Então, uma empresa hoje, se ela quer comercializar on-line nos Estados Unidos, ela depende da Amazon. Globalmente, Google, Meta e Amazon detiveram 64% da publicidade digital em 2022. Google 39%, Meta 18%, Amazon 7%.

Um poder essencialmente americano…
Não. Não se resume aos Estados Unidos. Talvez a gente tenha mais dados dos Estados Unidos, mas as chinesas Tencent, Baidu, até certo ponto a própria Alibaba, estão nesse jogo também. Sem falar na ByteDance, que tem o TikTok, e é considerada a startup mais valiosa do planeta, avaliada em US$ 300 bilhões. Todas indústrias de uso intensivo de dados.

Um novo equilíbrio que não chega a ser muito novo.
Uma situação em que Estados Unidos e China se destacam. Porque são os países que têm as empresas que dominam esse setor da tecnologia. E também são os países que mais investem em inteligência artificial. Então, existe uma nova corrida armamentista. E é quase inevitável que isso se retroalimente. Que cada vez mais esses países se destaquem em relação aos demais. Temos aí um desafio também de entender essa geopolítica.

Há outras consequências?
Em várias frentes. Uma delas: a mudança na divisão internacional do trabalho. Se você puder automatizar a sua fábrica, é mais interessante manter essa fábrica em um país desenvolvido, que tem gente especializada. Seu custo logístico é muito menor. Então, você tem aí um fim desse gap que estava sendo reduzido no auge da globalização, das cadeias produtivas globais, que mexe um pouco com essa divisão internacional do trabalho. Mais uma vez, os mais ricos ficam ainda mais ricos.

“Para a inovação é importante ter startups em condições de competir no mercado. O que a gente assiste é o oposto: a formação de monopólios’’

A legislação não acompanha a consolidação do poder econômico dessas empresas. Isso faz com que enfrentem até instituições do Estado, não é?
Você tem a mesma dificuldade no Brasil que tem nos Estados Unidos. E talvez o parâmetro diferenciado seja a Europa. Há três coisas separadas aí. Uma é a regulação de grandes empresas. Acho que existe um certo consenso de que não é boa a formação de monopólios, são mais do que entendidos os efeitos nocivos que um monopólio pode ter sobre a concorrência. Isso é uma coisa tratada, vamos dizer, numa caixinha. Outra questão é a regulação da inteligência artificial em si.

E a terceira?
Quando as redes sociais foram invadidas por discursos extremados e desinformação, se tornando um ambiente tóxico, começou a haver uma autorregulação e isso foi vendido como se fosse suficiente. Não é simples regular esse tipo de situação. Ao exigir que essas empresas controlem demais o conteúdo, corre-se o risco de que elas passem a se tornar censores. Tornando-se censores, com o poder que elas acumulam, será um poder maior ainda de começarem a controlar o discurso público.

Ou seja, o efeito colateral ficaria pior?
Na prática, não é simples regular esse assunto. É preciso ter muito mais diretrizes. Não se pode impedir o debate de acontecer. A sociedade tem que discutir.