segunda-feira, 5 de junho de 2023

FRANCISCO LUIZ SCAGLIUSI Irresponsabilidade urbana, FSP

 Francisco Luiz Scagliusi

Doutor em arquitetura e urbanismo (USP), é consultor em legislação ambiental e urbana e ex-professor de arquitetura e urbanismo

O que pretende a proposta apresentada pela Associação Brasileira de Incorporadores (Abrainc) —e aceita pelo relator do projeto de revisão do Plano Diretor de São Paulo, vereador Rodrigo Goulart (PSD)— com a ampliação na área das Zonas de Estruturação da Transformação Urbana (ZEUs) ao redor dos eixos de transporte?

ponto crucial é a alteração dos atuais 600 m de raio, que passariam para 1.000 m, perfazendo um círculo de 2.000 m de diâmetro —o que representa um aumento de 2 milhões de m2— ou de 180% na superfície para cada ZEU!

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Verticalização em eixos de transporte é tema da revisão do Plano Diretor de São Paulo - Eduardo Knapp - 17.jan.2022/ Folhapress - Folhapress

proposta dos incorporadores altera radicalmente o que institui o Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade no capítulo que trata "Da Estruturação e Ordenação Territorial". A norma estabelece que o adensamento demográfico e urbano deve se concentrar ao longo da rede estrutural de transporte coletivo, os "Eixos de Estruturação da Transformação Urbana". Na prática, são faixas de até 300 m para cada lado dos corredores de ônibus e círculos de até 600 m de raio ao redor de estações de metrô.

Ocorre que a proposta de expansão das ZEUs em toda a capital irá se sobrepor às zonas mistas (ZM) e zonas predominantemente residenciais (ZPR), sendo que esta última deveria ser excluída da abrangência das ZEUs, a exemplo das zonas exclusivamente residenciais (ZER). Como consequência, todo o zoneamento da cidade será alterado. Vale dizer que zonas que funcionalmente operam uma transição nas densidades urbanas desaparecerão.

A proposta abole com o conceito de eixo de adensamento e sua relação com os meios de transporte de massa. Um exemplo dessa propositura, no caso da ZEU da estação do metrô da Vila Madalena, é o avanço da verticalização —sem limite de altura— sobre os bairros Vila Beatriz, Vila Ida, Vila Ipojuca, Vila Anglo, Jardim Vera Cruz, Sumarezinho, Pompeia e Perdizes, tradicionalmente residenciais e com gabarito de altura predominante até dois pavimentos.

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Não é pouco afirmar que as consequências serão nefastas diante da desorganização territorial promovida pelas alterações pretendidas na lei.

É importante recordar que, com a aprovação do PDE em 2014, bairros consolidados por toda a cidade, com casario predominantemente residencial, foram destruídos. Deu-se então início a um processo de verticalização selvagem, sem os estudos previstos no próprio plano sobre a saturação do sistema viário; o aumento da poluição ambiental e sonora; o agravamento da drenagem local; as características ambientais e geológico-geotécnicas; e a preservação de bens de valor histórico, cultural e paisagístico.

Da noite para o dia pipocaram torres de 30 a 40 pavimentos onde haviam conjuntos de residências construídas há mais de meio século. Não se trata de uma preservação nostálgica do ambiente construído, mas de pensar uma verticalização que garanta, além dos estudos citados, a memória afetiva do lugar —ou os aspectos imateriais marcados pelo uso coletivo.

As ZEUs não alcançaram —por imposição do mercado— os objetivos inicialmente previstos naquela norma: produção de habitação para quem prescinde do automóvel e, portanto, sem vagas; promoção de usos não residenciais; ampliação da oferta de serviços e equipamentos; incentivo ao uso de outros modais de transporte, como bicicleta.

Para piorar, o mercado se apropriou dos programas de subsídios governamentais para a produção de unidades que deveriam ser destinadas para habitação social, preterindo a enorme demanda existente.

O tecido urbano apresenta uma complexidade que não pode ser tratada de forma irresponsável, alterando as condições de uso e ocupação do solo sem estudos prévios aprofundados.

Ruy Castro - Em busca de Godard por Paris, FSP

 Há quem vá a Paris pelos museus, outros pelos vinhos e ainda outros pelos escargots. Mas há um tipo de turista, talvez merecedor de cuidados psiquiátricos, capaz de ir a Paris em busca de Jean-Luc Godard, o cineasta da Nouvelle Vague que foi para nós, garotos dos anos 60, o que devem ter sido Rousseau no século 18 e Baudelaire no 19. Godard morreu em 2022, por suicídio assistido, aos 91 anos. Os milhões de Gauloises que fumou em vida devem tê-lo induzido à morte tão precoce.

Fachada de edifício em Paris Edifício da capitalda
Placa da rua Campagne-Première, em Paris, cenário da sequência final do filme "Acossado" (1960), de Jean-Luc Godard - Heloisa Seixas

Quando digo em busca de Godard, refiro-me às ruas de Paris que ele frequentou nos grandes tempos e onde filmou cenas de seus clássicos. Hoje, com os muitos livros sobre sua obra, isso já não é difícil. Godard morava, por exemplo, na rue Saint-Jacques, nº 17, perto da Sorbonne, num último andar com vista para o Sena. E todos sabem que as sequências de Jean Seberg em "Acossado" (1959), vendendo o Herald Tribune na rua e caminhando ao lado de Jean-Paul Belmondo, foram filmadas durante vários dias na avenida dos Champs Élysées. Mas onde nos Champs Élysées?

Fachada de antigo edifício em Paris exibe no térreo o toldo azul de um café
O 146 da avenida Champs Élysées, em cuja calçada Godard filmou cenas de "Acossado" - Heloisa Seixas

Na altura do nº 146, onde, no 2º andar, ficava a redação da revista Cahiers du Cinéma, da qual Godard era cria e colaborador. Quebrava-lhe bem o galho, já que, à noite, ele podia guardar nela suas câmeras e traquitanas. E que rua é aquela na sequência final do filme, em que Belmondo, baleado, corre cambaleando e morre ali mesmo no asfalto? É uma rua curtinha, a Campagne-Prémière, entre os bulevares Montparnasse e Raspail.

Por onde Anna Karina tanto caminha em "Uma Mulher é uma Mulher" (1961)? Pelos bulevares Saint-Martin e Saint-Dénis. E onde, na Paris de 1965, Godard encontrou aquele hotel futurista a que chega Eddie Constantine no começo de "Alphaville"? É o tradicional Grand Hotel, na rua Scribe, nº 2, que Godard disfarçou filmando à noite e com refletores especiais. E muito mais.

O turista merecedor de cuidados psiquiátricos sou eu.

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