segunda-feira, 5 de junho de 2023

O G20 e a monotonia do sistema agroalimentar, FSP

 VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

alimentação tornou-se um vetor de disseminação das doenças que mais prejudicam a saúde humana e mais matam no mundo contemporâneo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência de enfermidades não contagiosas (pressão alta, diabetes, câncer e cardíacas) dobrou nos últimos 30 anos. Sobem a 17 milhões anuais as mortes decorrentes da má nutrição, mais que o dobro do total de vítimas da Covid-19 (7 milhões).

obesidade, que atingia pouco mais de 10% da população dos Estados Unidos no início dos anos 1970, chega hoje a 40% do total. E ela está crescendo no mundo todo. Os custos dos impactos da má nutrição na saúde humana e no meio ambiente são calculados, em documento publicado no âmbito da Cúpula sobre Sistemas Alimentares das Nações Unidas, em quase US$ 20 trilhões —mais que o dobro do valor do consumo alimentar global.

Selection of bad fat sources, copy space
Carboidratos refinados estão entre os principais responsáveis pelos casos de diabetes - Anaumenko/Stock Adobe - Anaumenko/Stock Adobe


Esses dados não poderiam ser mais paradoxais. Afinal, após a Segunda Guerra Mundial, a prioridade global (consagrada pela revolução verde dos anos 1960) consistia em aumentar a produção, a durabilidade dos produtos nas prateleiras e a garantia de sua sanidade. Tal prioridade foi, em parte, alcançada, contribuindo para aumentar a oferta agroalimentar.

Mas a base desse desempenho agropecuário e industrial da segunda metade do século 20 é a monotonia das paisagens agrícolas, das raças responsáveis pela maior parte da oferta de carnes e do próprio consumo derivado de produtos industriais. A humanidade conhece mais de 7.000 produtos comestíveis, dos quais mais de 400 são passíveis de cultivo. No entanto, 90% da alimentação humana concentra-se em 15 produtos e 60% em não mais que 4. Amplia-se a distância entre a produção alimentar e o prato das pessoas, o que compromete a valorização das culturas alimentares e culinárias locais.

Essa concentração representa imenso risco geopolítico: dois terços da oferta agropecuária estão em apenas cinco países, um problema sistêmico que a invasão russa à Ucrânia trouxe à tona. E ao homogeneizar largas extensões da paisagem, ampliam-se os impactos destrutivos dos eventos climáticos extremos, mostrando a baixa resiliência do atual modelo global de crescimento agropecuário.

PUBLICIDADE

A ideia de que a monotonia da oferta agropecuária poderia ser compensada pela adição de componentes que enriqueceriam nutricionalmente o alimento industrializado revelou-se uma armadilha, cuja denúncia está revolucionando as ciências da nutrição do século 21. Se na segunda metade do século passado a abordagem da obesidade se apoiava no excesso de calorias, relativamente ao gasto de energia das pessoas, os especialistas hoje chamam a atenção para o consumo excessivo e prejudicial de produtos fabricados com quantidade ínfima de alimentos e doses doentias de elementos que não fazem parte da natureza ou da cozinha e interferem no sistema metabólico de regulação do apetite, com consequências desastrosas sobre a microbiota intestinal.

A pesquisa brasileira é internacionalmente reconhecida como pioneira na descoberta da importância dos produtos ultraprocessados como promotores das doenças que mais matam no mundo. É ela que inspirou não só nosso Guia Alimentar como a maior parte dos adotados em mais de cem países do mundo.

G20 tem a responsabilidade de promover mobilização global contra a pandemia de obesidade, o que supõe profunda transformação não só na agropecuária mas, sobretudo, na qualidade daquilo que a indústria de alimentos oferece hoje à sociedade. Esta é a mensagem central do documento —elaborado pela Cátedra Josué de Castro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, e pelo Instituto Comida do Amanhã— acolhido pelo G20, que se reúne este ano na Índia (https://www.orfonline.org/research/promoting-diversity-in-agricultural-production/).

Após a Índia, será a vez do Brasil presidir a reunião do G20, em 2024: é fundamental que o combate à monotonia do sistema agroalimentar ocupe o epicentro da pauta.

Ricardo Abramovay
Professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP

Juliana Tângari
Diretora do Instituto Comida do Amanhã

Ana Paula Bortoletto
Professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro

Nadine Marques
Nutricionista e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro

Estela Sanseverino
Pesquisadora da Cátedra Josué de Castro

Luisa Gasola Lage
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/FSP/USP)

Ruy Castro - Revolução de touca, FSP

 Ótima entrevista de Teté Ribeiro com a cantora Wanderléa na Folha (30/4) joga reveladora luz sobre a Jovem Guarda como "movimento" nos anos 60 e dá hilariantes informações sobre seus líderes Roberto e Erasmo Carlos. Nada como perguntas curtas e objetivas para suscitar respostas francas e inesperadas.

Mulher loura de cabelos compridos e cacheados, vestida com malha amarela e calça estampada, faz gesto de "pare" com as mãos
A cantora Wanderléa em sua casa nos Jardins, São Paulo, dá entrevista à Folha - Marlene Bergamo - 25.abr.23/Folhapress

A Jovem Guarda nunca foi um movimento, nem mesmo musical. Era um programa de auditório de domingo à tarde na televisão, criado pelos poderosos publicitários Magaldi, Maia e Prosperi e destinado a vender não só discos, mas também botinhas, calças Saint-Tropez e minissaias. Ninguém dizia "Jovem Guarda" ao falar de "O Calhambeque", com Roberto, "Festa de Arromba", com Erasmo, e "Pare o Casamento", com Wanderléa. Era apenas iê-iê-iê, uma espécie de rock com acne, e o sonho de seus astros era sair na Revista do Rádio. E não tinha nada de revolucionário. Comparado ao que os estudantes estavam fazendo nas ruas —e na cama—, era alienado em política e caretíssimo em costumes.

Mas a cereja da entrevista é quando Wanderléa desmente os rumores de que, naquele tempo, mantinha um namoro com Roberto ou Erasmo. "Não tinha condição", diz ela. "Eu via os dois fazendo touca no camarim. Acabava com qualquer clima."

Fazer touca consistia em atarraxar à cabeça uma meia feminina de seda justíssima, para manter "lisos" os cabelos violentamente esticados a escova ou passados a ferro quente. A touca era indispensável para aqueles rapazes que se envergonhavam de seus cabelos espetados e sonhavam com as franjas celestiais dos Beatles. O iê-iê-iê, já tão pouco brasileiro como música, queria ser também ariano. Imagino o pavor de Roberto e Erasmo quando surgiu Ronnie Von com seu cabelo liso, longo e louro.

Quem enterraria o iê-iê-iê, no entanto, não seria Ronnie Von, mas o Tropicalismo, cujos líderes, muito mais radicais, dispensavam lenços, documentos, toucas e até pentes.

Hélio Schwartsman - De volta ao impeachment, FSP

 Foi Søren Kierkegaard quem afirmou que a vida, embora seja vivida prospectivamente (um dia após o outro), só pode ser compreendida retrospectivamente, isto é, quando analisamos os eventos pregressos longe das emoções e à luz do que sabemos atualmente. Algo parecido vale para os acontecimentos históricos.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 4 de junho de 2023, mostra, sob um fundo amarelo, a ex-presidente Dilma Roussef vestindo camisa vermelha e calça e sapatos pretos; ela está sentada numa poltrona verde lendo o livro "Operação Impeachment" e sorrindo.
Ilustração Annette Schwartsman

"Operação Impeachment", de Fernando Limongi, é uma obra que nos lança nesse exercício kierkegaardiano. Eu e a maioria dos leitores acompanhamos de perto os eventos que levaram ao afastamento de Dilma Rousseff. E essa foi uma experiência que vivemos prospectivamente. Algo bem diferente, e elucidativo, é revisitar esses acontecimentos conhecendo os resultados que produziram. Melhor ainda quando guiados por um autor do calibre de Limongi.

Ao longo de 180 páginas, Limongi detona alguns mitos. Mostra, por exemplo, que Dilma não era uma nulidade em termos de ação política. Ela reagiu politicamente às manobras para tolher-lhe o mandato e em várias disputas teve sucesso, ainda que tenha perdido a batalha final. O autor também oferece um bom cabedal de explicações convincentes.

Dilma caiu porque a coalizão que a sustentava foi rompida diante do pânico que a operação Lava Jato passou a instilar entre os parlamentares. Em algum momento, esses políticos decidiram que o governo já não era capaz de dar-lhes proteção e pularam fora. Limongi vai aos detalhes, incluindo as articulações entre Moro e os procuradores, as maquinações de Eduardo Cunha, as rivalidades entre grupos dentro do PT.

O que eu senti falta no livro foi da economia. Ela só aparece "en passant", mas, se há uma lição de Marx que não deveríamos esquecer é a de que a infraestrutura (economia) costuma prevalecer sobre outras forças sociais. Se a economia sob Dilma estivesse crescendo a 5%, 6% ao ano, acho que dificilmente teríamos tido o impeachment. Talvez nem a Lava Jato tivesse assumido as proporções que ganhou.