Sabe-se que todo pássaro é uma ave, mas nem toda ave é um pássaro. Ave é termo utilizado para nos referirmos a todos os animais pertencentes à classe Aves, enquanto pássaro serve para indicarmos indivíduos do grupo, ou melhor, da ordem Passeriforme. Entre as características dessa ordem destaca-se a capacidade de cantar, o que nem toda ave faz.
Da mesma maneira, ao reelaborar sua arte de compor e tocar violão com destreza, o artista Vicente Barreto se diferencia de artesãos, pois sendo artista ele nunca se repete.
Há muito o baiano Barreto desmistifica, por meio de bastante trabalho, estudo, pesquisa e dedicação, a malemolência injustamente atribuída a seus conterrâneos. Seus mais de 50 anos de sólida carreira comprovam o fato por meio de seus shows e mais de dez discos lançados.
O mais recente, "Paleolírico", não foge à regra. Tanto o show homônimo quanto o álbum com 11 faixas, lançado recentemente pelo selo Sesc, trazem muita novidade na arte de amealhar os sons.
O show, assistido na última quinta-feira (26) por este repórter no Sesc Santana, em São Paulo, comprova que o disco pode ser reproduzido no palco, mas sem se repetir, pois suas músicas transformam-se quando interpretadas por sua bela voz e maneira única de tocar o violão.
É bom frisar que repetição não faz parte do trabalho de Barreto. Como artista legítimo, o baiano criativo e trabalhador inova a cada disco, mas sem nunca deixar de lado sua essência firmemente moldada pelo bom gosto, suingue e experiências musicais adquiridas, ainda criança, ao ouvir o som da sanfoninha pé de bode na feira de sua cidade. Ou convivendo com o repertório dos bailes em que tocava, gravando com outros músicos ou acompanhando artistas como Tom Zé, de quem também é parceiro.
Parceria também é uma coisa muito respeitada pelo baiano que já compôs com muita gente da antiga e se renova com artistas da atual cena da MPB. Sempre gente de talento como Vinicius de Moraes (1913-1980), Paulo César Pinheiro, Paulinho Pedra Azul, Zeca Baleiro, Alessandra Leão, Rafa Barreto e Manu Maltez, entre outros, além de Alceu Valença, com quem Barreto divide as autorias de "Morena Tropicana", "Cabelo no Pente", "Pelas Ruas que Andei", "Tirana", "Dia de Cão", "Vou pra Campinas" e "Pirapora".
No show e no álbum houve a participação da cantora, compositora e percussionista pernambucana Alessandra Leão, destaque em tudo que faz, incluindo a contagiante "Quando Cheguei", composição dela e Vicente Barreto. Tem ainda a presença do artista plástico e compositor Manu Maltez, diretor artístico do disco e parceiro de Barreto em "Paleolírico", "Suçuarana", "Niéde Guidon" e "Sanfoninha Pé de Bode"; de Rafa Barreto (guitarra, sintetizador e coprodutor do disco), filho de Vicente, e parceiro em "Rasante Seco" e "Palavra Vital", além da participação dos músicos Caê Rolfsen (baixo, sintetizador e produtor do disco) Bruno Prado (percussão) e Gustavo Dalua (percussão).
A música "Flor de Cimento", parceria de Vicente Barreto com Zeca Baleiro, traz a voz e trechos do poema "Quantos Sacos de Cimento Há em Ti São Paulo" do poeta pernambucano João Flávio Cordeiro da Silva, conhecido pelo pseudônimo de Miró da Muribeca (1960-2022). Simplesmente arrebatadora, a canção remete a uma espécie de lamento, ou melhor, a um triste aboio urbano.
Enquanto "Rebatida", do próprio Barreto, ocupa o lugar de única instrumental do álbum e do show, "Forrózim", em parceria com Paulinho Pedra Azul, é a que finaliza o espetáculo, fazendo com que o público repita seu delicioso refrão: "É o vai e vem/ É o vem e vai/ É no forró que a gente dança, mas não cai".
Talvez a única repetição que cause enfado ao público que conhece Vicente Barreto, e ao próprio artista -que chegou a comentar no show- é o fato de as pessoas conhecerem suas músicas, mas não o conhecerem.
No entanto, há uma máxima que serve para tirar de seus fãs e do profícuo artista o aborrecimento que os molesta: "Pelas obras e não pelo vestido, é o homem conhecido".