Abril, nas estimativas da ONU, é o mês da ultrapassagem. No final de 2023, a Índia terá 1,428 bilhão de habitantes, contra 1,426 da China. Mais que um número, é um sinalizador. A população chinesa logo começará a decrescer, enquanto a indiana só atingirá o ápice (1,7 bi) em 2064. A China encara o "fenômeno 4-2-1": uma única criança para dois pais e quatro avôs; na Índia, pelo contrário, expande-se a parcela da população em idade ativa.
As tendências demográficas oferecem vantagem à Índia, num horizonte de décadas. Imediatamente, a ultrapassagem confere-lhe um triunfo simbólico, com impactos psicológicos sobre uma crônica rivalidade geopolítica.
Nos idos de 1955, o "espírito de Bandung", da conferência inaugural do Movimento dos Países Não-Alinhados, anunciou uma aproximação sino-indiana. Durou pouco: a guerra de fronteira de 1962 abriu uma funda ferida, deslocando a Índia para a cooperação econômica e militar com a URSS e selando a aliança sino-paquistanesa.
Três décadas mais tarde, após o fim da Guerra Fria e a implosão do Estado soviético, esboçou-se uma efêmera reaproximação. O movimento, porém, foi interrompido com a operação militar dos EUA no Afeganistão. A derrubada do regime do Talebã, aliado do Paquistão, estreitou as relações indo-americanas. Em 2007, a Índia ingressou no Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral), uma aliança forjada por EUA, Japão e Austrália como contraponto à influência chinesa no Indo-Pacífico.
A ascensão de Xi Jinping, em 2012, marcou um salto nas ambições chinesas. China First –a política externa do novo Grande Timoneiro estruturou-se sobre duas estratégias contraditórias. Globalmente, sob o conceito da Diplomacia de Grande Potência, a Índia deveria ser cortejada como parceira prioritária e afastada das iniciativas geopolíticas dos EUA no Indo-Pacífico. Regionalmente, sob a Estratégia de Vizinhança, destinada a converter a China em liderança asiática inconteste, a Índia precisaria se dobrar à hegemonia chinesa. O dilema, que segue sem resolução, envenenou as relações bilaterais.
Mais ou menos congelado desde 2008, o Quad reativou-se em 2017 e, quatro anos depois, numa mensagem direta a Xi Jinping, declarou como suas metas "um Indo-Pacífico livre e aberto" e "uma ordem marítima baseada em regras nos mares da China Oriental e Meridional". A adesão do governo nacionalista hindu de Narendra Modi ao comunicado assinalou uma nítida ruptura com a tradicional política indiana de não-alinhamento.
Meses antes do comunicado, em meados de 2020, confrontos na linha contestada de fronteira do Ladakh e do Tibete reacenderam a fogueira da rivalidade sino-indiana. No remoto vale do Galwan, junto à imponente cordilheira de Karakoram, escaramuças entre soldados deixaram 20 indianos e quatro chineses mortos. O incidente foi provocado pela construção de estradas e infraestruturas militares chinesas na faixa fronteiriça do Aksai Chin, uma "área sob disputa reconhecida", segundo a curiosa fórmula do jargão bilateral.
A China fala em isolar as disputas na fronteira da relação mais ampla entre os dois países. Entretanto, do ponto de vista da Índia, a estabilização fronteiriça é definida como condição indispensável para a normalização das relações. Depois dos confrontos, Modi baniu aplicativos controlados pelo vizinho e bloqueou vultosos investimentos chineses da chamada Nova Rota da Seda. No final de 2022, forças da Índia e dos EUA conduziram exercícios conjuntos no estado de Uttarakhand, nas cercanias do Tibete chinês.
Nos círculos de política externa do governo Lula prevalece a visão romanceada do eixo Sul-Sul, uma tentativa ilusória de atualização das doutrinas terceiro-mundistas do passado. Contudo, o "Sul Global" deve ser descrito como miragem: um campo de competição entre China e Índia, separadas por um abismo geopolítico