A palavra terrorismo está na ordem do dia. Foi utilizada pelo presidente Lula para descrever o ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Foi também assim que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, definiu. Parte do jornalismo adotou. Ainda assim, de acordo com a lei brasileira, terrorismo tem definição — e a ameaça de golpe que depredou os três palácios não caberia nela. E a questão não está apenas na lei. Não se usa essa palavra no Brasil desde que os militares a adotaram para se referir às guerrilhas revolucionárias de esquerda no tempo da Ditadura.
Ela sempre parece um exagero.
Mas será exagero? Essa é uma questão sobre a qual deveríamos nos dedicar com mais seriedade. Muitas democracias lidam ou lidaram com terrorismo e é sempre um abalo. Irlanda e Reino Unido, com o IRA, por umas três décadas. Espanha, idem, com o ETA. A Itália encarou as Brigadas Vermelhas, que chegaram ao ponto de raptar e assassinar o recém-destituído premiê Aldo Moro. Os Estados Unidos têm terrorismo interno, em geral vindo de supremacistas brancos, e o constante temor do externo. Mas nós, no Brasil, não. O país é por certo violento. Há chacinas policiais regulares, linchamentos são igualmente comuns, a barbárie não nos é estranha. Terrorismo, porém, não parece ter a ver com o Brasil. Não parece coisa nossa.
A Enciclopédia Britânica define terrorismo como “o uso calculado de violência para criar um ambiente de medo generalizado numa população para alcançar um objetivo político”. A Wikipédia vai no mesmo caminho — “o uso de violência criminosa para provocar um estado de terror ou medo, principalmente com o objetivo de alcançar objetivos políticos ou religiosos”. O FBI, a Polícia Federal americana, tem uma definição menos mistificadora e mais objetiva. “O uso ou a ameaça ilegais de violência contra pessoas ou propriedades para intimidar um governo, a população civil ou parte da sociedade com objetivos políticos ou sociais.”
É mais objetiva por uma razão fundamental: pegava-se metrô na Londres de 1975, na Madri de 1985 e, apesar do medo, ainda se comprou pão de manhã, revistas nas bancas e tomou-se muito metrô na Nova York ainda em setembro mesmo de 2001. Medo, ou mesmo terror, não é algo que se meça. Não dá para definir medo generalizado. Mas uso de violência para intimidar um governo ou um grupo de pessoas, aí é diferente. Qualquer um entende rápido quando um grupo que tem um objetivo bastante específico usa violência para intimidar e conquistar.
É só que o FBI não é a Polícia Federal — e a lei brasileira tira os bolsonaristas da reta. “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.” Em legalês, a lei 13.260 de 2016, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, se dá ao trabalho de listar nos parágrafos seguintes toda sorte de violência que poderia ser usada. Bombas, gases tóxicos, armas nucleares, até ataques cibernéticos. Tanto para, ao fim, se desmanchar no artigo segundo. “O disposto não se aplica à conduta em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional.”
“O Brasil conseguiu a proeza de tipificar o crime de terrorismo de forma a não abarcar criminosos que derrubam torres de transmissão como expressão de recusa do resultado de eleições legítimas e em exigência de instalação de um regime militar fascista.” A frase, do professor de literatura Idelber Avelar, da Universidade de Tulane, amarra o problema legal.
Nossa lei antiterrorismo diz, com todas as letras, que se o objetivo do terrorista for político, pode até parecer terrorismo, mas nos tribunais não é.
Qualquer definição de enciclopédia ou dicionário, de paper em criminologia, em ciência política, em sociologia — todas começam ligando a ideia de violência à da busca de um objetivo político. A Britânica sequer menciona o segundo objetivo mais comum de terroristas, que é o de uma pauta religiosa. A lei brasileira se dá ao trabalho de registrar que violência, quando política, não pode ser caracterizada como terrorismo. São quatro torres de transmissão que já foram derrubadas e um trio foi preso com uma bomba, que planejavam colocar no Aeroporto de Brasília no período do Natal. Para não falar do ódio expresso a tudo que simboliza a República brasileira cometido em 8 de janeiro.
Ódio mesmo. Vidraças de Niemeyer estilhaçadas, um Di Cavalcanti com três metros e meio de comprido perfurado a golpes de barra numa passada ligeira, o busto de Ruy Barbosa com o rosto esmagado, e a Constituição levantada ao ar como troféu do saque. Eles não sabiam que era uma réplica e não a original, assinada por Ulysses, como parecia ser. Foi um ato de ódio ao Brasil, de repulsa a tudo o que o Brasil representa. Literalmente foi, porque não se limitaram a atingir com brutalidade os prédios. Escolheram, dentro dos prédios, alvos muito específicos. O discurso dos vândalos é confuso, falam das quatro linhas da Constituição, dizem ser democratas, mas sua raiva teve coletivamente dois alvos claros. A cultura que produzimos e a democracia que construímos. Isto não é coincidência. Por ser um ato coletivo perpetuado por uma turba em descontrole, se os alvos foram a arte e ícones democráticos, coincidência não é. Atacaram o que odeiam, o que não os representa, aquilo que simboliza o que lutam contra.
O que pode ter sido coincidência é outra coisa — o busto do velho Ruy foi de longe o mais danificado. E o segundo a ter mais sofrido foi o de Joaquim Nabuco. Juntos, ambos, os dois sujeitos mais convictamente democratas da Primeira República. Mesmo que coincidência, diz muito.
Existe uma razão com a qual nem Ruy, nem Joaquim concordariam que violência para intimidar com objetivo político tenha sido tão explicitamente retirada da lei. O governo Dilma temia que movimentos sociais passassem a ser processados por terrorismo. A cada invasão do MST ou do MTST, a cada vidraça de banco quebrada, estátua de bandeirante queimada, ônibus incendiado, o risco estaria ali.
Cas Mudde, o cientista político holandês especializado em ultradireitas, faz a distinção entre os flancos radical e extremista tanto da direita quanto da esquerda. Direita e esquerda radicais não têm por objetivo a ruptura da Democracia. O que desejam é acelerar mudanças e estão dispostas a quebrar a lei, mesmo que usando de violência, para isso. Como seu jogo, embora no limite, continua dentro da democracia, os radicais compreendem que podem, inclusive, terminar presos. É o custo — não raro, fazem da prisão e julgamentos espetáculos políticos. Os extremistas são diferentes. Os extremistas desejam romper o sistema, rasgar a Constituição, mudar o regime.
Talvez não tenha passado pela cabeça da presidente Dilma e de seus assessores que, na pressa de proteger radicais de esquerda da Justiça, seis anos após terminassem por passar a mão na extrema direita.
O caminho do FBI foi o oposto do escolhido pelo governo Dilma. Precisava de uma definição clara e que fosse mais difícil de questionar. Se o objetivo é político e o método é de usar violência para intimidar, é terrorismo.
Em Brasília, no dia 8 de janeiro, houve o ápice de uma pressão constante que já dura quatro anos com este único objetivo. Intimidar, acuar, se impor pelo grito, pela força, pela arma.
Durante o governo Bolsonaro, normalizamos a relação entre violência e política de muitas formas. Um grupo político que tem na arminha com dedos seu gesto tomou o poder, o presidente fez discurso defendendo que cidadãos peguem em armas para resistir a prefeitos e governadores, o símbolo do partido que tentou criar era feito com balas de revólver. O número do partido, 38. Em cada discurso deixou claro que, em sua visão política, cidadão é aquele que concorda com o governante — para os outros, extermínio. Discursou duro sempre que pôde, declarou que não obedeceria a decisões judiciais, fez lives incontáveis aos gritos de fúria. Ser bolsonarista, nestes quatro anos, foi aproveitar cada oportunidade para aparecer nas redes sociais com armas na mão.
Claro que havia muito de teatro. Os discursos em fúria, quando criavam apuro político, logo vinham com um pedido de arrego. Num vídeo, Bolsonaro foi flagrado sem saber destravar a pistola que usava. Mas não importa se é teatro, porque política tem sempre muito de teatro. É tudo criação de símbolo com o objetivo de comunicar. E Bolsonaro soube comunicar.
O resultado do que passou quatro anos comunicando foi o 8 de janeiro em Brasília. Ele falou que era inconcebível a eleição de Lula. Afirmou que o Exército era seu. Deixou fincado que o artigo 142 da Constituição queria dizer que os militares podiam tomar o poder. Afirmou, e o repetiu inúmeras vezes, que “um povo armado não será escravizado”. Pois um naco de seu povo foi a Brasília.
E tratou de se impor pela violência em busca de um objetivo político.
Podemos desejar que a palavra “terrorismo” não deva ser empregada. Podemos tentar argumentar que chamar aquilo de “terrorismo” é exagero. Podemos concordar que, legalmente, “terrorismo” não é. Mais do que encher de medo uma população, porém, o que terroristas normalmente fazem é outra coisa. É fazer com que uma população vá lentamente se habituando com a violência na política. E assim se andou de metrô na Londres do IRA, na Madri do ETA, na Nova York daquele setembro e, sim, pais seguiram levando seus filhos para a escola todos os dias, em Tel Aviv.
Pois é. Nós talvez ainda não tenhamos percebido, mas o 8 de janeiro não foi um espanto. Esteve mais para espetáculo. É. A violência virou paisagem. Nos habituamos.