Jornalista, professor e engenheiro, é autor, entre outros, de "Lacres, Laços e Suspiros" (Reformatório)
Nunca fizera isso antes. Em homenagem ao poeta Roberto Bicelli, no bar-livraria Patuscada (SP), precedido por Carlos Felipe Moisés, eu também declamei um poema da geração das crianças traídas (malditos dos anos 1960, entre eles recém perdemos Claudio Willer). E defendi que poemas fossem lidos em silêncio para fazer sentido. Os poemas gregos eram orais, memorizáveis, e assim os reproduziam.
Contrariei o jovem que declama no zoom da pandemia, nos múltiplos saraus poéticos no país. Poetas, supus, escrevem basicamente para poetas ou iniciados. Generalista, errei. Na Rússia, há séculos, os poetas são vocais, influenciadores políticos e comportamentais. São expoentes sociais.
Quando contestam são perseguidos, patrulhados, banidos. Populares sabem de cor seus versos. E há estátuas, como a de Anna Akhmátova, de São Petersburgo, de qualidades inenarráveis. Majestática, ela decorou os poemas de seu marido judeu-lituano, Ossip Mandelstam, perseguido e defenestrado por Moscou. Por meio de sua privilegiada memória, ela salvou os poemas de Ossip fazendo-os chegar ao Ocidente.
A poesia vem amealhando importantes prêmios literários aqui e no mundo. Admita-se, são migalhas de reconhecimento. E seguem espantando e surpreendendo nas ondas da geografia e da história. Com razão, muitos torcem o nariz para a inclusão da política e da catequese nas artes. Pois os russos abrigam política em modos estéticos. Obrigam-nos a questionar o que é cultura, o que é civilização, crenças, de onde vem e a quem interessam.
Por aqui, o escrever contemporâneo pretende abordar as questões identitárias, indígenas, raciais, a desigualdade e o machismo. Os lugares de fala eurocêntricos e colonizadores encolhem nos novos cenários. No Leste, há que chorar a carnificina de seus meninos e meninas em guerras absurdas (Ucrânia, Chechênia, Armênia etc.). Refluem histórias de Stálin, que há cem anos matou de fome 3 milhões de ucranianos ruralistas, enquanto artistas denunciantes apodreciam na Sibéria. Refugiados são teores universais.
Jorge Luis Borges, genial argentino, criou um personagem —"El Memorioso"— que, a despeito de sua vontade, lembrava de tudo, com detalhes milimétricos. Nunca mais esqueceria de cada flor, de cada rosto que vira anos atrás. De tanto rememorar, o memorioso não possuía espaço para sentir. Desabou soterrado pelo pensamento, estrangulados os sentimentos.
PUBLICIDADE
Este tema é milenar e me absorve. Nele naveguei por 33 anos em que lecionei em Comunicações na Faap (mais 20 no Mackenzie e na FEI-PUC): meus debates giravam na impossibilidade de a um só tempo lembrar/pensar, pensar e sentir, razão e paixão. Assim aflorava em aula a primeira regra em literatura: inexiste regra alguma.
O poeta Décio Pignatari separava a palavra sentimental (sentir e mentalizar). O poeta Fernando Pessoa sustentava que pessoas têm ininterruptamente os seus mesmos transformados em outros.
Depois de 8 de janeiro de 2023, o sentir e pensar no Brasil não será o mesmo; é outro. Sofreu o que a poesia lusitana nomeou de "Outramento" em pilhas de "Outrarias". As ciências humanas estão nocauteadas pelo extraordinário no real, inalcançável e mutante, muito além da ficção.
Bolsonaro dá um tiro no pé.Bolsonaro dá outro tiro no pé. Os cinco maiores tiros de Bolsonaro no pé. Os dez maiores tiros de Bolsonaro no pé. Os maiores tiros de Bolsonaro no pé antes, durante ou depois das eleições. Etc. É o que o Google nos dá às palavras "Bolsonaro" e "tiro no pé". Referem-se às inúmeras vezes em que, desde a sua posse, Bolsonaro tentoufulminar as instituiçõese acabou fuzilando o próprio pé.
O tiro no pé é a consequência de uma aposta. Resulta de um lance alto, que pode dar certo ou não. O sensato seria primeiro calcular as probabilidades. Mas o verdadeiro apostador não faz isto. Ele joga às cegas, certo de que vai ganhar. O 7 de Setembro de 2021, por exemplo, foi um tiro no pé: Bolsonaro tentou o golpe, não encontrou respaldo e, brochíssimo, teve de se humilhar diante do STF.
Com Lula diplomado, vieram os ataques terroristas que Bolsonaro sempre insuflou. A invasão dos três Poderes a 8 de janeiro foi como submeter seu pé a um pelotão de fuzilamento mundial. Para completar, houve o post em que, de novo, ele contestou a lisura eleitoral e, com a nobreza de um tiro com bala de prata, a minuta do golpe entre os papéis de seu ex-ministro.
Durante todo o mandato, Bolsonaro metralhou seu pé e sobreviveu. Mas, agora, sem as ferraduras presidenciais, veremos como se vira com a Justiça nos calcanhares —todos os quatro.
Diante doaumento da população em situação de rua em São Paulo, a Prefeitura investe em casas modulares, de 18m², como opção de moradia para os sem-teto. A previsão é entregar 2 mil unidades até o fim deste ano – a primeira vila foi inaugurada em dezembro no Canindé, na zona norte. Outra frente será um auxílio, entre R$ 600 e R$ 1,2 mil, para quem hospedar pessoas em vulnerabilidade social.
Essas iniciativas fazem parte do decreto que cria o programa Reencontro, a nova política municipal para a população de rua, que deve ser publicado nos próximos dias. Com a pandemia e a piora da crise socioeconômica, o total de sem-teto saltou 31% entre 2019 e 2021 – são quase 31 mil sem ter onde morar, segundo o último censo da Prefeitura.
A gestão Ricardo Nunes (MDB) destaca a área social como um dos focos do seu mandato, mas no dia a dia os cidadãos veem o problema cada vez mais evidente nas ruas – já não é incomum flagrar famílias em barracas ou sob viadutos. Entre as críticas de especialistas, está a dificuldade do poder público de criar políticas integradas, em larga escala e de longo prazo para resolver o problema.
As casas modulares são diferentes dos abrigos: a ideia é que as pessoas fiquem lá por até dois anos. O programa é inspirado no conceito Housing First, que prioriza a moradia como ponto de partida para outros direitos sociais da população de rua, como educação, saúde e trabalho. Iniciado nos Estados Unidos, o movimento inspira iniciativas na Espanha, Canadá, Japão e França.
A primeira Vila Reencontro, no Canindé, foi erguida no antigo clube da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), perto do Shopping D, ao custo de R$ 2,796 milhões. São 40 unidades para 160 pessoas – todas estão ocupadas.
Casa mobiliada e com número
As casinhastêm banheiros, pias e são mobiliadas com camas, geladeiras, fogões com duas bocas e guarda-roupas. Há vasos de plantas na entrada das unidades. São estruturas metálicas, que lembram contêineres e, mesmo com o sol de rachar de sexta-feira, no dia da visita do Estadão ao local, não fazia calor excessivo no interior dos ambientes.
O foco são famílias com crianças, de até quatro pessoas e que estejam usando as ruas como moradia há menos de dois anos. Quem mora ali tem de respeitar algumas regras, definidas pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI), gestora do serviço. É preciso chegar antes das 22h, salvo exceções médicas ou profissionais, e mostrar carteirinha de identificação na portaria.
Por enquanto, eles não podem receber visitas – ponto de lamento para o mecânico Eduardo Severino Silva, de 30 anos, que vive ali há duas semanas com a mulher, Aline Souza, de 34, e as duas filhas – a Prefeitura afirma que a restrição é provisória e pode ser revista nas próximas assembleias de moradores. Por outro lado, eles têm Wi-Fi e espaço para as crianças brincarem.
O manobrista Ricardo Augusto Santos, de 43 anos, destaca que as casas têm número, o que significa um endereço para correspondência. “Quando você vive em um abrigo, sem endereço fixo, as empresas não chamam. Esse momento é de renovação para mim”, diz. Antes de viver ali, Ricardo, a mulher Gilmara e as duas filhas estavam no Centro de Acolhimento Temporário do Canindé.
Quem mora ali não pode beber nem usar drogas. Se há uso abusivo, serão atendidas por outros programas, como o Redenção e o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT), diz a Prefeitura.
A experiência da administradora na organização dos acampamentos de refugiados e migrantes venezuelanos em Roraima ajudou na criação de coletivos dentro da vila. Um morador de cada casa integra os grupos responsáveis pela horta, limpeza e alimentação. A autogestão é uma novidade para população de rua. No começo, as pessoas estranharam; agora, estão se acostumando. Durante a visita do Estadão, uma das moradoras varria a área de convivência.
Continua após a publicidade
Questionado sobre a disparidade entre o número de casas previstas e o tamanho da população de rua – as vagas representam cerca de 25% do total de pessoas sem-teto –, o secretário de Assistência Social, Carlos Bezerra Jr., cita outras iniciativas, como o aumento das vagas nos centros de acolhida e nos hotéis, passando de 1,7 mil para 3,3 mil, e a ocupação de prédios públicos desocupados, como seis construções da Fundação Casa. “Tiramos 50 pessoas das ruas por dia”, diz ele.
Diante do volume de pessoas em vulnerabilidade que chegam à cidade mensalmente – 600, nas contas do Município –, a secretaria quer criar um comitê metropolitano, com municípios da Grande São Paulo, para discutir e implementar políticas públicas para esse público.
Donos de imóveis vazios ou pensões são alvo de novo auxílio
Já o auxílio-reencontro funciona como uma ajuda financeira a quem acolher a pessoa em situação de rua. Ele oferece duas faixas diferentes: R$ 600 por pessoa acolhida ou R$ 1,2 mil por família (casal em união estável ou pai/mãe com um ou mais filhos).
Será direcionado a “locação, arrendamento ou hospedagem da pessoa em situação de rua, em unidades habitacionais completas ou parciais ou compartilhadas”, segundo o texto da minuta do decreto da nova política, ao qual a reportagem teve acesso. Na prática, o foco são proprietários de pensões com vagas ociosas; donos de imóveis vazios ou até mesmo pessoas que tenham um cômodo vago em sua casa. O auxílio será oferecido por 24 meses.
Bezerra Jr. diz que essa lei ainda está na fase de regulamentação e detalhamento técnico entre as secretarias envolvidas. Depois, o documento ainda precisa do aval do prefeito, por isso, ainda há questões em aberto. Entre elas, estão a frequência de acompanhamento assistencial dos inquilinos, a metodologia e a elegibilidade, o que especialistas veem como um dos principais desafios para uma ideia desse tipo. Entre os pré-requisitos para receber a mensalidade, por exemplo, está a permanência do acolhido longe do álcool e outras drogas.
Continua após a publicidade
Privacidade e autonomia são importantes, dizem especialistas
Para o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, seria interessante fazer ajustes no programa. “O projeto propõe autonomia, mas o local tem refeitório e uma administradora. Uma resposta mais adequada seria investir na locação social, que gera mais autonomia que um espaço institucional, com uma tutela”, afirma ele, referência no debate sobre atendimento a pessoas em situação de rua.
Na Vila Reencontro, são servidas quatro refeições diárias. A Prefeitura diz que a medida é apenas provisória e que as famílias serão cada vez mais autônomas.
Segundo Robson Mendonça, presidente do Movimento das Pessoas em Situação de Rua, é importante que sejam providenciadas habitações permanentes, mas as casas modulares “garantem individualidade e oferecem melhores condições que os albergues”.