segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Lula como contrapeso à ultradireita, Jorge Chaloub , FSP

 Jorge Chaloub

Professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

O segundo turno da eleição mais disputada do pós-1988 decidiu mais do que o novo presidente do Brasil. Em um pleito marcado pela sombra de práticas golpistas, como o uso eleitoral da Polícia Rodoviária Federal e o claro desrespeito a decisões judiciais, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) oferece um horizonte para a sobrevivência da ordem democrática de 1988.

Se o primeiro turno institucionalizou a ultradireita, fortaleceu o lugar dos aliados de Jair Bolsonaro (PL) neste campo e reduziu a força política da direita hegemônica nas últimas décadas, o segundo turno se destaca sobretudo por dois eventos: a impressionante demonstração de força política de Lula e mais uma didática demonstração de que o ataque às instituições democráticas não era apenas uma "cortina de fumaça" farsesca, mas elemento central da ação política do bolsonarismo.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no discurso da vitória, em São Paulo - Carla Carniel/Reuters

força política de Lula tem como evidência o ineditismo do seu feito. Trata-se, afinal, do primeiro a derrotar nas urnas um candidato à reeleição no Brasil. Mesmo ante todas as tragédias que marcaram o governo Bolsonaro e em face da sua ampla rejeição, governamental e pessoal, é difícil imaginar que outro líder político pudesse alcançar uma vitória em cenário tão difícil. O domingo de votação deixou bem evidentes algumas das razões dessa suposição. Os cerca de 2 milhões de votos de vantagem, neste sentido, representam um grande feito.

Bolsonaro não respeitou os limites democráticos e republicanos do uso da máquina pública em eleições. Fiel aos momentos em que afirmou "Eu sou a Constituição", ou se referiu às Forças Armadas como sua propriedade, ele utilizou os recursos, os funcionários e as prerrogativas do Estado brasileiro para fins eleitorais de modo nunca visto na Nova República. O candidato derrotado foi, todavia, ainda mais longe.

Com ataques ao sistema eleitoral, ao Judiciário e recorrente criminalização dos adversários, ele sempre transitou em uma fronteira ambígua entre a disputa eleitoral e o golpe de Estado. Por seus discursos e gestos, é razoável imaginar que a saída golpista não foi colocada em prática por razões de oportunidade e apoio político. Toda a atenção para a defesa da democracia é, contudo, necessária até o final do seu mandato, pois suas manifestações públicas tornam difícil imaginar uma transição institucional adequada e sugerem outras possíveis investidas autoritárias.

A terceira vitória de Lula e a quinta do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais da Nova República ocorrem, contudo, em condições muito diversas das anteriores.

A coligação vitoriosa, com o apoio oficial de 10 partidos no primeiro turno e 16 no segundo, assumiu a feição de uma efetiva frente ampla, composta por algumas das mais relevantes lideranças políticas dos últimos 30 anos. Compõem a chapa vitoriosa com Lula, ou o apoiam publicamente, por exemplo, seu adversário na última eleição presidencial disputada pelo líder petista, Geraldo Alckmin; o ex-presidente que o derrotou em dois pleitos, Fernando Henrique Cardoso; a candidata no primeiro turno do partido responsável pelo fim do último governo petista, Simone Tebet.

Como o próprio Lula já sinalizou, a chapa indica que, quando comparado ao seu papel entre 2003 e 2015, o PT terá uma atribuição mais modesta no próximo governo. Se, por um lado, o partido chega a impressionantes 5 vitórias em 9 eleições na Nova República, por outro ele terá que lidar com um cenário muito mais duro para algumas das suas pautas históricas. Derrotada nas urnas, a ultradireita foi vitoriosa em tornar corriqueiras muitas das suas pautas no debate público e ao fortalecer consensos conservadores, ou mesmo reacionários. A vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) na eleição para o governo paulista abre, por sua vez, um importante espaço institucional para a organização política e ação pública de muitos dos quadros bolsonaristas, que certamente farão uma oposição duríssima ao governo eleito.

Os motivos de uma coalizão tão ampla decorrem, em parte, de um inevitável cálculo eleitoral, reafirmado pela apertada vitória, já que era difícil crer em triunfo contra um candidato à reeleição sem a construção de uma ampla gama de apoios. Por outro lado, a frente ampla se tornou necessária e urgente justamente pelas sérias ameaças à ordem democrática brasileira, brevemente descritas acima. Neste sentido, a vitória deste domingo (30) é apenas um primeiro passo para a reconstrução de muitas das instituições democráticas brasileiras, abaladas ou destruídas ao longo dos últimos anos.

Marcus André Melo - República, Democracia, Parlamento: Lideranças parlamentares fazem falta hoje, FSP

 Ao saber da Proclamação da República no Brasil, Rojas Paúl, então presidente da Venezuela exclamou: "Foi-se a única república da América do Sul". Paradoxo? Não! Quando se fala por aqui de venezuelização, observamos grande desconhecimento da história.

Para ficarmos apenas na questão da liberdade de expressão — que é central na agenda pública atual — provavelmente o Brasil seria o país onde ela era mais efetiva na região. Joaquim Nabuco não exagerava quando disse que dom Pedro 2º era orgulhoso de sua própria tolerância. Paúl tinha isto em mente quando fez aquela declaração; e também o funcionamento ininterrupto do Parlamento imperial desde sua instalação.

Quadro 'A Pátria', de Pedro Bruno - Museu da Republica

O legado institucional de um país é importante preditor da qualidade institucional futura. Dahl, o mais importante teórico da democracia no século 20, analisou a democratização como um movimento paulatino em duas direções: inclusão e liberalização/institucionalização. Assim, o jogo da democracia evoluiu no sentido de inclusão de todos os adultos e da institucionalização da política competitiva, que são internalizadas pelos participantes.

Dahl argumentou que a democracia se consolida mais facilmente quando a liberalização precede a inclusão; quando a sequência é: regimes hegemônicos (autocracias) para oligarquias competitivas/regimes semi-competitivos e então as democracias. A sequência permite que as elites políticas se socializem nas regras do jogo da disputa eleitoral e da barganha parlamentar antes da participação ampla. Quando ela se completa com o sufrágio universal, o impacto não é disruptivo (e.g Reino Unido etc).

A República Velha foi nosso regime semi-competitivo. Enquanto a Venezuela era tiranizada por Gómez por quase quatro décadas, a nossa elite política se socializava gradativamente nas regras parlamentares.

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Em suas memórias (1964), Afonso Arinos antecipou a intuição de Dahl: "Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se não é esta tradição parlamentar, transmitida de homens a homens, de geração a geração, desde 1823, e sempre subsistente apesar de poucas interrupções, que faz o Brasil tão diferente dos vizinhos da América Latina".

Arinos se referia ao papel central de alguns notáveis na redemocratização após o Estado Novo: "Estes três principais pilotos da nau parlamentar vinham dos velhos tempos, anteriores a revolução e à ditadura: conheciam os homens, sabiam as praxes, dominavam bem a máquina. A eles deveu o Brasil a rapidez e a naturalidade com que as instituições legislativas — base da vida constitucional nas democracias — se restauraram aos 15 anos de interrupção". Fazem muita falta hoje, com certeza.