sábado, 29 de outubro de 2022

Cristina Serra - Navegar, com Lula, é preciso, FSP

 Neste domingo, vote como quem mergulha no fundo do oceano para nos resgatar de um naufrágio. Muitos navegantes, antes de nós, foram abatidos pelas tempestades, mas deixaram traçadas as rotas de navegação e o mapa-múndi dos nossos desejos de nação.

Vote por eles, construtores de Brasil, que tiveram a ousadia de projetar a pátria soberana. O país da educação e da ciência, de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire. De Oswaldo Cruz e de todos os sanitaristas, de Nise da Silveira, de Milton Santos e de Josué de Castro, que apontou a chaga mais dolorosa, a fome, ainda a nos atormentar.

Vote no país de projetos interrompidos, de Getúlio, Jango e Tancredo, que, de alguma forma, foi traduzido na Constituição de 1988, sob o comando de Ulysses. O Brasil de militares heróis, sim, nacionalistas e democratas, e cito apenas dois deles, o brigadeiro Rui Moreira Lima e o capitão Sérgio Miranda de Carvalho.

A urdidura de Brasil não existiria sem os irmãos Villas-Bôas e sem a altivez que resiste em Raoni, Ailton Krenak, Davi Kopenawa e em sua recusa da miragem colonizadora, que nos reduz a rios de mercúrio, raízes arrancadas e toras desgarradas na floresta. Vamos votar como eles, que plantam árvores e protegem nascentes, para saciar nossa fome de vida.

Nossa fome de beleza vive em Pixinguinha e Cartola, Noel e Caymmi, em Tom e Vinicius, em Drummond e Amado, em Callado e João Cabral, no violão do João, em Chico e Milton, em Gil e Caetano. Sai das entranhas do Brasil na voz de Clementina. Explode na poesia de Solano Trindade: "tem gente com fome, tem gente com fome (...) se tem gente com fome dá de comer".

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Navegantes, suportamos a tormenta agarrados a pedaços da embarcação. Alcançamos terra firme, lançados de volta às praias pelas marés. Votar em Lula é a melhor chance que temos para reencontrar o território da nossa obstinação e dos nossos sonhos. Para que possamos, enfim, completar esse esboço de país.

Muniz Sodré O sétimo círculo do inferno, Muniz Sodré, FSP

 Nada é mais perigoso do que uma ideia quando não se tem outras. Isso soa clichê, mas resume à perfeição o programa de governo atual: a ideia fixa da violência armada. Para essa questão social, potencializada pela triplicação da posse de armas no país, é fraquíssima a oposição do discurso progressista. Talvez porque seja fraca a percepção democrática da diferença entre força e violência. Vale uma mirada etimológica: a origem da palavra ("vis") traduz as duas noções.

Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato. É disruptiva tanto coletivamente, em caso de guerra, quanto individualmente, como anomia. Na Divina Comédia, Dante reserva aos violentos o vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno. A modernidade tenta proteger-se com o monopólio estatal do fenômeno.

duas pessoas enfrentadas, uma delas cabisbaixa e a outra aponta o dedo indicador com cara de raiva. A ilustração tem o fundo com redemoinhos pretos rabiscados
Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato - Artsgraphiques.net - stock.adobe

Mas os cidadãos temem primeiro os atos e não o pouco visível estado de violência, por mais que uma sociedade estruturalmente desigual esteja sempre afeta a atos de anomia. De fato, a iniquidade econômica e política dá sempre margem a ciclos expansivos da violência.

Entre nós, uma política preventiva deveria começar desmistificando a imagem romantizada do país. O escravismo e o patriarcalismo adestraram as elites na negação das diferenças pelo extermínio puro e simples. Atávicos nas formas coletivas de consciência, esses fenômenos fossilizados respondem até hoje pela naturalização de práticas violentas contra a gente mais pobre.

Individualmente, violência ou desmedida da força é o ovo da serpente entocada no mesmo terreno do diálogo. É o espaço também marcado por vetores sociais anacrônicos, como a suposta ascendência física do homem sobre a mulher. Um mito desmentido pela própria tecnologia dos corpos: força muscular jamais foi a fonte real de poder. Sem diálogo, ao ver contrariada a perspectiva mítica de seu domínio, a contraparte masculina, movida por fúria patriarcal-narcísica, resvala para a violência. Em ricos e pobres, violência é linguagem sem palavras, expressão envenenada da miséria humana.

Violência organizada, porém, é estratégia coletiva de poder, aliás, o único ponto inequívoco do desgoverno federal. A farra das armas, que inflama o estado de violência com surtos agressivos, é a cara sem máscara do terror. Colecionador, praticamente um miliciano incubado, é uma intimidação latente. Mafializou-se a vida social desde o Norte até o Sudeste, que perde território para milícia e tráfico. O elevado potencial de guerra urbana é a mais vexatória ameaça à sociedade civil. Com o Estado caindo de quatro frente ao crime, a política de violência armada é a própria autonegação do Brasil republicano.