sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Ricardo Della Coletta - Bolsonaro e a cartinha em defesa da democracia, FSP

 Aos olhos do presidente Jair Bolsonaro, o manifesto pela democracia, lido nesta quinta (11) na Faculdade de Direito da USP, é uma cartinha política contra seu governo assinada por quase 1 milhão de caras de pau sem caráter.

É de se perguntar quais trechos caíram mal a Bolsonaro, uma vez que o documento não cita o presidente ou sua administração.

O texto condena uma ditadura militar que não hesitou em torturar e matar brasileiros; celebra as conquistas (incompletas, é verdade) alcançadas após o fim do regime de exceção e a promulgação da Constituição, com destaque para as eleições livres realizadas periodicamente desde então. Destaca ainda que esse processo republicano tem sido auxiliado por um sistema de votação que se mostrou seguro e confiável.

A carta também argumenta que não há espaço num Estado de Direito para desacato às eleições e para "ataques infundados" contra a lisura do pleito. Define ainda como intoleráveis as ameaças contra poderes da República e setores da sociedade civil, bem como a "incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional".

Talvez Bolsonaro não tenha gostado da carapuça. Paciência. Ser chamado de golpista é o preço mínimo que se paga por adotar uma retórica golpista. O presidente de uma das maiores democracias do mundo deveria estar empenhado em outro projeto que não fosse a destruição do sistema eleitoral de seu próprio país.

A carta escrita em defesa do Estado democrático de Direito não faz mais do que listar princípios básicos de convivência republicana que, em um cenário mais civilizado, nem sequer precisariam estar escritos num manifesto. Deveriam ser a condição básica para a participação no jogo democrático, da esquerda à direita.

É preciso ter muita saudade de tempos mais autoritários para se sentir hostilizado por esse tipo de linguagem.

Hélio Schwartsman - Cartas são reação tardia a desmandos de Bolsonaro, FSP

 Antes tarde do que nunca. "Potiusque sero quam nunquam", para aqueles que, a exemplo do pessoal das Arcadas, gostam de enfeitar seus textos com expressões na língua de Nero. Hoje finalmente assistimos ao que pode ser qualificado como uma reação mais orgânica da sociedade às ameaças de Jair Bolsonaro contra a ordem democrática e à própria ideia de civilização. Fico satisfeito em constatar que traçamos uma linha vermelha para o atual ocupante do Planalto, mas não consigo deixar de lamentar que tenha demorado tanto.

potiusque sero quam numquam
Brincadeira com a bandeira de Minas Gerais, com a inscrição em latim “Potiusque sero quam nunquam" (Antes tarde do que nunca) - Folhapress

Na verdade, acho que fracassamos como sociedade quando deixamos de abrir um processo de impeachment contra Bolsonaro. Os elementos jurídicos para fazê-lo já estavam presentes ao menos desde que veio a público o vídeo da fatídica reunião ministerial de abril de 2020, em que o presidente indicou que interferiria na Polícia Federal para benefício pessoal. Mas foi o seu desempenho na pandemia que transformou o afastamento num imperativo moral.

Bolsonaro não só deixou de cumprir sua obrigação de proteger a população como também promoveu tratamentos demonstravelmente ineficazes e fez troça dos doentes, que, no auge da epidemia, chegaram a morrer à razão de 4.000 por dia. Durante os três anos e meio de seu mandato, o presidente jamais deixou de atacar instituições, o que também constitui crime de responsabilidade.

Apesar do volume e da gravidade das delinquências, Bolsonaro conseguiu forjar para si uma dupla blindagem. Um procurador-geral da República camarada o protegeu de eventuais ações penais e dois presidentes da Câmara engavetaram mais de uma centena de pedidos de impeachment. A sociedade civil não foi capaz de pressionar os parlamentares, docilizados por um generoso esquema de distribuição de emendas, para agir contra o foco das ameaças ao Estado de Direito.

Depois de tão retumbante fracasso, é alentador constatar que tenhamos enfim sussurrado um basta.

O QUE A FOLHA PENSA Fora de hora e lugar

 

Fachada do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Dorivan Marinho/STF

Seria injusto criticar o reajuste salarial para os servidores da Justiça, defendido pelo Supremo Tribunal Federal, por dar novo mote à ofensiva bolsonarista contra as instituições —afinal, o Judiciário não deve se deixar intimidar por ataques liderados pelo chefe de outro Poder. A proposta, porém, é problemática por muitas outras razões.

A remuneração dos ministros do STF representa o teto salarial do serviço público —hoje de nada desprezíveis R$ 39,3 mil mensais. Com o aumento ambicionado de 18%, o valor subiria a R$ 46,4 mil, e os limites seriam ajustados para o restante do funcionalismo, incluindo o dos entes federativos.

O teto para os vencimentos está entre as várias questões mal resolvidas da administração pública nacional. É fato notório que órgãos diversos, em especial no Judiciário e no Ministério Público, valem-se de penduricalhos extrassalariais, como auxílios e abonos, para driblar as restrições da lei.

Tentativas de disciplinar o cumprimento dos limites se acumulam há anos no Congresso Nacional, sempre vencidas pela cumplicidade corporativista. Não obstante, a alegada defasagem do teto ante a inflação acumulada sempre serve de justificativa para reajustes.

A benesse pleiteada, fora da realidade da grande maioria dos trabalhadores do país, certamente dará impulso a uma nova onda de reivindicações dos servidores públicos.

Recorde-se que, no primeiro semestre, uma iniciativa atabalhoada de Jair Bolsonaro (PL) para elevar os salários dos policiais federais despertou manifestações e greves das demais categorias, com prejuízos consideráveis para a prestação de serviços do Estado. A tensão foi contida, mas não desapareceu.

O atual governo, como os antecessores petistas, negligenciou a reforma administrativa por afinidades com as corporações da máquina pública. Com isso, os gastos com pessoal apenas são controlados com expedientes precários, em particular o represamento de contratações e salários.

O Judiciário é um caso à parte nesse rol de distorções —consome algo como 1,5% do Produto Interno Bruto, patamar sem paralelo nas principais economias do mundo.

Por fim, a próxima administração terá o desafio orçamentário de equacionar a ampliação do Auxílio Brasil e outras despesas promovidas sem planejamento pelo desespero eleitoreiro de Bolsonaro. A prioridade não poderá ser o salário de quem já ganha muito bem.

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