sábado, 6 de agosto de 2022

Mario Sergio Conti Clara Ant, de 'Quatro Décadas com Lula', destrincha ativismo, FSP

 

Há duas fotos contrastantes em "Quatro Décadas com Lula – O Poder de Andar Junto" (Autêntica, 430 págs.), de Clara Ant. Na primeira, de 1985, ela está numa delegacia em Limeira, no interior de São Paulo.

Aparece com as olheiras escuras, um curativo na cabeça e a roupa ensanguentada. Dirigente da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, ela dava apoio a uma greve de metalúrgicos e tomou uma
cacetada daquelas da polícia.

Ilustração mostra uma mulher de costas. Há um esparadrapo em sua cabeça e sua camisa está ensangüentada. A sua frente está um espelho onde ela, se vê.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 6.ago.22 - Bruna Barros

Na outra foto, de 2014, está toda pimpona ao lado de Clinton e Lula, sorridente e elegante com sua echarpe. Imagens assim costumam festejar quem veio de baixo e venceu na vida, como se a sociedade permitisse a ascensão de todos, e não apenas de uma minoria ridícula.

São fotos que também comemoram o arrivismo dos que, ao entrarem na política para lutar com os deserdados, amadurecem e adquirem bom senso. O que se celebra então é a adaptação à política do toma-lá-dá-cá, que acolhe aqueles que trocam o radicalismo pelo dito realismo.

"Quatro Décadas com Lula" mostra que essas interpretações não se aplicam a Clara Ant. Ela veio da classe média remediada e continua nela. É só na última página que conta, entre vírgulas, que uma vaquinha de amigos permitiu que, desempregada na pandemia, pagasse seu plano de saúde.

Ela não se jacta disso nem de nenhum de seus feitos. Coloca-se como participante de um movimento, coletivo e libertário, pela melhoria da vida dos trabalhadores. Dá testemunho de uma condição tantas vezes vilipendiada: a de militante.

Sua família era de judeus poloneses que fugiram da guerra e dos pogroms. Só em Biłgoraj, o vilarejo de seu pai, 40 moradores com o sobrenome Ant foram mortos, ela escreve, "bombardeados, fuzilados ou queimados vivos na sinagoga".

Biłgoraj é a cidade de "A Cruzada das Crianças", comovente e contundente poema de Brecht. Ele foi escrito pouco antes do pai de Clara Ant escapar da Polônia de mãos abanando —e sua mãe com umas batatas escondidas no forro do casaco.

Ela nasceu em La Paz, na Bolívia. Falava ídiche em casa, o hebraico na escola, e o espanhol na rua. Ali, o antissemitismo era bem mais raro. Mas vicejava, violento.

O Colégio Boliviano Israelita, onde estudava, foi uma vez apedrejado. Ela ficou na porta da escola, sozinha e apreensiva, até o pai ir buscá-la. Havia também agitação política. Na revolução de 1952, quando tinha quatro anos, uma bala perdida acertou seu colchão.

Os Ant se mudaram para São Paulo e se estabeleceram na rua José Paulino, o coração da comunidade judaica. O judaísmo deu a Clara identidade existencial e cultural, mas não religiosa.

Ao registrar seu "rol de valores", "Quatro Décadas com Lula" fala em "síntese do socialismo com o judaísmo: justiça social, solidariedade, disciplina, compromisso e lealdade". Segundo o livro, essas eram as "ideias que vinham de casa e se juntaram à experiência da militância".

Militância que começou na USP, onde se formou em arquitetura. Com a ditadura no auge, quem fazia política radical corria riscos. E Clara Ant aderira à Organização Socialista Internacionalista, OSI, que enfrentava, além dos militares, o PCB e todos os coniventes com os brucutus.

É pena que ela não discuta sua atividade na OSI, onde fez política por 13 anos, muitos deles na sua direção. Até por que não é trivial passar de uma organização trotskista —logo, revolucionária e internacionalista— para um partido reformista que não é contra o capitalismo, o PT.

Contudo, o desígnio de seu livro não é esse. Ela não se demora na análise das políticas adotadas por Lula ou pelo partido. Seu objetivo é contar como sindicalistas e integrantes do PT se auto-organizaram para vencer eleições e pôr em prática um programa com o qual ela concorda.

Por isso, as melhores páginas de "Quatro Décadas com Lula" são as que relatam, por dentro, a formação da CUT e as Caravanas da Cidadania, que deram estatura e estrutura ao PT. São páginas onde sopra o vento de uma épica —a de um povo que toma consciência do seu lugar na história
Clara Ant estava lá, no meio do bololô. Numa discussão, o sindicalista Arnaldo Gonçalves a xingou de puta; Jair Meneguelli veio em seu socorro e deu um tapa na cara do outro.

Na Unicamp, o reitor Benedito Fonseca a demitiu por reivindicar melhores salários, organizar uma associação de professores e —cereja no bolo— ser "judia, boliviana e divorciada". Ela não se deu por achada. Continuou a fazer o que acha certo, militar. No presente e para o futuro.


Luís Francisco Carvalho Filho -Estado de exceção, FSP

 Ao julgar inconstitucional a Lei de Imprensa editada no regime militar, em abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal firmou princípios memoráveis para o desenvolvimento da democracia brasileira.

O exercício concreto da liberdade de expressão e de informação assegura o direito de crítica, sobretudo a agentes públicos, ainda que em tom áspero e contundente.

A crítica jornalística não é suscetível de censura legislativa ou judicial. O STF menciona a ideia-força de que "quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja".

A internet é "território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação".

Chamar Bolsonaro de golpista, depois do dia 16 de agosto, pode ser visto como outro abuso 'passível de limitação' pelo TSE
Chamar Bolsonaro de golpista, depois do dia 16 de agosto, pode ser visto como outro abuso 'passível de limitação' pelo TSE - Adriano Machado - 3.ago.22/Reuters

Mas a legislação eleitoral impõe um estado de exceção justamente no período agudo da escolha dos futuros governantes, quando o entrechoque de ideias, opiniões e versões deveria, em tese, ser desimpedido.

O eixo central do processo político no Brasil é a candidatura e não o eleitorado. O TSE tem participação ativa no processo legislativo (suas resoluções têm força de lei) que oferece escudos de proteção a candidatos, independentemente de coloração ideológica.

É o que explica, por exemplo, tentativas, ainda não vitoriosas, de restringir pesquisas nos dias próximos da votação. É o que explica o recente e constrangedor gesto do Tribunal Superior Eleitoral de ocultar parte das informações sobre o patrimônio dos candidatos.

É notável o contraste entre a libertária decisão do STF de 2009 (às vezes ambígua, é verdade) e a Lei 9.504/97 e seus sucessivos adendos.

O dia D é 16 de agosto, quando, segundo o calendário oficial, começa a propaganda: comitês, caminhadas, alto-falantes, comícios. É proibido showmício, trio elétrico, "animar" comícios com "artistas", confecção e distribuição de "camisetas, chaveiros, bonés". No dia da eleição, só é "permitida" a "manifestação individual e silenciosa".

Diz o TSE que "manifestações de apoio ou crítica a partido político ou a candidata ou a candidato", antes de 16 de agosto, "próprias do debate democrático, são regidas pela liberdade de manifestação".

E depois? O tribunal esclarece: a "livre manifestação do pensamento de pessoa eleitora e identificada ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ofender a honra ou a imagem" de candidatos e partidos, equiparando-a à propaganda. O Código Eleitoral é taxativo: não será tolerada propaganda que caluniar, difamar ou injuriar pessoas e órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública.

O tema da honra ofendida é subjetivo demais.

Dizer que o presidente da República se omitiu, contribuindo para a morte de pessoas que poderiam ter sobrevivido à pandemia, configura "calúnia" para juiz bolsonarista ou avesso à liberdade de expressão ou intimidado pelas ameaças golpistas do Palácio do Planalto. E chamá-lo de golpista, depois do dia 16, pode ser visto como outro abuso "passível de limitação".

Há certa tradição de liberalismo no TSE, mas os dispositivos que autorizam a censura inspiram tribunais eleitorais dos estados, alguns provincianos e governistas, na criação de embaraços ao jornalismo. Os dois ministros nomeados para o STF por Jair Bolsonaro já estão no banco de suplentes do TSE.

A Justiça Eleitoral, em relação a conteúdos, dever atuar "com a menor interferência possível no debate democrático", propaga o TSE. Não parece muito tranquilizador.

Rodrigo Zeidan - Por que a China não vai invadir Taiwan, FSP

 A China não vai invadir Taiwan, a visita de Nancy Pelosi não é imprudente e as relações comerciais entre o gigante asiático e os EUA não serão rompidas. Não há grandes riscos imediatos à economia mundial pelo aumento da tensão entre EUA e China, mas, ainda assim, é mais um sinal de que o processo de separação comercial e política (decoupling) entre as maiores economias globais vai continuar.

Os erros mais comuns de quem analisa movimentos chineses são (1) achar que todos em Pequim concordam sobre o que deve ser feito e (2) enxergar as ações chinesas sob a lente de China versus o resto do mundo, como se movimentos estrangeiros fossem especialmente relevantes para o processo decisório político.

O ocidente adora se achar mais importante do que é. A China é um continente, o Partido Comunista Chinês é extremamente complexo e nenhum presidente consegue se manter no poder sem robustas redes de alianças. "Toda a política é local", já diz o ditado.

A presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visita o parlamento em Taipei, em Taiwan - Ann Wang - 3.ago.2022/Reuters

É claro que a China tanto reage ao que acontece no mundo como toma ações para garantir seus "interesses", mas, no fundo, nada é mais importante que garantir ordem social, nem mesmo crescimento econômico. Os treinamentos de guerra são muito mais sinais para o público interno de que o governo é forte e, portanto, é importante que o presidente Xi Jinping seja reconduzido a um terceiro mandato, que uma ameaça aos EUA.

A China tem uma longa história de guerras civis e conflitos internos. E ordem é muito mais que vigilância estatal ou autoritarismo. São vários os contratos sociais implícitos entre sociedade, elites e governo, mas em todos há algo em comum: estabilidade. É comum as pessoas acharem que os chineses vivem com medo do governo, mas é mais o contrário; o maior risco ao Partido Comunista é a insatisfação popular.

Tomemos o exemplo da política de Covid zero chinesa. Ela sempre foi vendida para o público como grande sucesso da liderança do Partido Comunista contra a decadência ocidental. Mesmo com custos aumentando enormemente com a dificuldade de se lidar com a variante ômicron, ainda é apoiada pela maioria da população, mesmo sendo vista com desconfiança fora da China.

Lockdowns, testes diários, problemas de cadeias de suprimento e empresas estrangeiras diminuindo investimento são alguns dos imensos custos econômicos para a sociedade chinesa, mas as autoridades ainda assim preferem manter a ordem social que "conviver com o vírus"; ninguém sabe como a população reagiria ao ver milhões dos mais vulneráveis morrendo. A política atual é dura, mas privilegia a estabilidade sobre todo o resto.

Em relação a Taiwan, é projeto do Estado a ideia de China única, mas a sua implementação está longe de ser determinística ou disparada por movimentos externos. A visita de Pelosi vai sim ser usada por grupos internos chineses que defendem política externa mais agressiva. Mas esses grupos estão sempre buscando justificativas para suas crenças. Vimos no caso da guerra da Rússia que a preocupação imediata de Pequim era que as Olimpíadas de Inverno corressem bem; interesses locais importam mais que o que querem os outros países.

Não vai haver guerra, mas isso não quer dizer que é fácil entender os movimentos que vêm do Oriente. Narrativas simplistas estão simplesmente erradas. Desde sempre os governos chineses surpreendem o mundo, para o bem e para o mal. Por que agora seria diferente?