A derrota não inspira, abate. A fala com que Jean-Luc Mélenchon admitiu que não iria ao segundo turno foi uma exceção. O candidato da França Insubmissa até puxou o coro "a luta continua", um clássico da esquerda vencida. Mas não semeou ilusões.
"Não vamos esconder a violência da decepção", disse. Ele perdeu de Marine Le Pen por 421 mil votos, menos de 1% do eleitorado. Seu desencanto não foi com o PS, o PCF e os Verdes. Se tivessem se juntado a ele, venceriam a candidata racista e empatariam com o dos ricos, Macron.
Sua decepção era com o amanhã, com o "que poderia ser feito e não será". Quanto ao futuro mais à frente, alertou: "Como o mais velho entre vocês, é meu dever dizer que nossa única tarefa é a que o mito de Sísifo realiza: o rochedo cai no barranco, e o puxamos para cima".
Falar que o futuro será íngreme e não se triunfa sem engajamento é um realismo raro na política. Mas algo foi feito: "Temos uma estratégia, a do polo popular. Temos um programa. Temos outras eleições à frente". Com 70 anos, Mélenchon passou a tocha para os jovens: "Façam melhor".
Ele foi o preferido entre de 18 a 34 anos. Teve mais votos que a soma dos adversários nos departamentos de ultramar. Venceu na Grande Paris, em Marselha e Lyon, em Lille e Toulouse. Tinha um programa e as palavras certas para convencer as gentes.
Para Mélenchon, a França está dividida em três polos. O do liberalismo predatório de Macron. O da extrema direita de Le Pen. E o polo popular da França Insubmissa. Defendeu que o país vive quatro crises combinadas: social, energética, europeia e política.
Para enfrentar a primeira, propôs aumentar o salário mínimo para 1.400 euros; aposentadoria aos 60 anos (Macron a quer aos 65, e Le Pen, mantê-la aos 62); taxação das grandes fortunas; mais verbas para escolas e hospitais. Na energia, queria trocar usinas nucleares por combustível limpo.
No plano continental, pregou que a França saia da Otan —o que exorcizaria guerras— e que a União Europeia sirva aos povos, e não ao capital. Contra a Constituição caduca, convocaria uma assembleia constituinte soberana para fundar uma república livre, fraterna e igualitária.
Nada disso tem a ver com o Brasil. O polo liberal daqui é uma briga de foice no escuro. Já o da extrema direita tem começo (provocação), meio (putsch milico-miliciano se perder a eleição) e fim (ditadura). Aposta na arruaça, em instituições lassas e em liberais tíbios.
O PT poderia pôr de pé o polo popular, mas prefere abarrotar de cobras e lagartos uma arca de Noé maior que o Maracanã. Sua meta é vencer Bolsonaro por meio de conchavos com bichos do arco da velha. E tome coquetéis com monstros furta-cor e furta-tudo. Se alguém critica, lá vem o berro: senta que o leão é manso!
Caso a nau bolsonarista vá a pique, a arca de Lula se verá num dilúvio sem o mapa de um programa. Por isso ziguezagueia e solta pombas para achar um porto. Jura que, se o mar fosse de cerveja, Putin não invadiria a Ucrânia. Profetiza um tempo sem maremotos.
A arca do polo sem prumo nem rumo navega num mingau de palavras. Não cabem comparações à França porque a palavra política tem pesos diversos. Lá, ela está colada à luta. Cá, é deixa-disso pastoso.
Lá: a oratória popular se assenta numa história de embates que remonta a 1789. Passa pelo regicídio de Luís 16 e a Comuna de Paris, pela resistência ao nazismo e o Maio de 1968. Ainda ontem, pulsava na fronda dos coletes amarelos. Tribuno nato, Mélenchon é fruto dessa tradição.
Cá: à força de escravidão e analfabetismo, as classes dominantes fizeram da palavra política uma ferramenta de dominação. Vide o rococó dos preclaros confrades, as bacharelices que prostram e engabelam a malta.
A verve elétrica de Lula vem do sindicalismo combativo, mas às vezes descamba para o palavrório de Silvio Santos e Faustão. Ele parece se deliciar com a algaravia, lembra mais um animador de auditório que um líder. Orra, meu.
A diferença é nítida nos comícios. Em Paris, Mélenchon falou uma hora num palanque sem papagaios de pirata. O som era claro e dezenas de milhares o escutaram em silêncio. Sem vulgaridades, convenceu-os que só persuadindo quem não estava ali poderiam vencer.
Mesmo após a proibição de showmícios, há no Brasil mais gente no palco que na plateia. Partidos se estapeiam numa cacofonia de palavras de ordem e bandeiras. O som é horrível e não se ouve o orador. Como na Proclamação da República, assistimos a tudo bestializados.