quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Cinco ideias da Biologia que explicam a vida, segundo vencedor do Prêmio Nobel, OESP

 João Luiz Sampaio, Especial para o Estadão

26 de agosto de 2021 | 05h00

Aos 13 anos de idade, Paul Nurse encantou-se com uma borboleta. Amarela e trêmula, ele lembra, ela voava de um lado para o outro de uma cerca. Até que uma sombra a assustou, fazendo com que voasse para longe, em busca de refúgio.

Paul Nurse
O cientista Aengus Stewart (E) e Sir Paul Nurse mostram dados de genoma à Rainha Elizabeth em foto de 2016 Foto: Nick Ansell/Reuters

Aos 52 anos, já um biólogo e geneticista reconhecido pelos seus pares, professor da Universidade de Oxford, Nurse recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta de moléculas de proteína que controlam a divisão, ou duplicação, de células.

Nos quase quarenta anos que separam o menino do profissional, Nurse colocou-se constantemente uma mesma pergunta: o que é a vida? E aquilo que descobriu está reunido no livro não por acaso batizado de O Que É a Vida? – Compreendendo a Biologia em Cinco Passos, agora lançado no Brasil pela editora Intrínseca em tradução de Livia de Almeida.

Os cinco passos referem-se ao que Nurse chama de “cinco grandes ideias da Biologia”: a célula, o gene, a evolução por seleção natural, a vida enquanto química e a vida enquanto informação. A ideia, ele explica, é “usá-las como passos que podemos dar, um de cada vez, para melhor percebermos o modo como a vida funciona”.

À primeira vista, pode soar como um tema de difícil compreensão – capaz de evocar as memórias nem sempre felizes das aulas e provas de Biologia na escola. Mas o livro se escreve como um romance, em que uma história nos é contada. No caso, a história de como, com o tempo, a compreensão sobre os seres vivos foi sendo desenvolvida e elaborada. De maneira ágil, Nurse passeia pela história, mostra o momento em que estamos e o que podemos esperar do futuro, tanto na pesquisa como em sua aplicação. 

“Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. O que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo”, conta ele. “Fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito”, completa.

Na entrevista a seguir, ele fala ao Estadão sobre a gênese do livro, lançado no ano passado na Inglaterra, o modo como ele ganhou sua forma final e sobre temas atuais, como a relativização do conhecimento científico e a desconfiança de certos grupos com relação a vacinas, evidente durante a pandemia. 

Como surgiu a ideia de escrever este livro?

As livrarias estão cheias de livros de ciência destinados ao público em geral, resumindo e apresentando as grandes ideias da Física, como a Mecânica Quântica, por exemplo. Se na Física essa é uma prática comum, no campo da Biologia, isso não acontece. Isso se dá talvez pelo fato de que estamos sempre olhando para o futuro, pensando em como transformar a Medicina, por exemplo, especulando sobre possibilidades, sobre coisas que ainda não aconteceram, acreditando no poder do nosso campo de ajudar a construir esse futuro. Mas isso não significa que não devemos celebrar aquilo que nós já sabemos, o que já descobrimos, as ideias centrais sobre nosso funcionamento, e apresentá-las em conjunto.

O livro trata de questões técnicas específicas, mas, de alguma forma, pode ser lido como um romance, há uma história sendo contada, despertando a curiosidade. Em que medida essa foi uma preocupação durante a escrita?

É uma obrigação nossa tentar popularizar essas ideias, oferecendo um olhar diferente sobre a vida. Entender o que é um organismo vivo é entender o que somos. A Biologia é estudada nas escolas, e os leitores provavelmente vão reconhecer termos e palavras sobre os quais precisaram responder em provas e testes. Mas o que o livro propõe não é um estudo técnico, mas, sim, uma forma de compreensão do mundo.

Em diversos momentos do livro, a filosofia se faz bastante presente na narrativa. E as ideias de pensadores como Aristóteles, Humboldt e Kant se tornam importantes na compreensão da ciência da qual o senhor está tratando na obra.

A Biologia carrega um aspecto filosófico. Ela não é uma ilha e você se dá conta disso quando olha com clareza a filosofia básica das coisas. A presença de Immanuel Kant em um livro sobre Biologia pode gerar surpresa, claro, mas é possível pensar a ideia de uma filosofia moral no fato de estarmos vivos. Ter uma compreensão das ideias de Kant ou de vários outros pensadores importantes pode ser fundamental para qualquer biólogo.

O senhor mostra como a membrana externa delimita o que está dentro ou fora da célula, colocando uma ideia de limite e de como se dá a relação entre o indivíduo e o ambiente em que vive. Poderíamos encontrar nesse fato científico uma metáfora das próprias relações humanas, ou seja, daquilo que é individual e como ele colabora com o coletivo?

Seres vivos são marcados pela interação e essa interação ajuda a entender o que é a vida. A interação entre indivíduos da mesma espécie, nesse sentido, pode bem ser uma metáfora. Estamos falando da Sociobiologia, um campo que nos últimos quarenta anos tem pensado a natureza biológica do ser humano levando em consideração as relações humanas. E muitas das descobertas nesse sentido têm de fato múltiplas implicações.

No livro, o senhor chama atenção para a necessidade de entendermos a Biologia como um conjunto de ideias e não apenas de fatos. Por quê?

Isso é fundamental. Estamos afogados em dados, informações. E para mim essa é a importância desse livro. Não se trata de um livro técnico, que costuma ser uma lista de fatos. Pois fatos são aprendidos a todo instante e essa lista fica cada vez maior. O importante, no contato com o público em geral, me parece ser buscar colocar todos esses fatos em contexto, tratando de ideias mais amplas sobre a química da vida. Daquilo que é particular, dos detalhes, podemos partir em direção a contextos mais amplos, nos quais se torna mais fácil discutir princípios básicos da vida. Pois sem transformar a informação em princípios, em ideias mais amplas, perdemos o foco. E o contato com o público. Essa é uma área em que podemos melhorar muito.

O livro é, em certa medida, uma defesa da ciência como ponto de partida para transformações não apenas pessoais, mas também para questões como a preocupação com o ecossistema, por exemplo. Vivemos, porém, em uma época na qual a relativização do conhecimento científico é flagrante, desde a crença de que a Terra é plana até a certeza de que há, nas vacinas, pequenos chips que permitirão o controle das pessoas que forem vacinadas. O que fizemos para chegar a esse ponto?

A humanidade sempre pode ser um pouco estranha. O Iluminismo e a idade da razão, claro, mudaram um pouco as coisas, permitindo que as pessoas buscassem e entendessem a natureza do mundo. E, em geral, seguimos nesse caminho. Mas sempre haverá a loucura de algumas pessoas. Isso, acredito, não é novo. Mas as redes sociais acabaram colocando essas pessoas em contato umas com as outras e isso fez delas uma força. E precisamos estar atentos a isso. O exemplo do chip do qual você me conta me parece impressionante, e há muitas outras teorias absurdas. E o caso das vacinas é interessante, porque em outros momentos da história também houve questionamento a elas. Enfim, não estaremos livres dos aspectos mais ridículos da natureza humana. Mas é preciso que continuemos a informar, a dar segurança às pessoas, da forma mais educada possível, e com paciência, para não amplificar ainda mais aquilo que é irracional.

 

Leia um trecho de 'O que é a Vida?'

“A partir de uma perspectiva mais ampla sobre a vida, desenvolve-se uma visão mais rica do mundo vivo.  A vida na terra pertence a um único ecossistema, imensamente interligado, que incorpora todos os seres vivos.

Tal conexão fundamental vem não apenas da profunda interdependência, mas também do fato de que toda a vida é geneticamente relacionada por raízes evolutivas compartilhadas. Essa perspectiva de uma relação profunda e interligada é defendida há muito tempo pelos ecologistas. Tem sua origem no pensamento do explorador e naturalista do século XIX Alexander von Humboldt, que defendia que toda vida é ligada por uma teia holística de conexões. Por mais inesperada que seja, essa teia é central à vida, e deveria nos dar bons motivos para pensar com mais profundidade sobre o impacto da atividade humana no resto do mundo vivo.

(...) Se toda vida é parte da mesma árvore da família, que tipo de semente deu origem a ela? De algum modo, em algum lugar, há muito tempo, produtos químicos inanimados e desordenados se combinaram em formas mais organizadas, capazes de se perpetuar, se copiar e, enfim, ganhar a importantíssima capacidade de evoluir pela seleção natural. Mas como essa história, que acabou sendo a nossa, teve seu início?"

LENÇOL FREÁTICO: O MELHOR RESERVATÓRIO URBANO PARA AS ÁGUAS DE CHUVA, ALVARO DOS SANTOS

 Os quadros de crise hídrica em vários regiões e centros urbanos do país tem virtuosamente servido a um despertar de leigos e especialistas para certos aspectos de ordem hidrológica que somente não se destacaram antes porque nessas mesmas regiões, que hoje podem estar a sofrer com a falta do recurso hídrico, predominava uma certa cultura da bonança hídrica, no âmbito da qual era inimaginável uma circunstância de escassez grave e prolongada.

O absurdo das enormes perdas de água nas canalizações de distribuição, o enorme desperdício por parte os usuários finais, a criminosa poluição das águas urbanas, o desmatamento e a ocupação urbana generalizada de mananciais, a generalizada impermeabilização promovida pelas cidades, a perda quase total do volume hídrico de chuvas ocasionais, compõem alguns desses paradoxos e aberrações.

No caso específico do melhor aproveitamento das águas de chuva o país pode, a partir dessas constatações, dar um enorme salto de qualidade em um período de tempo razoavelmente curto, com resultado fantástico para o balanço hídrico de suas cidades. Até porque, e especialmente em épocas de crise hídrica, choca-nos testemunhar o enorme desperdício de boa água quando de chuvas torrenciais urbanas. Constitui um incrível paradoxo o fato de uma cidade em crise hídrica permitir que tal caudal de água boa se esvaia pelo sistema de drenagem sem um mínimo aproveitamento!

Precisamos distinguir nesse caso dois tipos de aproveitamento de águas de chuva: o direto e o indireto.

Sobre o armazenamento direto, não há dúvida que os reservatórios domésticos e empresariais de águas de chuva para usos mais brutos, como lavagem de pisos internos, praças, arruamentos, autos, regas de vegetação, descargas sanitárias, operações em caldeiras e processos industriais, etc. em muito aliviariam o sistema público de oferta de água tratada potável. Pode-se inclusive pensar em grandes reservatórios urbanos subterrâneos implantados em áreas urbanas circunscritas, nas quais, pelo tipo e consolidação da urbanização presente, o grau de contaminação das águas de escoamento superficial fosse mais baixo e tolerável. O piscinão do Pacaembu, na cidade de São Paulo, seria um bom exemplo. Essas águas passariam por algum mínimo tratamento local e poderiam após ser utilizadas para vários fins que não exigissem sua potabilidade.

Mas há também a excepcional e esquecida possibilidade de armazenamento indireto, ou seja, armazenamento da água de chuva devidamente infiltrada no solo e acumulada nas camadas que compõem o substrato geológico das cidades; em outras palavras a água subterrânea. É conhecida a propriedade das cidades em impermeabilizar os terrenos e impedir a retenção e a infiltração das águas de chuva, lançando-as rápida e diretamente nos sistemas de drenagem superficial, fator causal das enchentes urbanas. Em sequência, através de córregos e rios essas águas são conduzidas sem nenhum aproveitamento para fora do município. Se, através de uma série de dispositivos, como os próprios reservatórios domésticos e empresariais aliados à capacidade de infiltração, a disseminação de bosques florestados no espaço urbano, a obrigatoriedade de adoção de pisos, pavimentos e outros tantos dispositivos drenantes e infiltrantes, a cidade aumentar sua capacidade de infiltrar e reter águas de chuva estaremos não só reduzindo o risco de enchentes, como “abastecendo” o grande reservatório geológico subterrâneo com milhões de metros cúbicos de boa água; a ser retirada e aproveitada através da instalação de uma rede de poços profundos.

Nisso tudo está, obviamente, envolvida uma profunda questão de mudança cultural, capaz de se traduzir em inovadoras e revolucionárias políticas públicas de proteção, conservação e uso de recursos hídricos. Não há o que esperar, mãos à obra.

 

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT  - Instituto de Pesquisas Tecnológicas
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
  • Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia

AUGUSTO DE ARRUDA BOTELHO Os limites da liberdade de expressão, FSP

 Augusto de Arruda Botelho

Advogado criminalista, é cofundador e conselheiro nato do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

A discussão sobre a liberdade de expressão e, principalmente, seus limites parece não se esgotar. No momento político delicado pelo qual o Brasil atravessa é bastante comum vermos defesas enfáticas do direito constitucionalmente previsto de livremente se expressar em situações não protegidas por essa garantia.

A recente polêmica sobre manifestações feitas por policiais militares é um exemplo disso. Inicialmente, ainda que com o risco de soar repetitivo, é preciso deixar algo claro: a todo cidadão e cidadã brasileira é garantido o direito de crítica, de manifestação e de expressão. Estão previstas, inclusive, críticas duras, com palavras e adjetivos acima do tom. Pouco importa, não deve haver sensores da expressão alheia. A única baliza, a única régua ao limitar esse importante direito é a lei. A lei é, e sempre será, o que determina o limite da liberdade de expressão.

O coronel Aleksander Lacerda, afastado de cargo de comando da PM paulista - Agnaldo Pereira/Camara Municipal de Sorocaba

Podemos e devemos criticar e cobrar autoridades públicas e instituições. Jamais podemos ameaçá-las ou incitar outros a assim agir. Se, em vez de criticar eu optar por xingar, estou sujeito às penas da lei. Posso também propor mudanças, mas, se para aplicá-las eu propuser o uso da força, cabe também à lei agir. Simples assim.

Voltando aos policiais militares. Temos acompanhado nas últimas semanas manifestações públicas dessa categoria com posicionamentos favoráveis ao ato do dia 7 de Setembro e de adesão desses policiais a muitas das pautas pelo ato defendidas.

Se, para o homem comum, civil, o limite da liberdade de expressão é a lei, para militares esse limite é mais ainda delimitado, constando, inclusive, de forma expressa no Código Penal Militar. O artigo 166 estabelece justamente a punição dos militares que ultrapassarem esse limite. Não há espaço, nesse momento, para discutir a constitucionalidade do referido artigo, mas ele é taxativo em estabelecer que não pode um policial militar criticar publicamente ato de seu superior ou qualquer resolução do governo. Mais claro do que isso, impossível.

No caso concreto, as manifestações de PMs fogem, e muito, de uma simples crítica. Há manifestações de cunho golpista, de ameaça e do uso da força contra pessoas e instituições. Há policiais convocando seus colegas de farda para combaterem um inexistente inimigo, o comunismo. Há também os que, em uma interpretação completamente equivocada do art. 142 da Constituição, clamam por uma intervenção militar. Há ainda quem afirme que “o caldo vai esquentar” e que “precisamos de um tanque, não de um carrinho de sorvete”.

Para civis, tais falas já ultrapassariam os limites da liberdade de expressão. Para quem carrega consigo uma arma na cintura e com ela detém o monopólio da força, as declarações são criminosas.

Somos uma jovem democracia que ainda respira os ares de um regime de exceção. Homens e mulheres perderam a vida para restabelecer o Estado democrático de Direito em nosso país e qualquer ato, fala ou movimento que o coloque em risco deve ser imediatamente rechaçado e punido.

A lei também serve para isso: para nos proteger.