Durante a maior parte da história, a expectativa de vida do ser humano variou em torno dos 35 anos. A partir principalmente do final do século 19, assistimos a um decidido incremento desse indicador, hoje na casa dos 73 anos.
Nossa tendência ao ler essa descrição é achar que estamos vivendo mais e que esse é um feito da medicina. Em parte é isso mesmo, mas uma parte bem pequena. Como explica Steven Johnson em “Extra Life”, quase todo o aumento na expectativa de vida, que é uma média, se deve não a um estirão na longevidade, mas à brutal redução da mortalidade infantil, que despencou dos mais de 40% nos períodos mais remotos para menos de 4% hoje.
E a distribuição das causas desse fenômeno também é desigual. Temos três invenções que pouparam bilhões de vidas (fertilizantes artificiais, vacinas e saneamento básico), cinco que preservaram centenas de milhões (antibióticos, agulha bifurcada, transfusões de sangue, cloração da água e pasteurização do leite) e depois o resto, que inclui prodígios que salvaram “apenas” milhões, como cinto de segurança, anestesia, refrigeração e a angioplastia.
A medicina propriamente dita chega tarde à festa. Suas intervenções só se tornam efetivas a partir da segunda metade do século 20. Antes disso, a maioria das prescrições —sangrias e drogas à base de metais pesados— contribuía mais para detonar do que para preservar a saúde de pacientes.
Johnson também mostra que os impressionantes resultados que obtivemos se devem a esforços coletivos que vão muito além do momento “heureca” dos inovadores. Louis Pasteur descobriu o método que leva seu nome e que fazia com que o leite deixasse de ser veneno líquido. Mas a pasteurização só foi adotada graças à obstinação de filantropos, jornalistas e políticos que enfrentaram lobbies poderosos e conseguiram transformar sua causa em lei. A ciência e seus avanços são um fenômeno social.
BRASÍLIA - Disposto a esvaziar a pressão para autorizar o impeachment deJair Bolsonaro, o presidente da Câmara,Arthur Lira(Progressistas-AL), articula com aliados a mudança no sistema de governo por meio de uma proposta de emenda à Constituição (PEC). A um ano e três meses das eleições de 2022 e sob a justificativa de que o presidencialismo virou uma fonte inesgotável de crises, a ideia apoiada por Lira e nomes de peso do mundo político e jurídico prevê a adoção do regime semipresidencialista no Brasil.
O modelo introduz no cenário político a figura do primeiro-ministro e aumenta o poder do Congresso. Embora a proposta determine que o novo sistema tenha início apenas no primeiro dia do “mandato presidencial subsequente” à promulgação da emenda, sem fixar datas, o presidente da Câmara, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e José Sarney, defendem o ano de 2026 como ponto de partida.
Lira apresentou a minuta na última terça-feira, em reunião do colégio de líderes, e obteve apoio da maioria para levá-la adiante, apesar das críticas da oposição, principalmente do PT, que chama a proposta de “golpe” e “parlamentarismo envergonhado”. A PEC é de autoria do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), ex-secretário da Casa Civil de São Paulo, e, para que comece a tramitar na Câmara, precisa de 171 assinaturas.
O Estadão apurou que a proposta, protocolada em agosto do ano passado, estava na prateleira e foi resgatada após o presidente Bolsonaro fazer uma série de ameaças, dizendo que o Brasil não terá eleições em 2022, se não houver voto impresso. Nesta sexta-feira, 16, ao perceberem que seriam derrotados, aliados do governo promoveram uma manobra e conseguiram adiar para agosto, na comissão especial da Câmara, a apreciação do que definem como “voto auditável”.
Diante de 126 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, Lira afirmou que é preciso trabalhar mais para “pôr água na fervura” do que para “botar querosene” na crise. Cabe ao presidente da Câmara dar andamento ao processo, mas Lira disse não ver ambiente político para isso e reagiu às cobranças. “Não posso fazer esse impeachment sozinho”, afirmou o deputado, que comanda o bloco de partidos aliados, conhecido como Centrão.
Barreira
A proposta de semipresidencialismo que reaparece agora como uma barreira para enfrentar arroubos – por enquanto retóricos – de Bolsonaro prevê um modelo híbrido. Ao mesmo tempo em que mantém o presidente da República, eleito pelo voto direto, delega a chefia de governo para o primeiro-ministro. É ele quem nomeia e comanda toda a equipe, o chamado “Conselho de Ministros”, incluindo nesse rol até mesmo o presidente do Banco Central.
Inspirado em sistemas adotados em Portugal e na França, o regime sugerido para o Brasil em nome da estabilidade joga luz sobre um “contrato de coalizão”, com força de lei, para ser assinado por partidos que dão sustentação ao presidente. Ali devem constar as diretrizes e o programa de governo.
Na prática, é o primeiro-ministro que toca a administração do País e conduz o “varejo político” nas relações do Palácio do Planalto. Nomeado pelo presidente, de preferência entre os integrantes do Congresso, ele tem a obrigação de comparecer todo mês à Câmara para prestar contas.
A destituição do chefe de governo pode ocorrer pela aprovação de moção de censura apresentada pelo presidente ou por dois quintos de integrantes de cada Casa do Congresso. O gabinete não cai, porém, enquanto não houver outro primeiro-ministro, já que não existe vice-presidente.
“Hoje temos um presidencialismo de coalizão, mas o equilíbrio para o governo se manter no poder custa o que a gente não sabe. A fatura é alta e o Congresso não tem compromisso político. No semipresidencialismo, a governança muda e as composições são reveladas”, argumentou Moreira, o autor da PEC.
Desde a redemocratização, dois presidentes – Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff – foram afastados e todos os outros conviveram com a espada da interrupção do mandato sobre a cabeça. O Brasil já fez dois plebiscitos sobre sistema de governo: um em 1963 e outro em 1993. Em ambas as consultas, uma minoria demonstrou apoio à criação do cargo de primeiro-ministro e o parlamentarismo foi derrotado.
“Qual o problema aqui? O presidente da República já se elege com o impeachment do lado”, disse Lira ao Estadão. “Ninguém aguenta isso. Um processo de impeachment deflagrado a um ano da eleição é o caos. O semipresidencialismo é a forma de estabilizar a política dentro do Congresso”.
Para ser aprovada, a proposta precisa ter 308 votos na Câmara e 49 no Senado, em duas votações. “Semipresidencialismo é parlamentarismo disfarçado. Torna presidente eleito sem poder. É criar crise, colocar no comando do País quem não tem legitimidade do voto para tanto. Golpe na soberania popular. Regime e sistema de governo já foram decididos por plebiscito duas vezes no Brasil”, criticou a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), em mensagem postada no Twitter.
Na avaliação da cúpula petista, a proposta só ressurgiu para prejudicar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje está em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto e é o maior adversário de Bolsonaro para 2022. A PEC determina que o mandato do presidente é de quatro anos, com direito a apenas uma reeleição, consecutiva ou não.
“Eu acho que nós deveríamos implantar essa inovação para 2026, para que não haja mais nenhum interesse posto em mesa”, ponderou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luis Roberto Barroso.
Coordenador
Além da polêmica sobre o ano de instituição do novo sistema, caso haja apoio para a tramitação da PEC, o texto embute uma novidade. No período de transição do atual regime para o semipresidencialismo está prevista a criação do cargo de ministro coordenador, a quem caberá a articulação político-administrativa do governo.
“Isso é para colocar desde já o Centrão dentro do Planalto”, observou o ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que é parlamentarista. “Vejo essa proposta como um bode na sala, para distrair a população que enfrenta pandemia, inflação e desemprego. Adotar uma mudança tão profunda para resolver uma emergência pode ser uma emenda pior do que o mau soneto”.
A opinião é compartilhada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS). Ao ser questionada sobre a proposta, ela respondeu: “Com esse Congresso? Mais poderes para o Centrão”.
Candidato à Presidência em 2014, tendo Aloysio como vice, o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) disse ser a favor do semipresidencialismo, mas afirmou que, antes de tudo, é necessário um enxugamento no número de partidos. “Para permitir que o Congresso tenha poderes fortalecidos é preciso que haja o mínimo de organização partidária. Não tem 30 ideologias para ter 30 partidos”, constatou o tucano.
Não é a primeira vez que o semipresidencialismo vira assunto na Praça dos Três Poderes. Em 2017, durante o governo Temer, o ministro do STF Gilmar Mendes, que à época era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), enviou uma minuta sobre o assunto para ser analisada pela Câmara. Para o magistrado, o presidencialismo dá sinais de exaustão.
“As sucessivas crises do nosso sistema, com incansáveis invocações de impeachment, reclamam uma reforma que garanta a co-responsabilidade do Congresso Nacional nos deveres de Governo. Representatividade e governabilidade podem andar juntas", escreveu Gilmar no Twitter.
O deputado bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP) tem receio da mudança e pondera que o efeito pode ser o inverso do pretendido. “O presidente vai nomear o primeiro-ministro, vai colocar um cara dele lá. Vai continuar concentrando poder e neutralizar o Legislativo", resumiu. Orleans e Bragança disse que prefere o parlamentarismo original, sem inovações.
O cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia, porém, que o semipresidencialismo permitiria remédios mais suaves e soluções menos traumáticas para instabilidades políticas e trocas de governo. “Teoricamente, é muito mais fácil você resolver isso no semipresidencialismo do que no presidencialismo. Assim como é mais fácil resolver no parlamentarismo”.
Mesmo assim, Couto também considerou que, antes de mudar o sistema, o Brasil precisa diminuir o número de partidos para permitir uma formação mais programática de maioria no Congresso. "O que às vezes se tem é o que a gente chama de coalizão de veto. Vários partidos que não se unem para construir alguma coisa, mas podem se unir para derrubar um governo”, destacou.
Perguntas e respostas: O que diz a proposta?
Qual o papel do presidente da República?
O presidente é o chefe de Estado e o comandante supremo das Forças Armadas. É eleito por voto direto, secreto, e tem mandato de 4 anos, com direito a apenas uma reeleição, consecutiva ou não. O governo é exercido pelo primeiro-ministro e por integrantes do Conselho de Ministros.
Como é escolhido o primeiro-ministro?
O primeiro-ministro é o chefe de governo. Indicado pelo presidente, de preferência é escolhido entre os membros do Congresso. A indicação do primeiro-ministro e do plano de governo, definido no contrato de coalizão com os partidos, precisa ser aprovada pelo Legislativo.
O presidente não pode sofrer impeachment?
As regras para o impeachment continuam as mesmas, mas, em tese, o instrumento seria menos usado porque o presidente não é o chefe de governo. Em caso de crime de responsabilidade, podem ser chamados para o exercício do cargo os presidentes da Câmara, do Senado e do STF. O presidente também tem poderes para dissolver a Câmara – mas não o Senado – e convocar eleições extraordinárias, em caso de “grave crise política e institucional”.
O primeiro-ministro é passível de destituição?
A destituição do chefe de governo pode ocorrer pela aprovação, por maioria absoluta do Congresso, de moção de censura apresentada pelo presidente ou por 2/5 dos integrantes de cada Casa do Legislativo, após 12 meses da posse.
Fernando Scheller e Fernanda Guimarães, O Estado de S. Paulo
17 de julho de 2021 | 14h00
A pandemia de covid-19 serviu não só como um despertar para a atuação digital, mas também para mostrar que negócios precisam ter um propósito. Por isso, ao longo dos últimos 18 meses, um conceito representado por três letrinhas – o ESG (sigla em inglês para as atuações nas áreas ambiental, social e de governança) – virou mantra no alto escalão das organizações. Mas será que o discurso se reflete nas práticas do dia a dia das organizações? Nem tanto, na opinião dos próprios executivos brasileiros.
Pesquisa da consultoria Russell Reynolds, referência em recrutamento de alto escalão, que testou o humor de 1,3 mil líderes globais no mundo todo – entre CEOs, conselheiros e diretores de grandes empresas – mostra que, quando o assunto é ESG, o brasileiro está mais pessimista do que a média global. Na amostra local, 53% dos executivos disseram ter confiança nas estratégias sociais, ambientais e de diversidade das companhias.
Todas as demais regiões atingiram índices de confiança acima de 60% no que se refere ao ESG. Mas o pessimismo dos brasileiros se destacou em outros aspectos, como os que medem a confiança em planos de sucessão e na boa relação entre conselhos de administração e corpo executivo.
Para Flávia Leão, diretora-geral da Russell Reynolds no País, a reticência em relação ao ESG pode ser explicada pela própria novidade do debate por aqui. De repente, o corpo diretivo de grandes empresas – não só multinacionais “modernas”, mas também negócios de capital nacional da velha economia – se viram obrigadas a endereçar não só a questão ambiental e social, mas também diversidade e inclusão. “Um executivo nos procurou, por exemplo, para dizer que não se sentia à vontade para tocar no tema diversidade”, diz Flávia. “Estamos fazendo muitos treinamentos nesse sentido.”
Os executivos nacionais também se veem num dilema, com diferentes forças externas os puxando em direções opostas: enquanto bancos, fundos de investimento e parceiros de negócios colocam o ESG como condição para aportes ou compra de produtos, o governo federal vai na direção contrária, tanto no que diz respeito ao meio ambiente quanto a ações afirmativas.
Esse descompasso faz com que o setor privado tenha de caminhar sozinho rumo ao futuro, afirma João Batista Nogueira, presidente da Evoltz, do setor de energia. “Algo que pode explicar o menor otimismo no Brasil é o fato de o governo brasileiro navegar na direção contrária”, diz o executivo, lembrando que essa falta de sintonia só se aprofundou com a pandemia de covid-19. “O setor privado está preparado (a abraçar o ESG).”
Na visão do presidente da Talenses Executive, também especializada no recrutamento de executivos do alto escalão, João Marcio Souza, a turbulência política e econômica do País tem aumentado o estresse que recai sobre os princpais executivos. “Isso reduz muito o nível de otimismo, e é algo muito ligado à agenda do nosso País.”
Segundo a sócia da ACE Governance, Cristiana Pereira, a pressão para acelerar a implantação de ações ESG afetou o mundo todo durante o isolamento social: “Talvez na Europa o assunto já esteja mais consolidado nas empresas e governos, mas, nos Estados Unidos, na Ásia e outras regiões, todos começaram olhar com mais atenção a partir da pandemia.”
Substituição
Consultora em questões relacionadas a estratégias, inovação e cultura empresarial, Cristina Nogueira, aponta que esse otimismo mais baixo no Brasil pode estar relacionado à necessidade de renovação do “plantel” de líderes locais. Segundo ela, os altos executivos de hoje sabem que precisam passar o bastão para a próxima geração, que assumirá o leme para as grandes mudanças que obrigatoriamente terão de vir.