sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019): pra tudo se acabar na quarta-feira, cinema com rapadura

 Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar“. O belo título do documentário nacional assinado por Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) e “Joaquim” (2017), compara-se aos mais eloquentes da filmografia nacional, ao lado de outros como “Quanto Vale ou é por Quilo?” (2005) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2010). Mas quem espera por um filme fiel ao título precisa ser avisado de antemão que o inspirado nome é tão somente um epíteto, ou réquiem, para as histórias de luta, suor e muito trabalho na fabricação das cerca de 20 milhões de peças de jeans anualmente produzidas na cidade de Toritama, interior do estado de Pernambuco, por cooperativas têxteis.

Às margens do rio Capibaribe, a cidade de pouco mais de 44 mil habitantes é um dos pólos produtivos da região Nordeste, responsável por uma boa parcela do jeans consumido no Brasil, o que lhe confere o título honorário de “a capital do jeans” brasileira. A vocação é fonte de emprego e renda para milhares de trabalhadores locais, que se organizam sobretudo em regime de cooperativa (chamadas “facções”) e por isso se orgulham de serem donos do próprio trabalho. É assim que, todo ano, depois de uma intensa temporada de produção, a maioria deles deixa a cidade vazia durante o Carnaval, fugindo para alguma praia paradisíaca da região ou cidade mais badalada para curtir a folia. Os que não conseguiram dinheiro suficiente chegam até a vender móveis e eletrodomésticos, só para recomprar os bens quando retornam à cidade, e o velho matuto que faz a compra e venda dos bens todos os anos faz sua renda com o ágio. O importante mesmo parece ser não perder o Carnaval ou, ainda mais, não passá-lo em Toritama, lugar de trabalho onde a jornada costuma ir das sete da manhã às dez da noite.

Contudo, longe de ser um paraíso onde o capitalismo tenha dado certo, o olhar de Marcelo e sua narração em off carregada pela nostalgia da infância, quando visitava a cidade com o pai, destacam a simplicidade e improvisação do local, capturando trabalhadores que cochilam sobre amontoados de peças no horário de almoço, exaustos pela intensidade da labuta, e costureiras que se espremem em salas apertadas e sem ventilação. Em meio ao cenário árido de tons terrosos do agreste e dos mil e um tons de azul das peças de jeans que se empilham diante das portinhas das mais de cem cooperativas pela cidade, Marcelo vez ou outra se afasta do ritmo frenético de produção e do intenso barulho da maquinaria que, conforme ele confessa, lhe causa ansiedade, encontrando respiros ao mergulhar nos rincões locais e conversar com seus moradores. Alguns dos quais dariam filmes inteiros, como o adorável Léo, uma espécie de Chicó da vida real, que é pego pelo diretor cochilando em meio a roupas e aos poucos vai tomando parte do filme. Quando ele não consegue juntar dinheiro suficiente para a viagem de Carnaval, a equipe do documentário lhe paga os custos da viagem em troca de filmagens dos seus dias de descanso, enquanto Marcelo e sua equipe filmam uma Toritama vazia, como na memória do diretor, aguardando a Quarta-Feira de Cinzas, fim do Carnaval e começo de um novo ciclo de produção na cidade.

O trabalho sem fim desempenhado pela gente boa de Toritama revela, amiúde, um processo desigual que se desenvolve à revelia do esforço ou empreendedorismo da população local. Isso porque, embora a cidade tenha capacidade produtiva de mais de 20 milhões de peças por ano, sua renda só sobrevive à medida que as grandes exportadoras ainda não dominaram essa fatia do mercado, como atualmente a China, que produz cerca de um bilhão de peças de jeans por ano. Na periferia do capitalismo global, os operários de Toritama lutam por uma renda digna para uma vida confortável, às custas de uma rotina maçante de movimentos repetitivos que Marcelo captura com o olhar detalhista de quem faz uma etnografia antropológica audiovisual. Registrar para não se perder, ao menos na memória, a beleza desse Brasil de gente simples, honesta e trabalhadora, que no fim das contas só quer se divertir e pular o Carnaval.

“Estou Me Guardando…” teve uma rápida passagem pelos cinemas, com bilheteria pouco expressiva. Nas palavras do diretor e montador Eduardo Escorel, em crítica sobre o documentário, “a maioria dos espectadores de cinema não é atraída por grande parte dos filmes produzidos no Brasil”. Ainda que isso seja verdade, vale apontar que o documentário atualmente tem tido uma sobrevida a partir dos serviços de streaming e pode ser encontrado facilmente online de forma legal, uma vitória para uma produção documental brasileira.

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar, Chico Buarque

 Quem me vê sempre parado

Distante, garante que eu não sei sambar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Eu tô só vendo, sabendo

Sentindo, escutando e não posso falar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar


Eu vejo as pernas de louça

Da moça que passa e não posso pegar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Há quanto tempo desejo seu beijo

Melado de maracujá

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar


E quem me ofende, humilhando, pisando

Pensando que eu vou aturar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

E quem me vê apanhando da vida

Duvida que eu vá revidar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar


Eu vejo a barra do dia surgindo

Pedindo pra gente cantar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Eu tenho tanta alegria, adiada

Abafada, quem dera gritar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar


Mas eu já tô indo embora

Um outro que agora me tome o lugar


Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Pedidos de impeachment, OESP editorial

 Em geral, grandes adversidades oferecem aos governantes a oportunidade de exercer uma liderança que, em tempos normais, dificilmente ocorreria. Não é preciso realizar feitos extraordinários. Muitas vezes um comportamento mediano é capaz de assegurar, numa grande crise, novo patamar de reconhecimento a muitos governantes. Jair Bolsonaro, no entanto, conseguiu o exato oposto.

Em vez de representar uma oportunidade de aplainar resistências e consolidar uma natural liderança – afinal, vigora no País o regime presidencialista –, a pandemia do novo coronavírus significou, para Jair Bolsonaro, uma multiplicação do número de pedidos de impeachment.

Desde 2019, 61 denúncias contra Jair Bolsonaro a respeito de crimes de responsabilidade foram protocoladas na Câmara dos Deputados. Desse total, 54 foram apresentadas depois de março de 2020, quando começou a pandemia no País.

No futuro, historiadores vão querer estudar e entender como o presidente Jair Bolsonaro realizou esse feito. O fato é que ele conseguiu. No meio de uma pandemia, com inúmeras preocupações e desafios a serem enfrentados, cidadãos das mais diversas orientações políticas e ideológicas, bem como partidos e entidades, viram-se na obrigação de denunciar o presidente da República por crime de responsabilidade.

Em tese, o impeachment deveria ser a última coisa a se pensar numa pandemia. Com um vírus mortal circulando pela sociedade, a causar morte e sofrimento e a exigir sérias restrições da atividade social e econômica, não se deveria cogitar de afastar do cargo o presidente da República. Esse raciocínio foi, no entanto, inteiramente invalidado pela conduta de Jair Bolsonaro. Suas ações e omissões na pandemia impuseram à Nação uma nova preocupação, dentro de um quadro que já era bastante desafiador.

Não se diga que essa reação foi apenas nos primeiros meses da pandemia, nos quais poderia haver alguma perplexidade do poder público perante um fenômeno completamente novo. Mesmo agora, com protocolos bem consolidados pela comunidade internacional e vacinas contra a covid-19 aprovadas, o presidente Jair Bolsonaro continua se mostrando completamente incapaz de lidar responsavelmente com a crise sanitária.

A reiterada conduta de Jair Bolsonaro motivou, por exemplo, a apresentação por cinco partidos da oposição (PT, PDT, PSB, Rede e PCdoB) de uma nova denúncia coletiva, baseada, entre outros pontos, na morte por falta de oxigênio de pacientes no Amazonas e no Pará.

Esse excepcional conjunto de pedidos de impeachment durante a pandemia não pode ser ignorado. Entre outras coisas, manifesta que o sistema de controle amplo dos crimes de responsabilidade, previsto no Direito brasileiro, está funcionando. Segundo a Lei 1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados.

Segundo o Estado apurou, dos 61 pedidos de impeachment apresentados desde janeiro de 2019, apenas 5 foram arquivados, por descumprimento de requisitos formais, como a falta de assinaturas. Existem, assim, 56 pedidos sobre a mesa do presidente da Câmara dos Deputados, a quem compete verificar o preenchimento dos requisitos legais e, se for o caso, submetê-los à apreciação de comissão especial, composta por representantes de todos os partidos. O caráter especial dos tempos atuais – apesar do início da vacinação, o País ainda está distante de vencer a pandemia – não deve significar a inviabilidade, por princípio, de qualquer pedido de impeachment.

A maioria das denúncias contra o presidente da República por crime de responsabilidade ocorreu precisamente em função de sua conduta no enfrentamento da crise sanitária. Depois de quase um ano de pandemia, Jair Bolsonaro deu mostras mais que suficientes de que não vai mudar. O Direito e a Política dispõem de instrumentos para sanar essas situações. Que o presidente da Câmara não tenha receio de usá-los. O País não pode ficar refém de alguém que despreza não apenas a Constituição, mas a vida e a saúde de sua população.