terça-feira, 19 de janeiro de 2021

‘Bolsonaro faz bravata perigosa e se dirige a escalões inferiores e às PMs’, diz historiador, OESP

 Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo

19 de janeiro de 2021 | 15h27

RIO – Uma bravata perigosa. Assim o historiador José Murilo de Carvalho classifica a declaração do presidente Jair Bolsonaro apontando nas Forças Armadas o poder de determinar se o Brasil é uma democracia ou uma ditadura. Embora admita que o que mandatário afirmou é em parte verdadeiro – considera que a República brasileira é tutelada pelos quartéis –, o pesquisador avalia que ele não fala pelos altos comandos de Marinha, do Exército e da Aeronáutica. E aponta um risco nas atitudes do presidente. Ele, afirma, se dirige aos escalões inferiores da hierarquia castrense e às polícias militares. Para o professor, trata-se de uma “violação da hierarquia”.

“É veneno para as corporações militares”, preocupa-se. “Para o historiador, Bolsonaro “fracassou” na “guerra da vacina” e tenta retomar protagonismo”. Mas não conseguirá bom resultado se tentar envolver os fardados e desafiar a sua hierarquia, adverte José Murilo, que diz que na pandemia Bolsonaro “lutou do lado errado”.

A seguir, as principais trechos da José Murilo ao Estadão.

 José Murilo de Carvalho
O historiador José Murilo de Carvalho  Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO - 2/12/16

Onde o presidente Bolsonaro quer chegar quando diz que depende das Forças Armadas se o Brasil vai ser uma democracia ou uma ditadura?

A declaração é contraditória. Dizer que a democracia depende das Forças Armadas é dizer que já não há democracia, o que em parte é verdade na medida em que temos uma república tutelada. Só teremos uma república democrática quando ela não depender de apoio militar. A república norte-americana passou por uma crise séria, sem que os militares se manifestassem. 

Essa declaração é apenas uma bravata ou há uma ameaça real de golpe, com possibilidade de se concretizar?

É uma bravata perigosa. Ele fala em “nós militares”,  colocando-se como porta-voz do grupo, o que ele certamente não é. Pela lei, quem fala pelos militares são seus comandantes. Se falasse como presidente, chefe das Forças Armadas seria ainda pior, porque estaria colocando a presidência como defensora de um grupo social. A bravata é perigosa para ele por estar usurpando a autoridade dos comandantes das três forças. 

Em sua avaliação, Bolsonaro tem apoio das Forças Armadas, no seu todo ou em parte, para esse tipo de declaração?

Como já indicou o comandante do Exército, general (Edson) Pujol, aliás colega dele na AMAN, quando condenou a politização das Forças Armadas, ele (Bolsonaro) não fala em nome delas. O presidente tem feito um jogo perigoso ao se dirigir a escalões inferiores da hierarquia militar e às polícias militares. Essa violação da hierarquia é veneno para as corporações militares.

Bolsonaro tenta usar as Forças Armadas como “espantalho” contra um eventual processo de impeachment?

Se for o caso, acho que será mais um erro político, um tiro que poderá sair pela culatra por estar comprometendo as Forças Armadas com seu projeto político pessoal. Esse envolvimento não interessa às Forças Armadas que vêm tentando fugir à acusação de que estamos diante de um  governo militar e não apenas de um governo com militares. 

O que explica que Bolsonaro sempre volte à temática e ao imaginário da ditadura, já que ela é passado distante e ele, que ainda não era militar profissional no período mais duro do autoritarismo, deve à democracia a eleição para a Presidência?

O cadete Bolsonaro, número 531, cujo apelido era Cavalão, frequentou a AMAN de 1974 a 1977, em plena ditadura. Teve como instrutores oficiais que lutaram contra a guerrilha do Araguaia montada por militantes do PCdoB, chamados por Bolsonaro em 2009 de “cambada comunista”. Está no livro de Luiz Maklouf Carvalho sobre ele, página 34. A paranoia anticomunista dele nasceu ali e no caso dele, como no de muitos outros militares, continua viva, agora talvez mais como jogada política. 

Declarações desse tipo seriam uma tática do presidente, lançando uma polêmica quando está em desvantagem na opinião pública para desviar a atenção e ocupar o noticiário, como agora, com os problemas que cercam a pandemia, a tragédia de Manaus e ameaça de impeachment? 

É certamente tática de despistamento. A obsessão dele, como era a de Trump, é a reeleição. Ele vai inventar tudo que possa compensar as perdas. 

Diante dessas novas declarações, podemos esperar uma nova fase de radicalização, por parte do presidente?

Ele fracassou redondamente na guerra da vacina e procura voltar à tona. Mas não se dará bem se quiser envolver as corporações militares desafiando sua hierarquia.

Poderemos voltar a 2020, com manifestações apoiadas por Bolsonaro pedindo fechamento do Congresso e do STF?

Se tentar, terá o destino de seu líder norte-americano, sobretudo se os outros dois poderes da República se comportarem com maior responsabilidade. As pessoas estão cansadas da luta contra a pandemia, em que ele lutou do lado errado. 


Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato era de um racismo delirante, FSP

 

Devo muito aos livros infantis de Monteiro Lobato, e entendo o esforço dos que, por afeição, querem defendê-lo das acusações de racismo.

O problema é que, apesar de suas qualidades como escritor, de sua extraordinária coragem política e de suas simpatias à esquerda, Lobato era tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista.

Lê-se muito pouco da sua obra para adultos. Lembro do conto “Negrinha”, em que pelo menos se mostravam as crueldades de uma sinhá branca em cima de uma “menina de criação”.

metade de fotografia de rosto de homem, metade sua silhueta em branco sobre fundo preto
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 20 de janeiro de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Fui ver o que Monteiro Lobato escreve em “O Presidente Negro”, romance de 1926 que, mesmo depois da ascensão de Hitler, ele não viu problema em reeditar.

No livro, o narrador da história começa falando mal dos Estados Unidos, mas muda de opinião quando ouve de Jane, a bela filha de um cientista, o seguinte argumento: “Que é a América, senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos eugênicos das melhores raças europeias?”.

Ayrton, o narrador, observa que os Estados Unidos não tiveram tanta sorte racial assim. “Entrou ainda, à força, arrancado da África, o negro.” Jane concorda: “Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela feliz composição”.Ayrton acha que o problema pode ser solucionado.

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No Brasil, graças à mestiçagem, “dentro de cem ou duzentos anos terá desaparecido o nosso negro”.
Ao contrário de Ayrton, Jane não acha “felicíssima” essa saída; na verdade, “estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos de raças díspares”.

A separação entre as raças, ocorrida nos Estados Unidos, não desagrada a Jane: “O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.

Não se pense que o narrador fique horrorizado. Apaixonara-se pela loura filha do cientista, e comenta: “Como era forte o pensamento de Miss Jane!”.

Ela contará a Ayrton o que vai acontecer nos Estados Unidos. Primeiro, a população negra começará a crescer, enquanto os brancos praticam o controle da natalidade. Mais que isso: graças ao ministério da eugenia, decidiram matar os defeituosos de nascença e esterilizar os deficientes mentais, os “tarados” etc.

Os negros americanos também vão esbranquiçando, apesar de manterem o “cabelo carapinha”. Ficam com “um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”, diz Jane. “Barata descascada, sei”, responde Ayrton.

Nas eleições de 2228, os brancos se dividem: há um partido de mulheres feministas e outro, de homens. Sai vencedor o líder dos negros já “esbranquiçados”.

Situação grave. Não necessariamente porque os brancos podem tentar um golpe ao estilo de Trump, mas porque a “massa negra” despertava de sua submissão “e tremia de narinas ao vento, como tigre solto na jungle”.

Para se defender, os brancos inventam um raio que “alisa a carapinha”, de modo que “o tipo africano melhorava”. Acontece que o raio também era capaz de...

Não conto o final. Registre-se apenas que “armado de mais cérebro”, “o nobre, o duro” branco irá superar o obstáculo para o “ideal da supercivilização ariana”, impondo “um manso ponto final étnico ao grupo que ajudara a criar a América”.

É ficção? Passemos então a um artigo de crítica de arte, publicado nas “Ideias de Jeca Tatu”, livro de 1919. Chama-se “A Caricatura no Brasil”.

Durante a época colonial, diz Lobato, os portugueses “despejavam” no Brasil tudo quanto fosse “elemento antissocial” do reino. “E como o escravo indígena emperrasse no eito”, continua o autor, “para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível”.

Basta? Tem mais. Numa carta de 1928, Lobato diz que “um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca —mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.

Não é o caso de censurar seus livros infantis. Mas também não há escândalo em adaptá-los. Faz-se isso o tempo todo: “Moby Dick”“As Viagens de Gulliver”, “Pinóquio” foram inúmeras vezes reescritos e facilitados para as crianças; o próprio Lobato fez isso, com “Dom Quixote”, por exemplo.

Mas não dá para ignorar, desculpar e fingir que não existe racismo em Monteiro Lobato. Mais fácil perdoar o Trump.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

‘Não dá para falar em precarização com um desemprego brutal’, diz Pazzianotto, OESP

 José Fucs, O Estado de S.Paulo

18 de janeiro de 2021 | 05h00

O advogado Almir Pazzianotto, de 84 anos, é um dos nomes mais respeitados na esfera trabalhista. Advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, nos anos 1970, quando Lula surgiu como líder sindical, ex-ministro do Trabalho (1985-1988) e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Pazzianotto conhece o tema como poucos. Nesta entrevista ao Estadão, ele fala a respeito do impacto das mudanças nas relações do trabalho sobre a legislação trabalhista e os sindicatos. Confira os principais trechos da entrevista.

Com a pandemia, houve a aceleração de uma série de mudanças que já estavam em curso, como a automação, a digitalização e a flexibilização das relações de trabalho. Como isso deve se refletir na legislação trabalhista?

No Brasil, essas mudanças modernizadoras são feitas com enorme dificuldade, com muita lentidão. O grande problema é o tabu que existe em torno da legislação trabalhista e dos direitos sociais, como se nada fosse reformável. A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) cria exigências pesadas para a formalização e empurra muita gente para o mercado informal. A própria Constituição inclui entre os direitos dos trabalhadores a proteção contra a automação. Agora, hoje, você tem 14 milhões de desempregados e um contingente de 30 a 35 milhões de trabalhadores na informalidade. Como vamos gerar trabalho para toda essa gente no século da informatização com tantas exigências?

O sr. defende, então, uma mudança substancial na legislação trabalhista para acomodar as novas formas de trabalho que estão surgindo?

Sim, porque essas novas formas surgem como resultado do desenvolvimento da tecnologia, da ciência. Como haveria trabalho em domicílio se não existisse o computador? Na Revolução Industrial, no século 18, quando descobriram a máquina de fiar ou de fazer tecido, já foi assim. Surgiram também os movimentos ludistas contra as novas máquinas, especialmente na Inglaterra, na França, na Alemanha, mas eles não conseguiram evitar a industrialização, que gerou uma prosperidade sem precedentes na história.

pazzianotto
Pazzianotto foi advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema nos anos 70 Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Em sua visão, quais alterações deveriam ser incorporadas na legislação para o Brasil se adaptar a esse novo mundo do trabalho?

O fundamental é que se dê validade ao contrato. Em vez do “contrato realidade”, deve valer o “contrato escrito”. O “contrato realidade” é muito vago. A natureza do contrato passa a depender de provas documentais e sobretudo testemunhais. Hoje, quando o empregador comparece em juízo, ele pode até levar um contrato assinado, mas o juiz quer ouvir testemunhas, fazer perícia. É claro que há necessidade de que se respeitem os direitos fundamentais do trabalhador. A gente não pode voltar a uma economia selvagem, sem regras. Mas também não dá para ter uma situação que é matriz de insegurança, porque isso retrai o investidor. Como diz uma máxima antiga, o capital é móvel e covarde. Só permanece onde se sente seguro. Não dá para negar ao empresário o desejo de ter lucro.

Muita gente, inclusive no Supremo Tribunal, considera certos direitos sociais e trabalhistas como cláusulas pétreas da Constituição. O que o sr. pensa sobre essa questão?

Um dos absurdos da Constituição de 1988 foi essa questão da cláusula pétrea, em uma Constituição que muda todo dia. Afinal, quais são os direitos inalienáveis, inegociáveis, imprescritíveis? Os direitos fundamentais são a liberdade, a liberdade de opinião, o direito de viagem, o direito de não ser preso de forma arbitrária e de poder votar e ser votado. O 13º não é um direito inalienável. Se a condição econômica exigir, temos de repensar esse assunto. É um direito inegociável o adicional de 50% na hora extra? Não. Isso não poderia estar na Constituição. Teria de estar no contrato coletivo de trabalho, porque cada empresa deve pagar ou usar a hora extra de acordo com a sua possibilidade ou conveniência. Numa situação de crise, ela pode não ter meios de pagar hora extra com 50% de aumento. E aí, o que fazemos? Temos de negociar. Como podemos dizer que isso é inegociável?

Como tudo isso deve afetar os sindicatos?

O (economista John Kenneth) Galbraith tem um livro de 1967 chamado "O Novo Estado Industrial". Ali, ele já falava no declínio do movimento sindical. O modelo original de sindicato, esse sindicato de confronto, está superado. O sindicato tem de ser um canal de comunicação entre seus representados e a empresa, com o dirigente sindical se comportando de maneira civilizada, sem radicalismo. Não adianta mais o sujeito levar o Manifesto Comunista de 1848 na mão e ficar fazendo discurso para a plateia. Isso acabou. O sindicalista de hoje tem de ter uma certa tendência para a diplomacia, para a negociação. O empresário tem de se abrir a isso, porque se não houver uma classe trabalhadora forte não haverá consumo.

Os sindicatos usam muito dois termos, ambos com conotação negativa, para designar essas mudanças: um é a “precarização” e o outro é a “uberização”. Como o sr. analisa isso?

O que a gente entende por “precarização”? Quando você tem um mercado informal equivalente ao formal ou um desemprego brutal, como podemos falar que a classe trabalhadora está protegida contra a precarização? O que defende o trabalhador contra a precarização é uma economia forte, em constante crescimento, moderna. Agora, se eu ponho na lei, na CLT, 922 artigos, o patrão manda embora e o sujeito não consegue outro emprego. Aí, o que ele faz com a CLT? Põe embaixo do braço e vai procurar um emprego?