terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato era de um racismo delirante, FSP

 

Devo muito aos livros infantis de Monteiro Lobato, e entendo o esforço dos que, por afeição, querem defendê-lo das acusações de racismo.

O problema é que, apesar de suas qualidades como escritor, de sua extraordinária coragem política e de suas simpatias à esquerda, Lobato era tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista.

Lê-se muito pouco da sua obra para adultos. Lembro do conto “Negrinha”, em que pelo menos se mostravam as crueldades de uma sinhá branca em cima de uma “menina de criação”.

metade de fotografia de rosto de homem, metade sua silhueta em branco sobre fundo preto
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 20 de janeiro de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Fui ver o que Monteiro Lobato escreve em “O Presidente Negro”, romance de 1926 que, mesmo depois da ascensão de Hitler, ele não viu problema em reeditar.

No livro, o narrador da história começa falando mal dos Estados Unidos, mas muda de opinião quando ouve de Jane, a bela filha de um cientista, o seguinte argumento: “Que é a América, senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos eugênicos das melhores raças europeias?”.

Ayrton, o narrador, observa que os Estados Unidos não tiveram tanta sorte racial assim. “Entrou ainda, à força, arrancado da África, o negro.” Jane concorda: “Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela feliz composição”.Ayrton acha que o problema pode ser solucionado.

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No Brasil, graças à mestiçagem, “dentro de cem ou duzentos anos terá desaparecido o nosso negro”.
Ao contrário de Ayrton, Jane não acha “felicíssima” essa saída; na verdade, “estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos de raças díspares”.

A separação entre as raças, ocorrida nos Estados Unidos, não desagrada a Jane: “O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.

Não se pense que o narrador fique horrorizado. Apaixonara-se pela loura filha do cientista, e comenta: “Como era forte o pensamento de Miss Jane!”.

Ela contará a Ayrton o que vai acontecer nos Estados Unidos. Primeiro, a população negra começará a crescer, enquanto os brancos praticam o controle da natalidade. Mais que isso: graças ao ministério da eugenia, decidiram matar os defeituosos de nascença e esterilizar os deficientes mentais, os “tarados” etc.

Os negros americanos também vão esbranquiçando, apesar de manterem o “cabelo carapinha”. Ficam com “um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”, diz Jane. “Barata descascada, sei”, responde Ayrton.

Nas eleições de 2228, os brancos se dividem: há um partido de mulheres feministas e outro, de homens. Sai vencedor o líder dos negros já “esbranquiçados”.

Situação grave. Não necessariamente porque os brancos podem tentar um golpe ao estilo de Trump, mas porque a “massa negra” despertava de sua submissão “e tremia de narinas ao vento, como tigre solto na jungle”.

Para se defender, os brancos inventam um raio que “alisa a carapinha”, de modo que “o tipo africano melhorava”. Acontece que o raio também era capaz de...

Não conto o final. Registre-se apenas que “armado de mais cérebro”, “o nobre, o duro” branco irá superar o obstáculo para o “ideal da supercivilização ariana”, impondo “um manso ponto final étnico ao grupo que ajudara a criar a América”.

É ficção? Passemos então a um artigo de crítica de arte, publicado nas “Ideias de Jeca Tatu”, livro de 1919. Chama-se “A Caricatura no Brasil”.

Durante a época colonial, diz Lobato, os portugueses “despejavam” no Brasil tudo quanto fosse “elemento antissocial” do reino. “E como o escravo indígena emperrasse no eito”, continua o autor, “para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível”.

Basta? Tem mais. Numa carta de 1928, Lobato diz que “um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca —mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.

Não é o caso de censurar seus livros infantis. Mas também não há escândalo em adaptá-los. Faz-se isso o tempo todo: “Moby Dick”“As Viagens de Gulliver”, “Pinóquio” foram inúmeras vezes reescritos e facilitados para as crianças; o próprio Lobato fez isso, com “Dom Quixote”, por exemplo.

Mas não dá para ignorar, desculpar e fingir que não existe racismo em Monteiro Lobato. Mais fácil perdoar o Trump.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.


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