domingo, 17 de janeiro de 2021

Macron e a soja, OESP

J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo

17 de janeiro de 2021 | 03h00

O presidente da França, Emmanuel Macron, não gosta do Brasil, nem dos brasileiros, nem do presidente que eles elegeram dois anos atrás. Mais do que qualquer outra coisa, Macron não gosta da agricultura e dos agricultores brasileiros; sempre faz questão, nos cinco minutos por ano em que pensa alguma coisa em relação ao Brasil, de repetir que a produção de soja por aqui (sem falar no milho, carne, frango e todo o resto) está destruindo a “floresta amazônica” e, com isso, tirando o oxigênio que a França, a Europa e o mundo precisam para respirar. Não há o que fazer a respeito: o homem não muda de ideia e não muda de assunto. Vai continuar assim. 

O problema com esse tipo de noção é a sua absoluta falta de conexão com a realidade dos fatos. A Amazônia, como pode ser verificado em não mais que dez minutos de pesquisa básica, não tem nada a ver com a soja brasileira, nem com o milho ou com os demais grãos. Mais de 70% da produção brasileira vem de quatro Estados – Rio Grande do SulParanáGoiás Mato Grosso. O Mato Grosso ainda tem uma parte do seu território, apenas uma parte, na chamada “Amazônia Legal” – uma ficção burocrática que não tem nada a ver com a geografia, e sim com truques fiscais para se pagar menos imposto. Mas todo o restante da área cultivada está fora de lá – a maioria dos agricultores do Paraná, por sinal, provavelmente passa a vida inteira sem jamais botar os pés na Amazônia. Além disso, ninguém precisa derrubar uma única árvore para produzir – produzir mais a cada ano, aliás, ocupando o mesmo espaço de terra, por força da tecnologia e do aumento na produtividade. 

O presidente Emmanuel Macron vem enfrentando constantes turbulências, mesmo quando suas mudanças começam a dar frutos.
O presidente da França, Emmanuel Macron Foto: Christian Hartmann/Reuters (20/2/2020)

A Amazônia, inteirinha, responde por 10% da produção rural do Brasil – só isso. Como, então, a soja colhida no interior do Rio Grande do Sul pode estar pondo em risco o equilíbrio ecológico do “planeta”? Não pode, e não vai poder nunca. O presidente Macron, e quem quer pensar como ele, acha o oposto: nunca lhe ocorreu que nos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Brasil possa existir algum tipo de atividade rural fora da Amazônia, nem que o produtor brasileiro conheça o trator, métodos de irrigação e as noções elementares de agronomia. Colheu um cacho de banana? Então é porque está destruindo “a floresta”. 

Macron, se tivesse algum interesse nas realidades, poderia perfeitamente saber disso tudo consultando um dos 5,5 milhões de funcionários públicos franceses que vivem à sua disposição; é impossível que ninguém saiba, nessa multidão toda, como se produz soja no Brasil. Também poderia perguntar sobre o assunto a uma das maiores e mais antigas empresas da própria França, a Louis Dreyfus, que trabalha no agronegócio brasileiro há 80 anos, tem 11 mil funcionários no Brasil e opera ativamente em toda a área rural, da soja à laranja, do café ao milho. Mas quem é que está interessado em coisas chatas e sem nenhum proveito político como a busca de fatos? O presidente da França, com certeza, não está. 

Sua última ideia a respeito do assunto é acabar com a “dependência” que a França teria da soja brasileira – indispensável para a sua produção de proteínas. Disse que estava sendo “coerente”: quem defende a Amazônia e o meio ambiente tem de ser contra o Brasil e a agricultura brasileira. Do que ele está falando? O Brasil produziu 135 milhões de toneladas de soja em sua última safra; a Europa inteira mal chegou às 3 milhões. Como vai resolver isso? Não vai e, pelo jeito, não está preocupado com os aspectos físicos dessa história toda. Como se sabe, existem dois tipos básicos de ignorância: a involuntária e a voluntária. A primeira tem remédio. Para a segunda não se conhece solução.

*JORNALISTA

Por dia, pelo menos 17 fábricas fecharam as portas nos últimos cinco anos, OESP

 Daniela Amorim, Mariana Durão e Márcia De Chiara, RIO e SÃO PAULO

17 de janeiro de 2021 | 05h00

Na semana passada, o anúncio da decisão da Ford de fechar suas fábricas no Brasil após 100 anos evidenciou o processo de desindustrialização em curso no País, agravado nos últimos tempos. Há seis anos consecutivos, desde a recessão iniciada em 2014, o Brasil vê o número de indústrias no território nacional cair.

No ano passado, 5,5 mil fábricas encerraram suas atividades. Ao todo, entre 2015 e 2020, foram extintas 36,6 mil. Isso equivale a quase 17 estabelecimentos industriais exterminados por dia. Os números são de um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) feito com exclusividade para o Estadão/Broadcast.

Segundo a série histórica iniciada em 2002, até 2014 o número de fábricas crescia, mesmo com a indústria de transformação perdendo relevância na economia diante do avanço dos outros setores.

Há seis anos, o País tinha 384,7 mil estabelecimentos industriais. Mas, no fim do ano passado, a estimativa era de que o número tinha caído para 348,1 mil. Pouco antes do anúncio da Ford, outras multinacionais já haviam comunicado que fechariam suas fábricas no Brasil, caso da Sony e da Mercedes-Benz, que encerrou a produção de automóveis.

“O processo de desindustrialização coincide com o início do Plano Real (quando o câmbio apreciado tornou os produtos brasileiros mais caros lá fora e os importados ficaram mais baratos no País). Além do custo Brasil, mais recentemente a produtividade caiu e parte do parque industrial não se modernizou”, explica o economista Fabio Bentes, da Divisão Econômica da CNC, responsável pelo estudo.

“A desvalorização recente do real ajuda o setor agrícola, o extrativo, favoreceu a balança comercial. Mas o efeito para a indústria não é instantâneo”, afirma Bentes.

Ele calcula que a fatia da indústria da transformação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro desça a 11,2% em 2020. Será o patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1946. 

O levantamento da CNC foi feito a partir de duas bases de dados. Uma é a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), atualmente sob responsabilidade do Ministério da Economia. Outra é o Sistema de Contas Nacionais, do IBGE. Apenas os dados referentes a 2020 são uma projeção, feita com base em estimativas para o PIB da indústria de transformação e a produtividade do setor.

Se a produção cresce, cada aumento de um ponto porcentual gera abertura de cerca de 1,2 mil unidades produtivas no ano seguinte. O mesmo raciocínio vale no caso de queda de produção. “Diante disso, não se pode descartar que haja uma redução ainda mais forte no número de indústrias este ano”, explica Bentes.

Sistema tributário atrapalha indústrias

O desempenho da indústria nacional está hoje 14% abaixo do pico atingido em 2011. Segundo o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Rafael Cagnin, o quadro é fruto de um ambiente de negócios hostil e de fatores estruturais que atingem a competitividade internacional do setor.

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Fábrica da Ford na Bahia: falta escala global e novos produtos Foto: Ford

O principal deles, aponta, é o complexo sistema tributário brasileiro. Outro ponto fundamental, diz, é a necessidade de uma política de inovação, hoje fora da agenda nacional. 

Cagnin explica que a restrição dos fluxos entre países durante a pandemia da covid-19 pôs em xeque o modelo de suprimento geograficamente disperso e integrado. “No atual ambiente internacional de rearranjo tecnológico e das cadeias globais de valor, o ônus de ter baixa competitividade pelo sistema tributário tende a aumentar. Precisamos de um indicativo muito claro de que esse problema será solucionado. Sem isso, será muito complicado atrair e preservar investimentos”, diz. 

O vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e presidente da Abiplast, José Ricardo Roriz Coelho, também indica como fator preponderante para os fechamentos de fábricas a falta de perspectiva de que o governo faça as reformas e que tome as providências para melhorar o ambiente de negócios.

Multinacionais como a Ford investem em fábricas com escala global de produção, observa Roriz. E, como o Brasil não cresce e a renda da população se mantém no patamar de dez anos atrás, os produtos ficam inacessíveis aos brasileiros e as empresas não avançam.

Queda da fatia do setor no PIB é fenômeno global

A perda de participação da indústria no PIB é um movimento tido como normal nas economias, que, à medida que se desenvolvem, veem as atividades de serviços ganharem peso na estrutura produtiva. No entanto, no Brasil, esse processo é reflexo sobretudo de um ambiente adverso de negócios para a indústria, afirma Rafael Cagnin.

Essa também é a avaliação da economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) Juliana Trece. “Por mais que esse movimento seja natural, o Brasil está longe de ser uma sociedade que já comprou todos os bens industriais e passou a gastar mais com serviços”, diz. Ela ressalta que o fator determinante é a falta de competitividade, que dificulta a atração de investimentos para o setor.

Enquanto o Brasil dá marcha à ré, Cagnin lembra que desde 2012 todas as grandes potências mundiais começaram a resgatar políticas industriais desenhadas para desenvolvimento de tecnologias mais avançadas.

Participação da indústria automotiva deve cair ainda mais

Desde 2011, a indústria automobilística vem perdendo participação no Produto Interno Bruto, segundo levantamento feito por Juliana Trece. O estudo tem por base um recorte da série das contas nacionais trimestrais do IBGE para o setor a partir de 2000.

Em 2008, pico da série, a produção de veículos respondia por 1,1% do PIB. De lá para cá, oscilou e atingiu a menor fatia em 2016 (0,2%). Nos anos seguintes, 2017 e 2018, houve ligeira recuperação (0,3%). “Não temos dados setorizados para 2019 e 2020, mas, com a pandemia e a saída da Ford, é esperado que a tendência de redução continue”, prevê a economista.


Bolsonaro e Doria apostam corrida maluca pela vacina, Marcelo Leite (melhor texto da FSP)

 Manaus não consegue respirar. No domingo (17), enquanto moribundos manauaras sufocam, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) dominada por militares planeja encenar exibição de diligência tardia ao transmitir pela TV reunião para aprovar duas vacinas contra Covid-19.


Na noite de sexta-feira (14), não se podia descartar nem que fosse adiado o showzinho do governo Jair Bolsonaro. Um dos imunizantes em pauta, o “de Oxford”, viria às pressas da Índia para o ministro Eduardo Pazuello ter o que contrapor à vacina “da China” já estocada pelo governador paulista, João Doria (PSDB), mas o barata-voa não funcionou.

O chanceler Ernesto Araújo até disparou telefonemas ao colega indiano mendigando liberação de 2 milhões de doses, mas deu com os burros do Itamaraty n’água. Sem a garantia, um avião da Azul --empresa do bolsonarista e trumpista David Neeleman—continuava estacionado no Recife, já envelopado com propaganda do governo que sempre desdenhou das vacinas.

Pazuello agora quer todas as doses do Instituto Butantan. Os paulistas retrucaram que precisam saber quantas doses se destinarão ao estado, para entrega direta em seu centro de logística. Não querem tomar um chapéu da gangue de Bolsonaro.

Show por show, Doria também montou o seu. Pavoneou-se na entrevista coletiva do dia 7 ao anunciar “78% a 100% de eficácia” da Coronavac, um recorte publicitário dos dados, e suscitou controvérsia desnecessária sobre um bom imunizante.

Apenas cinco dias depois, em nova entrevista coletiva do Butantan --de que o governador se ausentou-- o número correto de eficácia apareceu: 50,4%.

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Ruim? Não, porque a Coronavac evitaria mais de 3/4 das internações e tem vantagens de segurança e logística. Decepcionante? Apenas em aparência, criada pela ambição de Doria e uma manipulação de informações para não ficar atrás dos 70% anunciados para o produto AstraZeneca/Oxford (dado que também tem sido questionado).

Trata-se de embelezamento inaceitável em estudos científicos, o que se chama de escolha a dedo (“cherry-picking”). Mais difícil de entender do que a farsa doriana é a escorregada do Butantan ao embarcar na canoa furada do tucano; o instituto, pelo menos, se redimiu com a segunda apresentação à imprensa, bem mais transparente.

O saldo da cincada de Doria foi dar munição aos aloprados bolsonaristas, presidente e prole incluídos. Não só voltaram a desmerecer a vacina paulista, que agora querem confiscar, como ainda aproveitaram para fazer propaganda e pressão pelo suposto e indefensável “tratamento precoce”.

Bolsonaro sustenta, como cortina de fumaça tóxica para ocultar o atraso da vacinação, que o Brasil estaria melhor no panorama mundial da pandemia graças a essa charlatanice que onera o SUS. Alega que, proporcionalmente à população, o país tem menos óbitos que outras nações.

De fato, até aqui, com 98 mortes por 100 mil habitantes, saímos melhor que o Reino Unido (129/100 mil) e os EUA (115/100 mil), por exemplo. Como palmeirense, contudo, o presidente deveria comparar-se não com os lanterninhas da tabela, mas com os líderes.

Que tal seu Israel idolatrado? 41/100 mil. Alemanha? Com 9,5/100 mil, desta vez a lavada é de 10:1. E diante da China, volta e meia achacada pela quadrilha Bolsonaro, melhor nem fazer a conta: 0,3/100 mil.
Há uma diferença crucial, porém: todos esses países já iniciaram a vacinação. Enquanto isso, Bolsonaro tomou uma volta de Doria na corrida maluca pela vacina e não consegue nem garantir a chegada de oxigênio a Manaus.

Impeachment é pouco para tanta barbárie, covardia e indecência.

Marcelo Leite

Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.