sábado, 16 de janeiro de 2021

Marcos Mendes - Ralos, FSP

 Temos um setor público que gasta muito e está endividado. Para onde vai tanto dinheiro, se não vemos serviços públicos em quantidade e qualidade que justifique tanto gasto?


Parte da solução desse enigma está na sem-cerimônia com que são tomadas decisões ruins, que levam a gastos de má qualidade, baseadas em argumentos que não resistem a uma avaliação minimamente cuidadosa.

Na coluna passada, descrevi como um programa de financiamento estudantil mal desenhado enriqueceu donos de escolas e jogou custo de mais de R$ 45 bilhões para o contribuinte. A qualificação dos alunos, que deveria ser o objetivo principal, ficou em segundo plano.

Hoje falo sobre outra proposta, que, se aprovada, será mais um dos muitos casos de dinheiro público canalizado para o ralo. A PEC 391/2017 propõe aumentar em um ponto percentual as parcelas do Imposto de Renda e do IPI destinadas ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Se aprovado, o custo será de R$ 4,4 bilhões por ano.


A justificativa é que o cidadão vive no município e, por isso, o dinheiro deve fluir para lá, onde são oferecidos os serviços públicos de atendimento direto à população. Será?

O FPM tem um defeito básico: direciona muito dinheiro para municípios de pequena população. Pelas suas regras, três municípios de 10 mil habitantes, por exemplo, recebem mais que um de 30 mil habitantes.

Isso induziu a criação de muitos municípios com pequena população, que não têm escala que justifique a oferta de diversos serviços públicos. Por exemplo, um hospital com várias especialidades, em um município de 10 mil habitantes, ficaria boa parte do tempo com baixa ocupação e seu custo 
seria proibitivamente alto.

O gráfico mostra quatro sintomas típicos de incapacidade de entregar serviços públicos.

Não há oferta de leitos públicos de internação hospitalar em 38% dos municípios brasileiros. Provavelmente por falta de alunos, 30% dos municípios não têm turmas do 6º ao 9º ano em escolas públicas municipais do ensino fundamental.

O dinheiro que não é gasto na provisão de serviços ao cidadão vai para as áreas administrativas e para a Câmara de Vereadores, financiando emprego público pouco produtivo: em 11% dos municípios o gasto com as funções administrativa e legislativa é maior que o gasto em saúde. Em 7% superam os gastos em educação.

Em 56% dos municípios observa-se pelo menos um desses quatro sintomas. Para essas cidades fluem 39% de todo o FPM. Logo, aumentar o fundo em R$ 4,4 bilhões significa a má alocação de, pelo menos, R$ 1,72 bilhão (4,4 x 39%).

De acordo com o IBGE, 48% dos municípios brasileiros têm como principal atividade econômica a administração pública e a seguridade social. Ou seja, a economia local vive de transferências federais aos municípios e dos benefícios pagos aos idosos. São cidades em que a criação de riqueza pela atividade privada na agricultura, na indústria ou serviços é muito baixa. 
Esses municípios vivem do que é produzido em outros lugares.

A porta de entrada do dinheiro nas cidades dependentes de transferências é o orçamento público. Isso dá grande poder a quem aloca esse dinheiro, e se dá melhor quem tem conexão com os políticos locais, para obter um emprego ou benefício público. Alimenta-se uma máquina eleitoral, que prospera sem a necessidade de criação de valor na econômica local e com pouca conexão com a efetiva 
prestação de serviços públicos.

Caso aprovada, a PEC 391/2017 será a terceira emenda constitucional aumentando as fatias do Imposto de Renda e do IPI destinadas ao FPM. Em valores de hoje, os três pontos percentuais de aumento produzidos pelas três emendas significam R$ 13,2 bilhões a mais por ano para o FPM. Pelas contas acima, ao menos R$ 5,1 bilhões por ano (13,2 x 39%) seriam mal alocados.

Fosse real a preocupação de levar serviços públicos ao cidadão, o Congresso deveria estar discutindo a mudança das regras de partilha do FPM 
e a anexação de pequenos municípios a cidades maiores.

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Marcos Mendes

Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'


Ford deixa o país agora, mas antes abandonou toda uma cidade no meio da Amazônia, FSP

 12.jan.2021 às 17h53

SÃO PAULO

A Ford anunciou, no início desta semana, que vai fechar todas as suas fábricas no Brasil neste ano. Muito antes disso, porém, ela abandonou uma cidade inteira no meio da selva amazônica —Fordlândia.

O povoado às margens do rio Tapajós foi erguido do zero pela montadora no final dos anos 1920, parte de um projeto do seu fundador, Henry Ford, para suprir a demanda de borracha da indústria automobilística americana.

Seguia à risca a filosofia da Ford na época, oferecendo aos operários acesso gratuito a água, luz, saúde e moradia e se baseando numa infraestrutura avançada com hospitais e usina elétrica, incomuns na região.

Mesmo com investimentos estimados em US$ 20 milhões, a cidade sucumbiu ao isolamento, aos altos impostos e às pragas nas seringueiras. Em 1946, Henry Ford vendeu a empreitada para o governo brasileiro. Deixou para trás uma cidade fantasma. A mesma que a artista gaúcha Romy Pocztaruk encontrou há quase dez anos.

Pocztaruk passou cerca de dez dias na cidade em outubro de 2011. Na época, ela conta, só se chegava à cidade a partir de Santarém, depois de três horas de carro numa estrada propensa à inundação ou dez horas de barco.

A artista estava envolvida na produção de uma série fotográfica sobre a rodovia Transamazônica, outro projeto faraônico que acabou sendo abandonado. Em Fordlândia, conta, ficou fascinada com os vestígios deixados pela ocupação americana nas fábricas e residências, símbolos de uma utopia na selva.

"Era uma memória que estava inserida na vida daquelas pessoas de uma maneira que nem elas mesmas percebiam", afirma Pocztaruk. Era o caso dos cobogós e dos móveis originais dos anos 1920 vistos nas antigas casas dos executivos da Ford em Vila Americana, hoje ocupadas por membros da comunidade ribeirinha local.

Ou das pinturas e fotografias penduradas nas paredes, exibindo imagens da montadora e do seu fundador. Mesmo a louça de um banheiro exibe os traços da presença estrangeira, segundo Pocztaruk. "Não é algo que existiria no meio da Amazônia."

Esse impulso de documentação permeia toda a pesquisa da artista gaúcha. Com obras em coleções como a Pinacoteca e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, ela busca em suas obras resgatar uma história recente do Brasil, em geral desconhecida da população

Fordlândia, por exemplo, não está na maioria dos livros didáticos, assim como as demais cidades à beira da Transamazônica que ela fotografou na série, povoados com nomes ora ufanistas, ora tecnocráticos que hoje são pouco mais do que ruínas —Brasil Novo, Bandeira, Rurópolis, Jatões.

Todas elas guardam memórias que estão aos poucos sendo apagadas, afirma Pocztaruk. Arquivos históricos de Fordlândia, por exemplo, foram todos agrupados num cômodo dentro da fábrica, "como uma cadeia de memórias", nas palavras da artista. Ali estão de documentos sobre o hospital da cidade, o mais avançado no Brasil na época de sua construção, a mapas e fotografias amareladas, objetos que ela também fotografou para o projeto.

"Acho que esses resíduos ficam para contar a história", diz a artista. "E nos alertar de que pensar o futuro também é olhar para o passado."