quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Hélio Schwartsman Vacinação pública ou privada, FSP

 A vacinação só será capaz de pôr fim à epidemia se estiver no âmbito de um programa universal e público. E, se a circulação do vírus permanecer muito elevada, nem quem tem dinheiro para pagar por um imunizante estará livre de riscos. Vacinações são por excelência uma estratégia coletiva de saúde.

Isso dito, não vejo problemas em permitir que clínicas particulares importem e apliquem vacinas contra a Covid-19. A rigor, qualquer agente que consiga trazer para o Brasil biofármacos que de outra forma não chegariam aqui está contribuindo para o esforço comum.

É preciso, contudo, alguns cuidados. Seria decerto um despropósito se a iniciativa privada e o setor público entrassem numa disputa suicida pelos mesmos imunizantes. Mas há fórmulas menos drásticas que o veto às clínicas particulares para evitar esse tipo de situação.

Uma objeção que merece consideração é a de que a participação privada, ao criar oportunidades diferenciadas de acesso à vacina com base em renda, corrompe o caráter público da fila e o princípio do acesso igualitário. Não vejo como discordar, mas receio que o argumento seja forte demais. Parece-me complicado usá-lo para vacinas, mas deixá-lo de lado para todo o resto.

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Nós, afinal, não adotamos a fila única para leitos de UTI em hospitais públicos e privados. E não é só na pandemia. Há décadas aceitamos que pacientes de câncer do SUS morram à espera de vagas para tratamento, enquanto elas sobram na rede particular. A aplicação consistente do princípio da igualdade de acesso implicaria uma espécie de veto à medicina privada, o que não ocorre em nenhum país democrático.

O fato de eu não ver com maus olhos a participação de clínicas particulares na vacinação não significa que ela seja solução. Só voltaremos a algum tipo de normalidade depois que a maioria dos brasileiros tiver recebido sua vacina —e apenas o poder público é capaz de fazer isso.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Influenciadores de gastronomia vivem num mundo sem pandemia e sem noção, Marcos Nogueira, FSP

 

Este é o décimo-sétimo ano consecutivo em que tentam emplacar o verão do vinho rosé. Os informativos das assessorias de imprensa oferecem as mesmas coisas de sempre:

  • Sobremesas geladas de baixa caloria;
  • Refeições light com salmão cru em alguma rede de fast food com inspiração remotamente havaiana;
  • Sanduíche de frango cremoso, festival da piscina de sopinha de cheddar cremoso, isso ou aquilo com requeijão cremoso. Parece que a epidemia é de cáries e fez o mundo perder os dentes;
  • Novos sabores de sorvete tipo gelato que buscam referência em alguma coisa que foi moda algum dia em algum lugar da Itália;
  • Drinques refrescantes para a estação feito pelo bartender João de Tal, do reality show XYZ, com o gim de R$ 350 feito sob medida para o público de paladar diferenciado;
  • Rede de restaurantes Grud’s, cuja proposta possui um conceito inovador na gastronomia, abre unidade flagship em Moema com cardápio sintonizado nas tendências que guiam o universo foodie.

Enquanto isso, os coleguinhas influenciadores de gastronomia seguem viajando a convite, comendo a convite, postando fotos de praias azuis e decks charmosos, ostentando camarões e lagostas e taças de moscow mule no Instagram, agradecendo por presentes fofos de marcas amigas, bebendo a cerveja sem álcool e a cerveja sem glúten sem dizer que foram pagos para isso, rindo como se o presente fosse uma festa e houvesse futuro promissor adiante.

Em que mundo essa gente vive? A coisa chegou a um ponto ridículo, surreal.

Entendo que é preciso sobreviver depois do colapso da imprensa, que tragou primeiro as editorias de futilidades –gastronomia, viagem e moda. Depois do colapso da economia. Depois do colapso da sociedade, que culminou com a pandemia da Covid-19.

Entendo que é preciso engolir em seco e aceitar trabalhos que não são exatamente ideais, pagos por quem pode pagar.

Mas eu não entendo o negacionismo da comunicação em gastronomia.

Empresas e seus contratados tentam nos vender um mundo que desmoronou faz tempo. Não dá mais para consumir como antes, com um sorriso idiota no rosto, porque tal vinho bombou em Saint-Tropez ou tal drinque virou hype nos Hamptons. Não dá mais para indicar uma opção de alimentação saudável e prática, mas que preserva todo o sabor, para manter o corpo em forma e se exibir na praia. Não faz sentido que pessoas com boletos vencidos compartilhem glamour como se pudessem pagar por ele.

Jornalistas e assemelhados são intrusos, sempre foram. Uma das graças do ofício é se imiscuir com os políticos, com os ricos, com os artistas, viver um pouco da vida dessas pessoas peculiares sem se tornar uma delas. Mas também é inerente à profissão o crivo crítico, o filtro de sensatez para se identificar com a sociedade em geral e reportar sem deslumbre o universo dos poderosos.

O deslumbramento acrítico sempre foi tolerado na imprensa de lifestyle –e, mais tarde, nas mídias sociais– porque refletia, de certa forma, certas aspirações de certa parcela do público. Não tem mais aspiração. Tem a bajulação dirigida a quem já está no topo da pilha de carne-seca, em troca de uns retalhos de charque. Ou o certo seria dizer jabá?

É urgente que restaurantes, hotéis, marcas de bebidas e de comida, companhias aéreas e todo o setor de entretenimento encontrem um jeito novo de se dirigir ao consumidor potencial.

Em 2021, repetir a fórmula que vicejou na década passada se tornou ofensivo.

Conheça a startup de baterias que pode fulminar a Tesla, WSJ, FSP

 6.jan.2021 às 9h50

Stephen Wilmot
NOVA YORK | THE WALL STREET JOURNAL

Uma das tramas mais inesperadas na grande batalha dos veículos elétricos em 2020 foi a ascensão, no final do ano, da QuantumScape, uma startup no segmento de baterias que ainda não registra faturamento.

Se os investidores estiverem próximos de estar certos sobre seu valor de mercado, estimado em cerca de US$ 44 bilhões (R$ 234,3 bilhõs), talvez seja necessário eles começarem a se preocupar com o destino da Tesla.

As ações da QuantumScape estão em disparada desde que a companhia abriu seu capital, em novembro. Ela anunciou os primeiros e promissores resultados de teste com sua bateria de estado sólido no começo de dezembro, mas mesmo assim é difícil explicar a ascensão meteórica de suas ações.

Sediada em San Jose, na Califórnia, e com a Volkswagen e Bill Gates entre seus investidores, a companhia agora tem valor de mercado superior ao da Ford. Os investidores se acostumaram a avaliações estonteantes para as startups de veículos elétricos que se posicionam como a próxima Tesla. No caso da QuantumScape, o entusiasmo se estendeu aos potenciais fornecedores do setor.

Elon Musk durantre cerimônia de lançamento do Model 3 feito na China, em Xangai - 7.jan.2020/AFP

As baterias de estado sólido são vistas há muito tempo como maneira de derrubar as limitações de desempenho associadas aos veículos elétricos atuais. Como no caso de um smartphone, um Tesla ou BMW i3 é acionado por uma bateria dotada de um eletrólito líquido que transporta íons de lítio entre um cátodo e um anodo, e vice-versa, durante o processo de carga e descarga. Os eletrólitos líquidos são volumosos e propensos ao superaquecimento. A General Motors ordenou o recall de cerca de 69 mil carros elétricos Chevrolet Bolt, em novembro, depois que surgiram informações sobre incêndios em cinco deles.

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A promessa das baterias de estado sólido é deixar de usar o líquido, o que elimina o risco de incêndio. Além disso, as células de “lítio-metal” em desenvolvimento pela QuantumScape, e por outras companhias, combinam o componente de lítio com o anodo, outra forma de reduzir o volume do componente e de possivelmente produzir mais energia a custo mais baixo. Isso também tem importância crítica: o avanço dos veículos elétricos vem sendo bloqueado há muito tempo pelo custo relativamente alto das baterias, o que os torna mais caros que seus equivalentes dotados de motores de combustão interna.

Outras vantagens das baterias de estado sólido incluem a recarga mais rápida e a expectativa de uma maior durabilidade. A QuantumScape anunciou em dezembro que sua célula, na especificação testada, podia ser recarregada a até 80% de sua capacidade em 15 minutos, e que ela retinha mais de 80% de sua capacidade de carga mesmo depois de 800 recargas. Números como esses tornam a posse de um veículo elétrico muito mais parecida com a de um veículo a gasolina atual.

Muita gente no setor de baterias considera as baterias de estado sólido como a tecnologia de uso mais provável no futuro. Elon Musk, presidente-executivo da Tesla, é a exceção mais proeminente. A tecnologia de estado sólido não esteve entre os muitos desenvolvimentos discutidos durante o “dia da bateria” que a empresa dele promoveu em setembro. Musk disse a analistas, em uma conversa sobre os resultados de sua empresa no terceiro trimestre, que remover o anodo convencional “não é tão ótimo quanto pode parecer”, em termos de criar economia de espaço na célula.

O ceticismo da Tesla talvez esteja relacionado à tecnologia de baterias da empresa, que provavelmente dificultaria para outros usuários a adaptação a eletrólitos de estado sólido. A Tesla usa baterias cilíndricas formadas de células enroladas, enquanto seus concorrentes costumam favorecer as baterias ditas prismáticas, nas quais as células podem ser empilhadas. Porque as células de estado sólido são mais quebradiças que as líquidas, é muito mais fácil empilhá-las do que enrolá-las.

Adaptar a maior parte das fábricas de baterias para veículos elétricos atuais à nova tecnologia não causaria grande desordenamento, disse Graeme Purdy, presidente-executivo da Ilika, uma empresa britânica que produz baterias de estado sólido e está trabalhando com a Jaguar Land Rover a fim de garantir uma transição suave. Mas a história pode ser diferente para a Tesla. A mudança pode se tornar o momento em que as baterias da companhia, que até o momento representaram uma vantagem competitiva, se tornem uma desvantagem.

A Tesla não tem o tempo a seu favor, caso precise mudar de rumo. A Toyota provavelmente conta com as mais avançadas baterias de estado sólido, hoje. Planejava usá-las para acionar protótipos de veículos que circulariam na Olimpíada de Tóquio em 2020, que foi adiada por um ano, e planeja ter um modelo produzido em massa no mercado em 2025. Mas a tecnologia provavelmente não conseguirá competir em termos de custo com as baterias atuais até o final da década de 2020, no mínimo.

Os investidores na QuantumScape estão apostando no futuro. O plano de negócios da empresa não projeta faturamento substancial antes de 2026. Tampouco existe garantia de que a solução da empresa venha a se provar superior à da Toyota ou outras. Os resultados de testes anunciados pela QuantumScape no mês passado se referiam a baterias de camada única de células. A Solid Power, uma startup americana de capital fechado, já está produzindo baterias de estado sólido com múltiplas camadas, em uma fábrica em Louisville, Colorado. “Os desafios industriais se tornam exponencialmente mais difíceis com o avanço para as múltiplas camadas”, diz Mark Newman, analista da corretora Bernstein que tem por foco a indústria de baterias.

As avaliações de mercado de empresas como a Tesla e a QuantumScape requerem que os investidores contemplem o futuro longínquo e presumam um desordenamento maciço da estrutura vigente. O problema é que, caso o plano da QuantumScape funcione –e esse é um grande “se”–, a Tesla mesma poderia ser uma das empresas a sofrer desordenamento mais sério. Em 2020, os investidores compraram praticamente tudo que se relacionasse a veículos elétricos. Este ano eles talvez precisem demonstrar maior discernimento.

Tradução de Paulo Migliacci