terça-feira, 28 de julho de 2020

Pablo Ortellado Receio de regular mídias sociais favorece o status quo, FSP


As regras que orientam o funcionamento das mídias sociais estão outra vez no coração do debate político. A regulamentação do seu funcionamento é um dos maiores desafios das políticas públicas e é efetivamente cheia de riscos —mas a inação, com a manutenção do status quo, é pior.

Há duas questões que são o cerne do problema. A primeira é que a liberdade de expressão, basilar para o funcionamento de uma democracia, às vezes entra em choque com outros direitos, como o direito das minorias, o direito à honra ou o direito à saúde. E esses direitos precisam ser equilibrados.

A segunda questão é que, na ausência de uma regulação pública, prevalece o autorregramento do setor privado, o que o jurista americano Lawrence Lessig imortalizou no slogan "code is law", ou seja, quem escreve o código do serviço regula o seu funcionamento.

Esse imbroglio está no centro do debate, tanto sobre as ações de moderação e fechamento de contas pelas plataformas de mídia social como sobre o PL das fake news. Em ambos os casos, há o argumento, que vem ganhando adesão, de que não se deve olhar para os conteúdos, mas para os comportamentos, aplicando medidas punitivas mais duras apenas para quem usa contas falsas ou tenta manipular os algoritmos.

Essa saída é boa apenas para as empresas, que desviam assim o foco do enorme poder que exercem sobre a moderação do debate público. Afinal, há vários conteúdos impróprios que circulam nas plataformas e que não vêm acompanhados do chamado "comportamento inautêntico". Nem sempre quem veicula discurso de ódio, por exemplo, se faz passar por outrem.

PUBLICIDADE

Se decidirmos então que é preciso olhar para os conteúdos, vamos ter que pactuar as regras do debate democrático. Se é bem verdade que a celeridade que os presidentes das casas legislativas impuseram à tramitação do projeto de lei das fake news não permite fazer agora essa pactuação com o devido cuidado, isso não significa que ela não precisará ser feita no futuro.

O processo de moderação de conteúdos nas mídias sociais precisa ser regulado.

Não podemos deixar que empresas privadas, agindo segundo regras inteiramente próprias e sem nenhuma supervisão, excluam, rotulem ou diminuam o alcance de postagens ou suprimam contas. Talvez seja preciso ir além e mitigar ou eliminar os incentivos que as plataformas oferecem para discursos delirantes, inflamatórios e divisivos.

Intervir nisso é perigoso e delicado, mas depois de tudo o que vivemos —da ascensão da extrema direita ao negacionismo da Covid— manter o status quo não deveria mais ser uma opção.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Alvaro Costa e Silva Deu a louca no Brasil, FSP

A realidade é mágica. Não invento nada. Não há uma só linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação." A confissão de Gabriel García Márquez jamais esteve tão visível e palpável como hoje no país das emas, das quase 90 mil mortes por Covid-19 e dos quatro milhões de comprimidos de cloroquina estocados.

Na semana passada, um grupo de baloeiros armados invadiu o aeroporto Tom Jobim para resgatar um balão com 18 metros de altura que havia caído na pista e por pouco não provocara um acidente gigantesco. Os criminosos trocaram tiros com a polícia e fugiram num barco. Havia uma recompensa de R$ 5 mil para quem recuperasse o artefato de papel de seda, cangalha e boca de ferro e fogo. Nem Rubem Fonseca, que escreveu um conto criminal intitulado "O Balão Fantasma", tinha ido tão longe.

Para explicar a enfiada de situações absurdas e inverossímeis em que a sociedade está mergulhada, alguém bolou uma frase que desde 2016, ano do impeachment de Dilma, passeia nas redes sociais: "O roteirista do Brasil devia ser demitido". Pensando melhor, ele devia ganhar em dobro, por entender como ninguém as mazelas do público a que se dirige.

Além de exagerado e sem graça, o roteirista apela para surrados clichês. A carteirada do desembargador, com direito a falar francês, chamar o guarda de analfabeto e rasgar a multa por não usar máscara, é um método de humilhação estabelecido há 500 anos.

Contudo, o ponto alto do blockbuster "Deu a Louca no Brasil" é a dramatização da pós-verdade. Na trama, um celerado que ocupa a Presidência, e se disse contaminado pelo coronavírus, levanta uma caixa de cloroquina para adoração de apoiadores. Em outra cena, oferece o remédio que não tem eficácia no tratamento da Covid para as emas do Palácio da Alvorada. Salvem as emas enquanto é tempo, porque a população morre no fim do filme.

Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".