segunda-feira, 27 de julho de 2020

OPINIÃO JOSUÉ PELLEGRINI Compromissadas: ruim com elas, pior sem elas

A dívida pública, aferida pela Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), chegou a R$ 5,9 trilhões, ou 81,9% do PIB, em maio, recorde da série histórica. A Instituição Fiscal Independente (IFI) estima que esse percentual ultrapassará 96% do PIB neste ano e continuará subindo nos anos seguintes.

A dívida mobiliária e as operações compromissadas correspondem a 90% da dívida pública. Ambas são de responsabilidade da União e consistem em títulos públicos em poder do público.

Contudo, existem diferenças importantes entre elas. A mobiliária é gerida pelo Tesouro Nacional e tem como objetivo financiar o déficit público e providenciar o refinanciamento do passivo sem sobressaltos.

Já as compromissadas são geridas pelo Banco Central e correspondem à venda de títulos públicos da sua carteira, com o compromisso de recomprá-los em curto prazo. A sua gestão se orienta pelo controle da liquidez da economia, de modo a garantir que a Selic, a taxa de juros básica, se mantenha em nível compatível com a meta de inflação.

Ao perseguir seus objetivos, a gestão da dívida mobiliária afeta as compromissadas. O déficit público e/ou o montante de papéis resgatados no vencimento podem não ser compensados pela emissão de títulos, o que leva o Tesouro a sacar recursos da sua conta única no Banco Central. Esses saques, como consequência, impactam a liquidez da economia e obrigam o Banco Central a realizar compromissadas.

As compromissadas não são uma invenção nacional, mas a relevância alcançada aqui não encontra paralelo em outros países. De 2,5% do PIB, em 2006, alcançaram 17,5% do PIB, em 2017. Depois de uma expressiva redução, em 2019, subiram novamente, durante a pandemia, de 13,9%, em fevereiro, para 18,1% do PIB, em maio. Em junho, devem ter chegado aos 19% do PIB.

Recorrendo-se aos números relativos aos condicionantes da base monetária, fornecidos pelo Banco Central, pode-se constatar que as compromissadas cresceram especialmente por conta dos saques na conta única, R$ 408,6 bilhões, no acumulado de março a junho, exclusive operações com títulos públicos. Ao mesmo tempo, os resgates desses papéis no vencimento superaram as emissões em R$ 42,2 bilhões. Como resultado, as compromissadas subiram R$ 368,1 bilhões.

Esse último número não corresponde à soma dos dois anteriores por conta da ação de outras operações feitas pelo Banco Central, não relacionadas com o Tesouro Nacional, como venda de reservas externas, depósitos recebidos e empréstimos concedidos a instituições financeiras, operações de swap cambial e aquisição de ativos. Contudo, a redução das compromissadas propiciada pela venda de reservas compensou o efeito somado dos outros três fatores.

Restou o aumento de R$ 78,5 bilhões da base monetária no período, um “almoço grátis” ao evitar a expansão das compromissadas em igual montante. Esse aumento pode ter decorrido de uma maior demanda por moeda pelo público, no contexto excepcional da crise.

As compromissadas deverão subir mais nos próximos meses, mesmo com a continuidade das elevadas emissões líquidas de títulos públicos iniciadas em maio. Isso porque os déficits primários mensais também serão elevados, próximos de R$ 95 bilhões, em média, tomando-se por base os números já divulgados e as projeções para este ano.

Há que considerar também o potencial efeito de outros fatores sobre as compromissadas, a exemplo da concessão de empréstimos a instituições financeiras e da compra de títulos públicos e privados no mercado secundário, autorização dada pela Emenda Constitucional 106, de 2020. Mas esse assunto envolve o nosso “Quantitative Easing” e requer atenção exclusiva.

No Brasil, as compromissadas tornaram-se mais relevantes do que talvez fosse desejável. O país terá que lidar com esse problema no futuro. Outros temas importantes associam-se a esse, como a criação de instrumentos alternativos e a mudança na aferição da dívida pública.

No atual contexto, contudo, ainda bem que as compromissadas existem. Seus atributos são absolutamente necessários para superar o desafio do financiamento do elevado déficit público, em dobradinha com a dívida mobiliária, como a dupla de zaga Brito e Piazza, em homenagem aos 50 anos do tri.

Marcus André Melo Populismo e o futuro da democracia, FSP (definitivo)

Populismo é um termo elusivo que resiste a definições: já foi aplicado a contextos tão diversos quanto a Rússia —onde se originou, nos anos 1870, a palavra "narodnik" (de narod, povo em russo)—, os Estados Unidos, no final do século 19, ou a América Latina do pós-Guerra. Ele passou a designar todo movimento político ancorado em apelo ao povo —em oposição às elites— e na representação política direta, sem mediações ou controles institucionais.

A crítica populista à democracia representativa tem assim longo pedigree à direita e à esquerda, mas adquiriu centralidade na atual vaga iliberal. Os que atuam entre o povo e os governos são seu alvo: os partidos, os políticos, as elites e os "checks and balances" que limitam a expressão da vontade popular.
A boa representação política para o populismo é "descritiva" —os líderes são bons porque se parecem com a base ("são um deles")— e "simbólica" —o líder é símbolo e se define pelo que é, não pelo que faz.

Nas democracias consolidadas, essa crítica centrou-se na ideia da existência de déficits democráticos: os partidos viram sua função representativa se atrofiar e a governativa hipertrofiar. Ao terem se "estatizado", perderam a conexão com a sociedade civil. Como entes parapúblicos, já não precisam de militantes. As consequências: o comparecimento às urnas desabou (de mais de 80% para pouco mais de 60% entre 1960 e 2010), e a identificação partidária idem.

O populista se enxerga assim como uma reação a esse estado de coisas: a reconquista da política pelos cidadãos. Na Europa, a crítica é que a distância entre governos e cidadãos teria se alargado devido à "governança multinível", em que intermediários em Bruxelas e organizações internacionais e governos nacionais diluem o nexo de "accountability" entre cidadão e representantes.

O populismo não é a única manifestação iliberal no momento. A crítica tecnocrática à democracia representativa tem elementos comuns: a rejeição da política institucional (parlamentar, eleitoral etc.), a representação política como tutela de interesses (pelo líder plebiscitário ou pelos especialistas), a recusa do pluralismo.

Não há nesses modelos espaço para a "accountability" democrática: punir e premiar o desempenho de populistas e de especialistas seria uma contradição em termos. No primeiro caso, se falham, é porque forças ocultas lhes obstaculizam a ação. No segundo, é porque os não especialistas —o eleitorado, os políticos— nunca teriam capacidade de julgá-los.

A crítica ao populismo não deve se confundir com a defesa iliberal da tecnocracia. O risco envolvido, contudo, aumenta na atual conjuntura da pandemia.

Marcus André Melo

Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).