segunda-feira, 27 de julho de 2020

Ruy Castro A história no meio do nada, FSP

Todos os estabelecimentos comerciais ameaçados de morte pela pandemia têm sua história. Alguns, claro, têm mais história do que outros, pelo tempo de casa e pelo que aconteceu entre suas paredes. Um deles é o Villarino, misto de uisqueria e balcão de importados no centro do Rio, fundado em 1953. Ali se deu, num fim de tarde de 1956, um aperto de mãos decisivo na cultura brasileira, entre Vinicius de Moraes, em busca de um parceiro para musicar sua peça "Orfeu Negro", e Tom Jobim. O que resultou você sabe.

E só podia ter acontecido no Villarino, então um templo do pós-expediente para jornalistas, escritores, radialistas, compositores, arquitetos, diplomatas e pintores, quando todos ainda trabalhavam na cidade. De Pancetti e Dolores Duran a Paulo Mendes Campos e Villa-Lobos, era em suas mesas que eles comungavam em torno de um uísque, esperando o fim do rush, antes de rumar para a Zona Sul.

Até que, nos anos 80, a noite no centro do Rio, como a de muitas cidades brasileiras, foi deixando de existir. O Villarino reinventou-se como restaurante diurno, caseiro, de escalopes e escabeches, e seguiu firme. Além dos novos clientes que conquistou, havia os turistas a fim de conhecer o lugar onde se dera a inseminação da bossa nova.

Mas, agora, ele corre perigo. A pandemia isolou a região —os escritórios e repartições em torno reduziram o seu funcionamento presencial ao mínimo, e o Villarino viu-se, de repente, no meio do nada. Todo o comércio dali está assim.

O centro do Rio sempre conteve mais história do que os livros puderam registrar. Nele o Brasil foi Colônia, Vice-Reino, Reino, Império e República, e os nomes de seus personagens estão nas placas das ruas. É preciso que o carioca —pelo menos quem já começou a sair— volte àquelas ruas e àquelas mesas onde, um dia, sonhou-se um país. Que, pior para nós, só existiu enquanto estava sendo sonhado.

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Vinicius de Moraes, com o filho Pedro, cercado de amigos no Villarino, em 1956
Vinicius de Moraes, com o filho Pedro, cercado de amigos no Villarino, em 1956 - Divulgação
Ruy Castro

domingo, 26 de julho de 2020

Medo de tudo Willian Vieira, Revista Gama

Desde que o coronavírus surgiu, Maria Marques, 45, vive com medo. “Tenho medo até de abrir a porta de casa”, diz a pernambucana, que mora com a mãe em Perus, periferia de São Paulo. Afinal, a doença apareceu na TV há alguns meses, ganhou a cidade e logo alcançou seu círculo íntimo. “Perdi amigas jovens, que de repente foram pro hospital e morreram”, diz. “Antes eu dormia mal. Agora não durmo mesmo.” Acostumada a acordar às 5h30 para trabalhar como babá, ela sente falta da rotina, das crianças: teme pela vida delas — e pela sua. “Agora vivo trancada em casa, morrendo de medo.”

Sentimento inerente ao ser humano, o medo tem pé no instinto. “Sem ele, a espécie teria desaparecido, pois os destemidos morrem mais que os medrosos”, diz o psiquiatra Tito Paes de Barros Neto, pesquisador do Instituto de Psiquiatria da USP e autor do livro “Sem Medo de Ter Medo” (Segmento Farma, 2016). Mas quando ele se exacerba, causando sofrimento constante e impactando a vida, dá lugar à ansiedade patológica, à fobia, ao pânico. “O medo leva a um constante estado de alerta, o que afeta o sono e a alimentação, bagunça corpo e mente.”

O temor do coronavírus ocasionou, nos últimos meses, uma alta no número de pacientes em busca de ajuda

O temor do coronavírus ocasionou, nos últimos meses, uma alta no número de pacientes em busca de ajuda — Barros deixou suas pesquisas de lado para focar neles. “Muitos estão desesperados com a Covid”, diz. “Alguns reapareceram depois de anos, outros estavam bem e pioraram. Um deles me liga seis vezes por dia: de tanto medo de morrer, acabou indo ao pronto-socorro e voltou com medo de ter pegado a doença. Chegou a escrever um testamento.” Antes, diz, sua ansiedade estava controlada. “A pandemia foi o gatilho que deflagrou a crise.”

Marques sabe bem o que é isso. Ela teme a violência (testemunhou diversos assaltos onde mora) e o escuro: só dorme de luz acesa. Sem falar de sapo — ela tem pavor do anfíbio. “Se vejo um, saio correndo.” Mas agora teme sair de casa ou travar qualquer relação. Tanto que desmarcou a consulta para tratar a insônia. “O consultório fica no hospital, que é onde se pega a Covid. E eu morro de medo.”

Uma epidemia de medo?

A pandemia virou o grande tema de conversas e pensamentos, habitando tanto a socialização nervosa quanto a amedrontadora solidão. Dias atrás, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) fez uma enquete entre os associados, perguntando se haviam detectado aumento na demanda. “75% respondeu que sim”, diz Cláudio Martins, vice-presidente da ABP. “É um retrato observacional da situação atual. Fora que a pandemia está presente em todas as consultas que eu faço.”

Tanto que muitos psiquiatras que consideravam reduzir a medicação de pacientes desistiram, afirma Daniel Kupermann, professor livre docente do Departamento de Psicologia Clínica da USP. “A procura de atendimento no período aumentou muito. Eu diria que 90% de quem já fazia terapia seguiu de forma virtual, e muita gente que nunca fez está começando já de forma remota. Estamos trabalhando muito mais.”

Com a pandemia, há um cenário de estresse ambiental concreto, a sensação de perigo é real, então o medo não é por acaso

Tal reação se justifica. “Com a pandemia, há um cenário de estresse ambiental concreto, a sensação de perigo é real, então o medo não é por acaso”, afirma o psiquiatra Jair Mari, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. “A pandemia é um dos eventos psicológicos mais importantes que a humanidade já enfrentou.” Mas a resposta emocional, psíquica, não é homogênea.

Para Kupermann, há ao menos quatro grupos lidando de forma diversa com o medo. “Primeiro, há os negacionistas, que ignoram a doença e pretendem não ter medo.” Vide o descaso no Rio, com pessoas se aglomerarando nos bares. “Eu os chamo de os destemidos do Leblon”, ironiza Barros. “São pessoas que negam esse medo que salva, alimentadas pela arrogância.”

Há um cenário de estresse ambiental concreto, a sensação de perigo é real, então o medo não é por acaso. A pandemia é um dos eventos psicológicos mais importantes que a humanidade já enfrentou

Segundo, há quem tem certo medo, mas pode se proteger, fazer home office, seguir orientações: nem ignoram os riscos, nem mergulham no medo. Já um terceiro grupo, bem maior, é composto por quem se vê obrigado a sair para trabalhar — às vezes em ônibus e trens lotados. Estes precisam sublimar o medo, enfrentá-lo para sobreviver. Mas ele cobra um preço depois. Mari, por exemplo, prevê que o pior está por vir. “Estamos vivendo outra epidemia paralela, essa de ordem mental.”

É onde entra o quarto grupo: os que se hipersensibilizam com a situação. “São pessoas que vivem uma luta perene com esse estresse contínuo, como um elástico que se estica e não retorna”, diz Kupermann. Quase 10% dos brasileiros sofrem com ansiedade: são esses os mais vulneráveis, que encontram na pandemia o gatilho do sofrimento.

“A Covid-19 sozinha não acarreta a patologia”, pondera Martins. “Mas a gente incorpora da pandemia os impactos biopsicossociais.” Ele conta ter atendido há alguns dias um senhor com a doença. “Ao saber, o prédio todo entrou em pânico”, diz. Ali viviam basicamente idosos, já angustiados desde o início da pandemia. “Com o caso, porém, todos ficaram, literalmente, com medo. Entraram em pânico.”

© Getty Image

Todo mundo em pânico?

O medo é útil: ele prepara o organismo para enfrentar o perigo — lutar ou fugir, diz o psicólogo Thiago Sampaio, do Programa Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da USP. Ele cita o neuroendocrinologista Robert Sapolsky, autor de “Por Que as Zebras Não Têm Úlcera?” (Francis, 2008). “O sistema simpático, que produz adrenalina, é ativado para garantir a sobrevivência numa situação de perigo”, diz. “É assim que a zebra, ao sentir a presença do leão, foge em disparada.”Na ausência do objeto fóbico (o leão), ela volta a pastar tranquilamente.

Já uma pessoa ansiosa reage fisiologicamente como se estivesse com o leão sempre na cola — o que impacta o organismo, causando pressão e colesterol altos, baixa imunológica, problemas cardíacos, e, claro, a úlcera que batiza o livro. “A ansiedade pode ser mais nociva e causar mais sofrimento que o medo concreto, porque ela é crônica”, diz Sampaio. O que chamamos de medo é, muitas vezes, um quadro ansioso oriundo de um medo difuso que se transforma em angústia permanente.

“O medo tem um objeto localizável”, diz Kupermann: temos medo de aranha, de ser assaltados por um desconhecido. “Mesmo um medo patológico, como a fobia de avião, tem um objeto, que tentamos em vão controlar.” A angústia, não: é um mal-estar causado por um desamparo associado à incerteza — exatamente o que vivemos hoje. “Tenho atendido muitas pessoas, sobretudo idosos, que se sentem ameaçadas por essa abertura gradual, que ocorre mesmo sem o controle da pandemia.”

Vivemos um desencontro de versões sobre a realidade, um dissenso de condutas, um desmentido permanente, uma confusão de línguas que gera angústia

Já o pânico é o medo generalizado que subjuga o indivíduo. “É o medo de ter medo, que age como uma ansiedade de antecipação”, explica Barros. “Quem tem pânico teme ter novos ataques, é um medo recorrente, uma ansiedade constante.” Socialmente falando, seria o desespero produzido pela falta de orientação, pelo sentimento de não ter com quem contar, diz Kupermann. “Qual o objeto do pânico? É ter de se salvar sozinho.”

Freud, por exemplo, usa o exemplo do navio afundando: o capitão precisa ser o último a partir, pois sua fuga acarretaria a falta de orientação, de certeza — o pânico. “Num paralelo atual, vivemos um desencontro de versões sobre a realidade, um dissenso de condutas, um desmentido permanente, uma confusão de línguas que gera angústia”, diz Kuperman. Nessa Babel, a falta de referências e autoridade gera pânico.

Medo do vírus, medo de gente

O medo de se contaminar gerou debates que soariam engraçados em outro contexto. Na ausência de certezas, virou OK lavar o detergente com detergente — e o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) se tornou assunto corrente. Psiquiatras sérios hesitam em atribuir aumento de casos à pandemia. Mas fato é que Maria Marques, que nunca teve diagnóstico, se pegou passando álcool na torneira após lavar as mãos.

Seu medo desproporcional do germe se deve também à relação das duas filhas com hospitais. Uma está grávida de quase nove meses. “Estou com medo porque ela vai ao hospital ter o bebê, e é onde se pega o vírus”, diz. A outra trabalha na administração de um hospital — ela também tem medo, tanto que fez um banheiro na garagem, no andar de baixo, para todo mundo que chegar da rua tomar banho, diz Marques. “Ninguém sobe sem se banhar e trocar de roupa.”

O receio de se contaminar afeta também a sociabilidade. “Se estou com medo de gente? Claro que sim”, desabafa Marques. “Se a gente encontra alguém na rua, tem medo de cumprimentar. Na hora penso: será que ela tem? Não tem como saber.” Sem testes confiáveis, cada relação, mesmo a dois metros ou de máscara (no mercado, no transporte público, na visita daquele familiar) se torna uma roleta russa. “Por isso estou trancada dentro de casa. Só saio obrigada, e de máscara e luva.”

Para a psicanálise, o outro é uma ameaça, diz Kupermann. “O medo tem a ver com controle. Se não se sabe se o outro tem o vírus, se está se precavendo, como o inimigo é invisível, o medo do outro ganha outro contorno.” Pois o medo suscita ignorância e vice-versa. “Há uma desconfiança do outro — vide os profissionais de saúde hostilizados a caminho do trabalho para salvar vidas”, diz Mari. É quando o medo desemboca na agressividade. “Medo e ignorância andam juntos.”

Se eu estou com medo de gente? Claro que estou. Se a gente encontra alguém na rua, tem medo de cumprimentar. Na hora penso: será que ela tem? Não tem como saber. Por isso estou trancada dentro de casa

Para o advogado e funcionário público Samuel Clementino da Costa, 35, negro e corredor, o medo é uma constante anterior à pandemia. “Tomo toda precaução possível quando saio pra correr”, diz. “Quando morava em Perdizes, bairro elitizado e branco [de São Paulo], só corria com trajes bem esportivos, com camiseta e tênis e tudo o que passasse a leitura de que sou corredor. Pois a lógica é: tá correndo por quê?”

A pandemia trouxe ainda outro medo de gente, mas inverso: o medo de si próprio. “Não tenho tanto medo do vírus para mim, tenho medo de eu mesmo ser a doença e contaminar minha mãe.” Antes de cada visita, ele faz um isolamento de 14 dias. “Mas daí penso, de noite: e aquela vez que fui comprar cigarro? E o medo volta.”

Medo de gatilho, medo do futuro

Tanta incerteza explica por que muita gente busca nas notícias alguma garantia sobre o futuro: no afã de obter alguma certeza, os ansiosos saem à caça de informações. Mas cada fonte diz uma coisa, então a busca de versões traz novas dúvidas e assim por diante. “O que pode gerar uma compulsão que não agrega nada, mas mantém a pessoa em contato contínuo com o estímulo estressor”, diz Sampaio. E o excesso de estímulos acaba alimentando o medo pandêmico.

Costa chegou a seu limite no consumo de informações — sobretudo em relação aos impactos sociais. “Era compulsivo, eu ficava dando F5 pra atualizar, nem o jornal dava conta da minha compulsão”, diz. “Eu queria saber o que vai ocorrer na economia, como será esse pós-guerra da pandemia. Meu maior medo é esse: a miséria que espera os mais vulneráveis. Medo do futuro, sabe?.” Até que decidiu parar de ler notícias. De vez. “Me fez bem. Estou lendo mais livros, menos paranoico. É uma melhora pela ignorância, eu sei. Mas não me arrependo.”

Tal “medo de gatilho” (inerente às notícias) se justifica, diz Sampaio. “Poucas são as informações úteis que a pessoa vai encontrar nesse looping. Minha sugestão é: escolha um meio de se informar e fique só com ele.” Afinal, ficar sempre conectado consumindo notícias nos deixa num estado de alerta que impacta a saúde mental. “Ficar sempre ouvindo que a cada dia morrem no Brasil, de Covid-19, o equivalente a cinco aviões lotados de gente caindo hipersensibiliza”, diz Martins.

A doença bagunçou o cotidiano, mas o hábito produz uma sensação de controle, o que reduz a angústia. A saída para lidar com o medo é criar novos desejos de existência, novos projetos e rotinas

Kuperman diz que o medo e a ansiedade tendem a nos levar à fuga — seja para a ficção (mergulho nos prazeres imediatos), seja para a doença (mergulho no real exacerbado). “Freud dizia que existe os princípios de realidade e prazer, e não se pode ficar subjugado a só um”, diz. “O equilíbrio evita a intoxicação do aparelho psíquico pelo real.” Mas como? Primeiro, diz, é importante efetuar uma higiene dos tempos: do cuidado, do trabalho, da família, dos amigos — cada coisa em seu tempo.

Segundo, é vital ter objetivos factíveis. “O que dá medo do futuro é justamente não poder fazer projetos”, diz Kuperman. Como a doença bagunçou o cotidiano, é preciso retomar algum controle sobre a vida — é o hábito que produz essa sensação de controle, o que reduz a angústia. Projetos são o antídoto do medo: sem eles, a angústia toma conta e o futuro se torna ameaçador.” Como a pandemia não tem prazo, a saída para lidar com o medo é tentar criar novos desejos de existência.

Dias atrás, Maria Marques foi convidada pela família para a qual trabalha para passar uns dias no sítio. Todos fizeram teste para coronavírus. Ela estava com medo, mas aceitou. “Quando vi os meninos, poder abraçar e beijar, quase chorei”, diz. “Caminhei, fiquei sem ver notícia, brinquei com as crianças… tive minha vida de volta.” Foi uma pausa necessária no medo. “Até que cheguei em casa, abri o portão e estava de volta ao calabouço.” O medo voltou quando a porta de casa fechou.

Milagre de marketing, Gustavo Franco , OESP

Gustavo H.B. Franco*, O Estado de S.Paulo

26 de julho de 2020 | 08h07

Carl Sagan não acredita em milagres, a julgar pelo relato que se segue:

“Em 1858, uma aparição da Virgem Maria foi relatada em Lourdes, França, e desde então centenas de milhões de pessoas desenganadas têm ido a Lourdes na esperança de serem curadas. A Igreja rejeitou a autenticidade de um grande número de pretensas curas milagrosas, mas aceitou apenas 65, em quase um século e meio. A taxa de regressão espontânea em todos os cânceres é estimada entre 1 em 10 mil e 1 em 100 mil. Se apenas 5% dos que vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus cânceres, deveria haver entre 50 e 500 curas milagrosas só de câncer. Como apenas 3 dos 65 casos autenticados são de câncer, a taxa de regressão espontânea em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente ficado em casa.”

É fácil ver onde essa historinha pode nos levar, e não se trata de denunciar a subnotificação no departamento de milagres do Vaticano, mas de refletir sobre a imagem grotesca do presidente erguendo uma embalagem de cloroquina diante de uma multidão de apoiadores extasiados, como um possível prelúdio ao anúncio de uma cura miraculosa.

O milagre aqui será de marketing: a construção de uma narrativa de sacrifício e redenção de um visionário. A probabilidade de o presidente atravessar a doença sem sintomas é bem grande, e esta é sua aposta política, suas chances são boas.

A interação entre ciência e poder é um perigo, pois os dois lados costumam se estragar: cientistas ficam mais cínicos, e os políticos, mais malandros. E não é de hoje: há muitos precedentes, talvez o mais interessante seja o da “revolta da vacina” em 1904.

Faz muito tempo, mas o tema sanitário continua atual.

Em 1904, Lauro Sodré, um tenente-coronel jacobino, florianista, maçom e senador pelo RJ, planejava um golpe de Estado a ser deflagrado em 15/11, quando as tropas estariam mobilizadas na capital para o desfile.

Ele achava que a “República do Café com Leite” havia prostituído os ideais originais da Proclamação, mas seus planos foram sendo atropelados pela epidemia de varíola no Rio de Janeiro e, sobretudo, pela publicação da regulamentação para a vacinação obrigatória, um exemplo de “insensibilidade tecnocrática” que, para alguns, criava uma “ditadura sanitária”. 

Tomando carona nessa contrariedade, Sodré se torna presidente de uma Liga Contra a Vacinação Obrigatória, fundada em 5/11, que se põe a empreender uma campanha violentíssima que enfatizava “a invasão da privacidade dos lares”, a truculência dos agentes de saúde, higienizando tudo, entrando porta adentro de casas de família, brutalizando esposas e filhas, que precisavam disponibilizar braços, colos e mesmo coxas para a vacina.

Esse moralismo de ocasião foi imensamente eficaz para mobilizar a população. O Rio de Janeiro se viu tomado por tumultos de rua, o desfile militar de 15/11 foi suspenso, mas as tropas vieram para a capital para restaurar a ordem, mirando nos golpistas, que perderam o controle das manifestações. A cidade viveu o caos até a decretação do estado de sítio em 16/11. 

O episódio da “revolta da vacina”, como ficou conhecido, teria sido, conforme historiadores, menos um assunto sanitário que uma “revolta contra a História”, do lado certo da qual estava o jovem sanitarista Oswaldo Cruz, dirigindo pessoalmente as campanhas de vacinação. 

Passado o tumulto, Oswaldo Cruz foi consagrado: a fundação, em Manguinhos, que ganhou seu nome em 1909 se tornou uma presença institucional essencial para estabelecer a autoridade da ciência em assuntos sanitários.

A ciência pode ser inconveniente para os políticos, e para este presidente em particular, mas o assunto é complexo. Não esquecer que não foi Bolsonaro quem inventou essa conversa de que a ciência é apenas uma narrativa.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS

Carl Sagan “O Mundo assombrado pelos demônios: a Ciência vista como uma vela no escuro” São Paulo, Companhia das Letras, 1995, PP. 230-1.

N.Sevcenko “A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes” São Paulo, Cosacnaify, 2010, P. 120.