domingo, 26 de julho de 2020

O Airbnb era uma família, mas aí vieram as demissões, link OESP

Em 5 de maio, após trabalhar quase dois meses sozinho em seu apartamento em San FranciscoBrian Chesky, presidente executivo do Airbnb, chorou diante da sua câmera de vídeo. Era uma terça-feira, não que isto tivesse muita importância, porque os dias haviam se tornado um borrão confuso, e Chesky estava falando com milhares de funcionários. Olhando para a câmera, ele lia um texto que havia preparado para comunicar que o coronavírus havia acabado com o setor de viagens, inclusive com sua startup de aluguel de habitações. Algumas divisões teriam de ser cortadas e muitos funcionários demitidos.

“Tenho um profundo amor por todos vocês”, afirmou, com a voz embargada pela emoção. “O nosso trabalho se preocupa em fazer com que as pessoas se sintam confortáveis num lugar adequado, e no centro de tudo isto está o amor”. Em poucas horas, 1,9 mil funcionários – 25% da força de trabalho do Airbnb – foram informados de que deixavam de pertencer aos quadros da empresa.

A medida atirou o Airbnb no centro de um crescente debate no Vale do Silício: O que acontece quando uma companhia que se definia como uma família para os seus funcionários revela que não passa de uma empresa como tantas outras com as mesmas preocupações capitalistas – ou seja, a sobrevivência?

As startups que vendem todo tipo de coisa – de colchões a software para armazenamento de dados – há muito tempo afirmavam que a sua missão era “tornar o mundo um lugar melhor” para inspirar e motivar os seus funcionários. Mas a crise econômica provocada pelo coronavírus continua; muitos destes lemas gentis deram lugar a duras realidades, como cortes de orçamento, demissões e a necessidade de resultados.

Agora isto coloca as companhias com uma cultura de  “compromisso” no enorme risco de perderem o que as tornou bem-sucedidas, afirmou Ethan Mollick, professor de empreendedorismo da Wharton School da Universidade da Pensilvânia. “Parte da remuneração é fazer parte da família", afirmou Mollick. “Agora, a família vai embora, e o acordo muda. Ela se tornou apenas um emprego”.

A cultura do compromisso

Em muitos aspectos, o Airbnb foi o exemplo ideal de uma companhia com a cultura do compromisso. Fundada por Chesky, Nathan Blecharczyk e Joe Gebbia em 2008, a startup cresceu rapidamente como plataforma online que ajudava os proprietários de casas a alugar quartos de sua residência a viajantes. Ao longo do caminho até ser avaliada em US$ 31 bilhões, ela construiu uma reputação como o oposto de suas congêneres, baseadas na economia compartilhada. O Uber prezava a concorrência impiedosa. Já o WeWork entrou em colapso por causa de uma cultura festeira e no desejo do fundador de cuidar apenas do interesse próprio.

Ao contrário, o Airbnb defendia o idealismo honesto. Chesky, de 38 anos, um designer atarracado do norte do estado de Nova York, falava frequentemente em confiabilidade, autenticidade e desejo de construir uma empresa que valorizasse princípios e pessoas acima da cultura do curto prazo de Wall Street. Gebbia palestrou no TED sobre projetar para a confiança. E o ex-presidente executivo do Airbnb, Rob Chesnut, escreveu um livro intitulado Intentional Integrity.

Os fundadores do Airbnb (da esq. para dir.) Nathan Blecharczyk, Joe Gebbia e Chesky, em uma festa que celebra sua nova sede em São Francisco em 2011

Os fundadores do Airbnb (da esq. para dir.) Nathan Blecharczyk, Joe Gebbia e Chesky, em uma festa que celebra sua nova sede em São Francisco em 2011

Então, em março, quando o coronavírus explodiu, a ruptura da “Airfam” foi dolorosa. O Airbnb, que estava prestes a abrir seu capital este ano, de repente se deparou com uma avalanche de desistências de usuários. A receita evaporou. Semanas mais tarde, Chesky anunciou as demissões e reduziu drasticamente as ambições da companhia. “Tudo o que poderia dar errado, deu”, falou em uma entrevista. “Parecia que tudo parava de funcionar ao mesmo tempo”.

Externamente, a cultura do compromisso do Airbnb parecia intacta. A fala de Chesky sobre as demissões, que foi publicada no blog da companhia, recebeu mais de 1 milhão de visualizações e foi elogiada como uma “lição de liderança” compassiva e carinhosa. Posteriormente, em uma sessão de perguntas e respostas sobre os cortes dos empregos, Chesky e os colegas fundadores fizeram uma ovação aos empregados que haviam saído. Aplausos e emojis de coraçõezinhos dos membros do público encheram a tela. 

Mas mais de dez funcionários antigos e atuais do Airbnb, a maioria dos quais não quis ser identificada por ter assinado previamente cláusulas contratuais a este respeito, afirmaram em entrevistas que sofreram uma desilusão repentina quando o idealismo corporativo cuidadosamente redigido se rachou.

Kaspian Clark, de 38 anos, que trabalhou no suporte aos clientes em Portland, Oregon, por cerca de dois anos, disse que havia aderido totalmente à missão do Airbnb e experimentara uma dolorosa sensação de rejeição ao ser demitido. “Há muitas pessoas que se sentem particularmente traídas por isto", ele falou. “Espero profundamente que o Airbnb consiga manter-se como a coisa em que eu acreditava”.

Um porta-voz da companhia disse: “Tem sido um período difícil para todos”, e acrescentou: “Mais de 5 mil pessoas que trabalham no Airbnb sentem-se incrivelmente motivadas e entusiastas por acreditarem em nossa missão”.

Abrace a aventura, defenda a missão

Interior da sede da Airbnb, onde os funcionários são incentivados a incorporar os valores essenciais da empresa, disseram ex-trabalhadores

Interior da sede da Airbnb, onde os funcionários são incentivados a incorporar os valores essenciais da empresa, disseram ex-trabalhadores

O Airbnb não foi construído a partir de uma inovação de um gênio tecnológico ou de uma meticulosa PowerPoint para escolas de administração de empresas, mas partiu da ideia de que as pessoas precisam confiar umas nas outras o bastante para hospedar-se na casa de estranhos. Basicamente, na bondade do ser humano. Sua rede de casas para alugar espalhou-se rapidamente pelos EUA e em quase todos os outros países. O Airbnb captou mais de US$ 3 bilhões em capital de risco e se expandiu em outras atividades, férias de luxo, experimentos com voos e até mesmo uma revista impressa.

À medida que a companhia crescia, Chesky começou a falar de um mundo em que os nômades digitais sanavam as divisões relacionando-se com pessoas. “Acho que no futuro, as pessoas não viajarão. Elas simplesmente serão móveis”, previu em 2013. “As pessoas viverão um mês aqui, algumas semanas lá, quatro meses em algum outro lugar”. O Airbnb não alugava apenas casas para veraneio, segundo dizia a sua proposta, ela estava construindo uma “ONU ao redor da mesa da cozinha”.

Sua filosofia se condensou em 2018, quando apresentou um projeto para alguma coisa chamada capitalismo “integrado”. Ao contrário do foco de Wall Street em relatórios financeiros trimestrais e movimentação diárias de ações, Chesky aspirava a um capitalismo que tinha um “horizonte de tempo infinito”, e era bom para a sociedade.

Sua avaliação, que superou os US$ 2 bilhões em 2012, subiu meteoricamente para US$ 31 bilhões em 2017. Este ano, havia sido marcada uma oferta pública inicial que tornaria ricos seus executivos, investidores e funcionários.

E aí chegou o vírus. Como as viagens foram suspensas em março, o Airbnb cortou a projeção do seu faturamento de 2020 para menos da metade dos US$ 4,8 bilhões ganhos no ano passado. O documento da IPO, que Chesky encheu de ideias para o capitalismo integrado e pretendia apresentar no fim de março, foi engavetado. Em vez disso, Chesky disse que elaborou uma lista de princípios para operar durante o vírus. Ela incluía ser decisivo e sair “do lado certo da história”.

Houve tropeços. Quando os hóspedes quiseram cancelar as reservas que não seriam reembolsadas porque a pandemia os obrigara a mudar seus planos, a Airbnb mudou sua política que permitia os reembolsos. Mas a medida revoltou as operadoras de aluguel da companhia, que dependiam da renda. Chesky acabou se desculpando pela maneira como o Airbnb havia comunicado a decisão. “Tudo foi perfeito? Não”, ponderou Alfred Lin, um membro do conselho do Airbnb e investidor da Sequoia Capital. “Foi por causa da rapidez e por estar na direção certa”.

Logo, o Airbnb cortou US$ 800 milhões em marketing, abandonou os bônus e reduziu pela metade o salário dos executivos por seis meses. Também encerrou os contratos com aproximadamente 490 freelancers em tempo integral. Com as desistências cada vez mais numerosas e os call-centers fechados por causa do vírus, a Airbnb direcionou os funcionários de toda a companhia, inclusive os recrutadores, que haviam congelado as contratações, para a assistência aos clientes. O atraso levou semanas para se concluir. Em abril, a companhia, obteve US$ 1 bilhão em ajuda emergencialmais US$ 1 bilhão de dívidas.

Então chegaram as demissões de 5 de maio. Para abrandar o choque, os pacotes de verbas rescisórias do Airbnb incluíram três meses de salário e um ano de assistência médica gratuita, gesto que foi mais generoso do que o de muitas outras startups nas mesmas circunstâncias. Chesky desde então falou em uma “segunda fundação” na qual a Airbnb estará mais centrada em seu negócio de aluguel de habitações. A empresa será diferente, explicou, com menos clientes reservando viagens internacionais, menos gente chegando em massa em cidades lotadas, mais viagens locais e mais estadias de longo prazo.

Discordâncias na 'Airfam'

Chesky, trabalhando em seu escritório em casa, chegava a ficar no computador quase todos os dias até meia-noite

Chesky, trabalhando em seu escritório em casa, chegava a ficar no computador quase todos os dias até meia-noite

Dois dias depois das demissões, as questões choveram rapidamente na Question and Answer Inside Audience, o software de reuniões virtuais da Airbnb, segundo cinco pessoas que participaram. Alguns funcionários perguntaram por que não eram postos em licença ou não sofriam cortes maiores do salário em vez de ser demitidos. Outros indagaram por que certos grupos haviam sido escolhidos para o corte e por que a companhia não podia cortar mais benefícios, como o orçamento para alugar plantas para os escritórios.

Chesky disse que a situação era demasiado incerta para colocar os funcionários em licença e para fazer cortes nos salários, afirmando que eram medidas temporárias. As demissões foram mapeadas de acordo com a estratégia futura da companhia, acrescentou. Um porta-voz explicou que a companhia gastava apenas uma pequena porcentagem em paisagismo e serviços relacionados.

Uma área atingida pelas demissões foi a equipe de segurança da Airbnb, que trata de situações como atentados com arma de fogo e assaltos nos locais alugados. Quando disparos fatais em uma festa em Orinda, Califórnia, ganharam as manchetes no outono do ano passado, a companhia proibiu festas não autorizadas nos locais alugados e anunciou planos para confirmar que todos os locais dos seus catálogos correspondiam exatamente ao que ela anunciava.

No questionário para os funcionários, Chesky reiterou suas afirmações anteriores de que a segurança era uma prioridade para a companhia. Os funcionários começaram a se manifestar com comentários por escrito – o equivalente a gritar em um teatro lotado – com mensagens como “Segurança nunca foi uma prioridade!”. Uma forma inusitada de divergência.

Uma semana depois das demissões, novos casos sobre segurança se multiplicavam, afirmaram duas pessoas a par da situação. O Airbnb pediu a alguns funcionários que haviam sido despedidos que voltassem temporariamente para cuidar dos casos. Os que estavam nas equipes de resposta e de pagamento também foram solicitados a voltar temporariamente.

Um porta-voz do Airbnb disse que os grupos que cuidavam da segurança dos usuários tinham o mesmo tamanho de antes das demissões e que a companhia avaliava diariamente os níveis de suas equipes de suporte. “Brian sempre deixou claro que a segurança é a nossa prioridade”, afirmou.

Posteriormente, no canal Slack para os antigos funcionários, alguns lamentaram que a Airbnb estava acabando com sua filosofia empresarial, segundo mensagens vistas pelo jornal The New York Times. Em junho, uma empreiteira do Airbnb que recentemente havia sido descredenciada escreveu um editorial para a Wired (revista mensal americana) citando colegas que chamavam a companhia de “hipócrita” por seu tratamento “consideravelmente insensível” para com os trabalhadores contratados durante a pandemia.

Um porta-voz do Airbnb disse que seus contratados “eram mais que isto, eram nossos companheiras de time e amigos”. Ele afirmou que a companhia deu a eles duas semanas de salário e outros benefícios.

Surgiram outros problemas. Em uma sala de chat para as funcionários do Airbnb depois das demissões, uma funcionária demitida descreveu três casos de assédio sexual enquanto estava na companhia, afirmando que os recursos humanos não ajudaram em nada e que as colegas não deram a devida importância, segundo uma imagem da conservação à qual o Times teve acesso. Isto, escreveu a pessoa, “magoou demais”. A companhia afirmou que não tolera assédio e discriminação e está investigando as denúncias.

Chesky disse que continua otimista. A companhia está enfatizando os sinais de recuperação. Como um crescente número de reservas a distâncias viáveis de automóvel e a adoção de suas “experiências virtuais”. Em uma reunião virtual, na tarde de quarta-feira, Chesky contou aos funcionários do Airbnb que a companhia voltará a tratar do seu plano de abertura do capital.

Ele também refletiu sobre os últimos quatro meses, que, afirmou, foram “traumáticos em certos aspectos”. A crise mostrou a ele que a Airbnb se desviou dos seus propósitos iniciais como um lugar para as pessoas se relacionarem, e planejava mudar isto. “Há algumas coisas nós não podemos perder nunca:”, afirmou, “ser honestos conosco mesmos, ser diferentes, ser especiais”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

 

‘Louco e gênio’, Elon Musk vive 2020 inesquecível, Link OESP

De um lado, inúmeras polêmicas: um filho com nome de robô (X-AE A-XII), o apoio ao rapper Kanye West para a presidência dos EUA, a vontade de causar no Twitter e até a capacidade de negar a gravidade do coronavírus. Do outro, uma empresa cujas ações subiram mais de 500% em 12 meses e virou a maior montadora do mundo. E uma companhia que fez sua primeira missão tripulada ao espaço. Por trás dessas histórias, um homem só: Elon Musk, empresário com fortuna de cerca de US$ 66,2 bilhões. No mundo dos negócios, Musk divide opiniões: é chamado de louco e de gênio. Mas, em 2020, o sul-africano de 49 anos parece viver um ciclo de bonança capaz de fazer o segundo adjetivo sobrepor o primeiro. 

Boa onda

Seu principal negócio, a fabricante de carros elétricos Tesla, parece ter entrado nos eixos após anos de problemas. Nesta semana, a empresa divulgou ter quatro trimestres de lucro seguidos pela primeira vez na história. Apesar de ter fábricas temporariamente fechadas pela quarentena, a montadora segue firme para entregar 500 mil veículos em 2020, mostrando que a eletricidade pode, em breve, substituir os combustíveis fósseis. 

“Durante muito tempo, houve desconfiança com Musk. A Tesla tinha problemas de entrega e lucro, apesar de seu carro ser bem visto. Agora, se resolveu – e se suas ações sobem, é porque o mercado vêpotencial”, diz o professor do Insper David Kallás. 

É no potencial que está a maior força da empresa. Afinal, ela vende bem menos carros que a Toyota, vice-líder em valor de mercado entre as montadoras. Em 2019, a japonesa vendeu mais de 10 milhões de carros; já a americana, 367 mil. “(O sucesso da) Tesla tem um pouco de histeria do mercado. Não há motivo para suas ações valerem o que valem. Mas eles fizeram algo inédito: popularizar o carro elétrico”, diz William Castro-Alves, estrategista-chefe da corretora Avenue. 

Já a firma aeroespacial Space X se tornou a primeira empresa privada a enviar astronautas para a órbita terrestre em maio, numa parceria com a Nasa. Com o reaproveitamento de foguetes como estratégia, a companhia pareceu durante muito tempo um negócio de risco. Agora, atrai investidores, podendo ser avaliada em US$ 44 bilhões após uma nova rodada de aportes. 

Ciclo

Nem sempre foi assim: em 2018, Musk viveu uma tempestade de problemas, entre disputas judiciais por difamação, investigações financeiras, além de falhas de produção na Tesla. Para Kallás, o empresário amadureceu. “Ele teve deslizes, mas vem mudando. Dá menos a cara para bater e faz mais a lição de casa”, diz. Professor da Singularity University, Alexandre Nascimento discorda. “Ele aprendeu a jogar o jogo. Quando aparece fumando maconha, ele está jogando com a atenção das pessoas”, diz. “Ele é um cara complexo, como Steve Jobs também era.”

As comparações não são à toa: tal como o fundador da Apple, Musk é idealista. Ao vender sua parte no serviço de pagamentos PayPal, em 2002, Musk faturou US$ 165 milhões. E investiu todo o dinheiro logo em seguida em duas ideias – a Tesla e a SpaceX. Parecia loucura, mas hoje há quem diga que é visão. 

Os projetos de Musk, porém, não se resumem a isso. Ele também aposta em transporte futurista e numa startup que quer conectar PCs aos cérebros humanos. Tem ainda negócios em energia solar, e apostas em criptomoedas e planos para colonizar Marte. “Musk sempre achou que a humanidade corre risco. Agora, capitalizado, faz projetos para salvar as pessoas – e cria oportunidades”, afirma Rubens Massa, professor da FGV-SP. 

Cuidado

O futuro é o assunto preferido de Musk – e para analistas, ainda há muito espaço para ele prosperar. Para Castro-Alves, da Avenue, a preocupação ambiental pode ainda dar mais espaço para a Tesla. Há, porém, muito o que dar errado – um acidente grave da SpaceX ou problemas de produção nas fábricas da Tesla podem mudar o jogo. Ou alguma polêmica tão grande que nem ele é capaz de contornar.

Afinal, a imagem de Musk é um ativo dessas empresas. “Ele consegue atrair talentos e capital, mas, se preferir as polêmicas, pode se comprometer”, diz Kallás. Por outro lado, há quem acredite que é de mais Musks que a tecnologia precisa. “A origem do Vale do Silício está nesse tipo de cara com ideias malucas”, diz Nascimento. “É preciso de gente que desafie o sistema e faça o progresso acontecer.”

*É estagiária, sob supervisão do editor Bruno Capelas

Bobos são os outros., Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo (definitivo)


26 de julho de 2020 | 03h00

Soa fora de propósito, da razão e do tempo o ex-presidente Lula continuar, ainda hoje, com tudo isso acontecendo, atirando contra o ex-presidente Fernando Henrique e o PSDB. Com toda sua decantada genialidade política, Lula não consegue ver e entender o óbvio: o PT e o PSDB estão no fundo do poço, não ameaçam mais ninguém e o inimigo comum é outro. Sim, ele, Jair Bolsonaro. Não “apesar”, mas exatamente por tudo o que representa.

O PT já afundava, com mensalão e Lava Jato, quando Joesley Batista detonou Aécio Neves e, com ele, o PSDB. Sem PT e PSDB, o que sobrou? Pois é. Sem a polarização que norteou a política brasileira desde 1994, surgiu “o novo”. E o “novo” é o que há de mais velho, corporativista, armamentista, inexperiente, ignorante e com o discurso oportunista do combate à corrupção.

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Cerimônia de posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva Foto: JOEDSON ALVES/AE

O cenário é desolador. Lula envelhecido, sem discurso e sem horizonte, mirando nos alvos errados e imobilizando o PT e as esquerdas. Aécio, José Serra e Geraldo Alckmin, os três candidatos tucanos à Presidência ainda vivos (Mário Covas morreu em 2001), embolados com a Justiça, a polícia e a descrença da sociedade diante dos políticos e da política. Todos viraram passado.

A história, no seu tempo, vai recolocar as coisas nos devidos lugares: o PT, criado em 1980, no rastro da redemocratização, e o PSDB, que surgiu em 1988, junto com a nova Constituição, tiveram um papel fundamental, Lula e Fernando Henrique à frente, para modernizar o País, debelar a inflação infernal, criar programas de renda, elevar o Brasil no mundo, atiçar a cidadania e a inclusão.

Os dois projetos se esgotaram sem sanar as mazelas nacionais e seus líderes e foram tragados por guerras políticas, ganância, impunidade e um sistema político que engole até biografias respeitáveis. O desafio era resistir à tentação de extrapolar o caixa 2 de campanha para o enriquecimento pessoal. Como conviver com mais de 30 partidos? Desmascarar quem fala à alma, não à razão? Enfrentar a pressão das corporações em detrimento da população? Financiar campanhas hollywoodianas? E como vencer sem elas?

Assim o Brasil chegou a Jair Bolsonaro, que driblou todas essas questões. Já pulou em dez partidos, até tentar um para chamar de seu; usou templos, cultos e pastores como palanques; em vez de enfrentar, liderou as corporações policiais e militares; financiou suas campanhas com seus gabinetes, não com empresas privadas. E venceu os adversários na internet e para o W.O. Eles se derrotaram sozinhos.

O resultado é um espanto: o único foco do presidente é ele mesmo e os filhos, a economia parou, a ação na pandemia é acusada de criminosa, a visão de meio ambiente é destrutiva, a educação é inimiga, a diplomacia virou guerra, a cultura desapareceu e a imagem dos militares está em risco. O anormal virou normal: rachadinhas, funcionários fantasmas, Queiroz escondido da polícia na casa do advogado da família presidencial.

E daí?, como diria Bolsonaro. Assim como Maduro sobrevive à destruição da Venezuela, Bolsonaro supera seus erros com a falta de adversários, sustentação militar e da polícia e apoio popular dentro do limite. Continua sendo não só o mais forte, mas o único candidato na sucessão presidencial e faz uma pirueta entre a eleição e a reeleição: joga ao mar o discurso moralista, o PSL e os neófitos vindos do ambiente policial e jurídico e navega com o Centrão, os experientes e os espertos, parando de atacar Congresso e Supremo.

Conclusão: o triste fim da polaridade PT x PSDB, que elegeu o inacreditável Jair Bolsonaro em 2018, corre o risco de reeleger o absurdo Jair Bolsonaro em 2022. E ele continua dando um banho de marketing e estratégia eleitoral. Bobo? Bobos são os outros.