sexta-feira, 24 de julho de 2020

Classe média contribui para relações bárbaras de trabalho, diz sociólogo, FSP

SÃO PAULO

Pesquisador sobre a classe média brasileira, o sociólogo Jessé Souza, doutor pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, considera a emergente mobilização de entregadores consequência de uma política ampla de desconstrução institucional do trabalhador.

Para ele, o pano de fundo da popularização do modelo de negócio dos aplicativos, que não pressupõe vínculo empregatício, é uma classe média que autoriza que relações trabalhistas sejam fragilizadas.

"A precarização do trabalho foi montada a partir de programas políticos”, diz ele, referindo-se aos governos de Michel Temer (MDB), que aprovou a reforma trabalhista, que ele se opõe, e do presidente Jair Bolsonaro.

Jessé Souza, sociólogo e ex-presidente do Ipea e autor de uma série de livros, como “A Ralé Brasileira” (2009), “Batalhadores Brasileiros (2010) e “A Guerra contra o Brasil” (2020)
Jessé Souza, sociólogo e ex-presidente do Ipea e autor de uma série de livros, como “A Ralé Brasileira” (2009), “Batalhadores Brasileiros (2010) e “A Guerra contra o Brasil” (2020) - Marcus Steinmeyer/UOL/Folhapress

“Setenta por cento da classe média votou em uma pessoa com esse perfil, você celebra a desconstrução institucional do trabalhador e aí, obviamente, ele perde vínculos, emprego e aparece na vida dessas pessoas como se elas não tivessem nenhuma relação com isso”, diz.

Para Souza, a classe média contribui para uma relação “bárbara” de consumo.

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Como o sr. avalia a relação entre a classe média consumidora e os entregadores de apps, que estão no centro de uma discussão sobre trabalho na pandemia? Da forma 
que se dá no Brasil, perpetua 
uma relação de exploração próxima à escravidão. A questão é a desigualdade montada pela herança da escravidão. Não é só dizer formalmente que escravidão acabou quando você pode produzir escravos, entre aspas, num contrato de fome, com preço vil. O trabalho é reduzido a um esforço corporal —o trabalho da faxineira, da doméstica, do entregador que roda 13 horas de bicicleta para entregar a pizza quentinha. É uma relação de exploração econômica da classe média, e o fato de as pessoas serem destituídas de direito faz com que a classe média possa abusar disso.

Muitos alegam que esses aplicativos são uma forma de sustento para desempregados. Não acho. O que se cria é uma sociedade, primeiro, que desorganiza as relações de trabalho. Setenta por cento da classe média votou em uma pessoa com esse perfil, você celebra a desconstrução institucional do trabalhador e aí, obviamente, ele perde vínculos, emprego e aparece na vida dessas pessoas como se elas não tivessem nenhuma relação com isso. Basta fazer uma cadeia causal para saber que a classe média compra isso, apoia esse tipo de modelo. Você tem uma relação de classe média bárbara e selvagem.

A popularização desses apps é global. Alguns países regulam de forma diferente, mas ela também é anterior ao governo Bolsonaro… Cada país 
lida de forma distinta. Na Alemanha, não vejo pessoas correndo de bicicleta para entregar rápido, não é assim que funciona. Tem maquininha que carrega produtos no supermercado, o trabalho muscular é diferente. Entre nós existe uma naturalização que é exploradora e espoliativa.

Qual seria a alternativa para a classe média que evita sair de casa? Que modelo seria justo ao trabalhador? Garantindo direitos a esse trabalhador, 
que foram retirados 2016. A precarização de relação de trabalho tem relação com isso e 
isso foi montada a partir de programas políticos, tanto com 
Temer como com Bolsonaro. O que está por trás é uma 
concepção de sociedade. Setores da classe média querem que essas relações sejam fragilizadas. Esse é o ponto fundamental. De resto, vamos acabar discutindo aspectos pitorescos e fragmentados.

Alguns entregadores defendem CLT, mas a maioria quer maiores taxas e tem reivindicações pontuais. Essa mobilização pode influenciar novas manifestações? Espero que isso aconteça porque as pessoas foram jogadas nesse mercado. Não podemos colocar isso como uma escolha, há uma precarização geral que é maior que uma decisão individual. Você ainda dificulta que elas possam se organizar politicamente. Não existe debate midiático plural que pode informar essas pessoas —acho incrível que tenham conseguido se organizar coletivamente. Proteção legal é desejável, mas a classe média não se preocupa muito com o pobre.

RAIO-X

Jessé Souza, 60, foi presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2015 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff. É autor de uma série de livros, como “A Ralé Brasileira” (2009), “Batalhadores Brasileiros (2010) e “A Guerra contra o Brasil” (2020). ​

Quase metade dos domicílios brasileiros recebeu auxílio emergencial em junho,FSP

RIO DE JANEIRO

Aproximadamente 29,4 milhões (43%) de domicílios brasileiros receberam algum tipo de auxílio emergencial do governo relacionado à pandemia do novo coronavírus em junho, informou nesta quinta-feira (23) o IBGE em sua segunda divulgação mensal da Pnad Covid.

De acordo com o instituto, foram 3,1 milhões de lares beneficiados a mais na comparação com o mês anterior, quando cerca de 38,7% do total de domicílios do país havia recorrido a algum tipo de auxílio do governo para enfrentar a crise causada pela pandemia.

Quase metade da população (49,5%), ou 104,5 milhões de pessoas, viviam em casas em que pelo menos um morador foi beneficiado com o auxílio em junho. Segundo o IBGE, a população mais pobre foi mais beneficiada com o auxílio, recebendo 75,2% das transferências.

A primeira faixa de renda representa 10% da população do país, ou 21 milhões de pessoas. Dessas, 17,7 milhões (83,5%) moram nos lares que receberam o benefício. Assim, a renda domiciliar por pessoa desse contingente aumentou 3.705%, indo de R$ 7,15 para R$ 271,92.

O IBGE apontou que foram distribuídos R$ 27,3 bilhões pelo governo em auxílio. O valor médio recebido foi de R$ 881 por residência, sendo que nas regiões Norte e Nordeste o recebimento chegou a 60,0% e 58,9% dos domicílios, respectivamente.

Entre os benefícios, estão o auxílio emergencial e o benefício emergencial de preservação do emprego e da renda. No total, o Brasil possui 68,3 milhões de domicílios.

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Ainda segundo a Pnad Covid, a taxa de desocupação no país foi de 12,4% em junho, o que representa um aumento de 1,7 ponto percentual na comparação com maio (10,7%). A proporção de desempregados aumentou em todas as grandes regiões do Brasil.

Com o aumento, o desemprego atingiu 11,8 milhões em junho, um acréscimo de 1,7 milhão desde maio. Assim, a população ocupada chegou a 83,4 milhões de brasileiros, uma queda de 1,1%. O diretor-adjunto do IBGE Cimar Azeredo relacionou o aumento à flexibilização do distanciamento social.

“Isso implicou no aumento da população na força trabalho, já que o número de pessoas que não buscavam trabalho por causa da pandemia reduziu frente a maio. Elas voltaram a pressionar o mercado”, afirmou.

A taxa de desempregados no Brasil considera apenas pessoas que estão procurando uma ocupação. Por conta da pandemia e do distanciamento social, muitos acabam adiando a busca pelo emprego e não são considerados desocupados.

Por outro lado, o mês de junho computou o aumento de R$ 2 bilhões na massa de rendimento efetiva, que é a soma dos ganhos de todos os trabalhadores, indo de R$ 157 bilhões em maio a R$ 159 bilhões em junho. "Esse dado indica reação do mercado”, disse.

Caiu ainda o número de pessoas que ficou sem salário por conta da quarentena, chegando a 7,1 milhões. Em maio, esse número chegava a 9,7 milhões de brasileiros. Segundo o diretor-adjunto do IBGE, é importante acompanhar a evolução desse grupo, junto com outros sem rendimento, como os desocupados e a população fora da força de trabalho.

“Esse é um conjunto de pessoas sem rendimentos de trabalho, e essas variáveis podem orientar as decisões de manutenção de programas de transferência de renda”, disse Cimar Azeredo.

A Pnad Covid também detectou que caiu o número de pessoas que manifestaram sintomas conjugados da Covid-19. Em maio, esse contingente foi de 4,2 milhões (2% da população), contra apenas 2,3 milhões (1,1%) em junho.

Os maiores percentuais de pessoas que apresentaram algum dos sintomas conjugados ficou na região Norte. Ainda foram atingidos principalmente mulheres (57,8%), pretos, pardos (68,3%) e com menos escolaridade - do fundamental ao superior incompleto (87,5%).

O IBGE considerou os seguintes conjuntos de sintomas: perda de cheiro ou de sabor; tosse, febre e dificuldade para respirar; tosse, febre e dor no peito, que vão de acordo com estudos da área de saúde e que podem ser associados à Covid-19.

Segundo o IBGE, as mulheres estão em setores de atividade mais suscetíveis ao contágio, como em trabalhos que não podem ser feitos de forma remota, o que pode justificar um maior índice de sintomas entre elas do que nos homens.

A proporção de internados, porém, não acompanha os percentuais de brasileiros com sintomas. A pesquisa do IBGE mostra que entre aqueles que procuraram atendimento em hospital, os homens (17,7%) foram mais internados que as mulheres (13%).

A população branca (17,1%) também foi mais beneficiada com internações do que os pretos ou pardos (13,9%), apesar de serem minoria no país, com 45,2% de representatividade.

Os dados foram coletados pela Pnad Covid, que busca identificar os efeitos do novo coronavírus no mercado de trabalho e na saúde dos brasileiros. Essa foi a segunda divulgação mensal da pesquisa criado especialmente para acompanhar os impactos da pandemia.

Não é possível, porém, comparar os dados desse estudo com os da Pnad Contínua, que apura a taxa de desemprego oficial no país, já que esta última tem metodologia diferente, com coleta de dados durante três meses e em um número maior de domicílios.

A Pnad Covid foi criada especialmente para tentar identificar os efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho e a saúde dos brasileiros, com o objetivo de servir de base para a elaboração de políticas públicas para minimizar os impactos da crise.