sexta-feira, 24 de julho de 2020

Taxa de cura da Covid-19 é 50% maior em hospitais privados, FSP


SÃO PAULO

Pacientes com Covid-19 internados em hospitais privados têm taxa de cura 50% maior do que aqueles de instituições públicas. Em média, 51% dos doentes hospitalizados em unidades privadas sobrevivem, índice que cai para 34% nos hospitais públicos.

Os índices de cura nas unidades públicas são menores em estados do Norte e Nordeste. A média é 45% em Pernambuco e 53% no Pará, ante 60% em São Paulo e 79% no Rio Grande do Sul.

Há também mudanças ao longo do tempo. Em períodos de hospitais lotados e grande ocupação das UTIs do SUS, há um maior percentual de mortes. É o que se observa, por exemplo, no Amazonas, primeiro estado a ter o sistema de saúde em colapso, em meados de abril.

No último mês, com maior disponibilidade de leitos de UTI e profissionais de saúde mais experientes, a rede pública aumentou a taxa de cura e a desigualdade foi reduzida em boa parte dos estados —no Ceará, o SUS ultrapassou a rede particular.

Mesmo com a melhora recente, ainda há grande disparidade entre unidades públicas e privadas e entre as regiões do país. O Rio de Janeiro, por exemplo, se mantém como um dos locais em que o abismo entre as duas redes é mais evidente.

Segundo especialistas, não é possível apontar apenas uma causa para essa disparidade, mas um fator importante é a questão das doenças crônicas. O controle das comorbidades, de acordo com infectologistas, é questão-chave na batalha contra a doença. É também um dos quesitos em que as desigualdades sociais mais afetam a saúde da população.

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Os dados são de levantamento feito pela Folha com base no Sistema de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde e consideram os pacientes que foram internados (casos graves) até o dia 20 de junho. Para a análise, foram observados os casos de 66.450 pacientes de hospitais públicos e 57.883 de hospitais privados.

Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), 47 milhões de brasileiros (cerca de 20% da população) têm plano de saúde —logo, acesso a hospitais privados.

Estão classificadas como hospitais privados as instituições mantidas por entidades privadas, ainda que haja convênios para realizar determinados atendimentos pelo SUS.

Em geral, o percentual de doentes com comorbidades que precisam de internação é semelhante nos hospitais públicos e privados. A diferença está nas chances de cura: mais da metade (56%) dos pacientes com doenças crônicas internados nas instituições públicas morre, enquanto nas privadas 58% sobrevivem.

Antonio Bitu, médico intensivista de uma UTI pública e de uma semi-UTI privada de Recife, diz que os doentes da rede pública costumam ter quadro mais grave por causa de comorbidades não tratadas.

“O paciente [da rede pública] vem com problemas de base. Tem insuficiência cardíaca mal tratada, diabetes sem controle. A Covid acaba sendo a gota d'água”, afirma. “Infelizmente, é muita gente que já chega em estado muito grave.”

Doutor em epidemiologia e professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), Bruno Pereira Nunes cita vários os fatores que tornam o controle das doenças crônicas mais difícil para quem depende do serviço público, parcela mais pobre e menos escolarizada da população.

Programas como o Saúde da Família melhoraram a realidade do doente crônico no SUS, diz Nunes. Contudo, mesmo quando a atenção primária é adequada, o acesso a consultas com especialistas e exames é complicado. Isso acontece especialmente em cidades do interior e no Norte e Nordeste, onde a concentração de profissionais de saúde, especialmente de médicos, é menor.

Outro ponto diz respeito ao nível de escolaridade, à renda e às condições de vida dos pacientes. Quanto mais escolarizado é o doente, diz Nunes, mais facilmente compreende o tratamento passado pelos médicos e consegue informações sobre seu problema de saúde e o que pode fazer para melhorar.

Já em relação às condições de vida, para além de questões primárias, como saneamento básico, há pontos sobre alimentação e atividades físicas, fundamentais no controle de doenças crônicas. “São pessoas que não têm oferta de local para fazer atividade física, que não conseguem comprar alimentos balanceados. Mesmo tendo a mesma doença, a gravidade vai ser diferente [entre ricos e pobres]”, afirma.

O mesmo afirma a doutora em saúde pública e pesquisadora da FioCruz Bahia Emanuelle Góes: “Doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão e diabetes, têm em grande parte a ver com o modo de vida. Essas pessoas não têm suporte para ter mais qualidade de vida. Isso adoece”.

O descontrole das comorbidades, por sua vez, gera complicações e faz com que a população mais pobre precise com mais frequência de internações e serviços de média e alta complexidade, nem sempre acessíveis.

“Os serviços de média e alta complexidade, mesmo os públicos, estão mais localizados no centro. Mas as pessoas que mais utilizam estão na periferia. Você tem dificuldade de mobilidade, distância. Se é urgência não consegue chegar a tempo, ou precisa rodar a cidade para conseguir uma consulta”, afirma Góes.

Ela aponta ainda questões como racismo institucionalque afeta a qualidade do atendimento recebido pela população negra e faz com que seja preterida, por exemplo, na disputa por vagas e no atendimento em situações de urgência —a maioria dos usuários do SUS são pretos ou pardos— e a dificuldade do Estado em lidar com a alta demanda de atendimento nas unidades públicas de saúde.

Em geral menos cheia, a rede privada consegue levar à UTI pacientes em quadros não tão graves, que, numa situação de disputa de vaga, como se vê mais frequentemente na rede pública, ficariam na enfermaria, segundo relatos de médicos à Folha.

No auge da disseminação da Covid-19, usuários do SUS precisaram aguardar em pronto-socorro ou mesmo em ambulâncias, como aconteceu em Manaus, uma vaga na unidade de terapia intensiva.

“A pandemia reafirmou as desigualdades que a gente já observava", diz Nunes, da Upel. "É preciso reorganizar o serviço público para atender essas pessoas com qualidade. Não é só ter consulta.”

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Sérgio Rodrigues Feito o monossílabo de Olavo, FSP


A deselegância está em alta tão acentuada no mundo (no Brasil nem se fala) que a própria palavra soa débil, como um eufemismo pudico no puteiro.

O menor dos nossos problemas? Não nego que existam maiores, mas sou daqueles espíritos holísticos ou doidos que acreditam que tudo se relaciona com tudo. Deselegância é a face estética da boçalidade.

Bia Doria toda emperiquitada a vomitar barbaridades sobre moradores de rua. Neomacarthistas “cancelando” um intelectual civilizado como Steven Pinker porque ele não comunga de seu ativismo. O Zeitgeist não está para peixe.

Descendo ao pré-sal moral do bolsonarismo, constatamos que um país capaz de produzir a elegância de Didi e Paulinho da Viola era, no mínimo, um desastre civilizatório mais esperançoso antes de enfiar o pé nessa jaca.

É preciso reagir. Com a intenção de contribuir, ainda que modestamente, para elevar o nível médio de garbo do ambiente, vou tratar aqui de um exercício de elegância textual.

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Me refiro ao modo de conter a tendência da língua portuguesa à proliferação da palavra “que”, nossa principal cola sintática.

É até cruel dizer que, deixado solto, o “que” se multiplica como aquele monossílabo malcheiroso na boca de Olavo de Carvalho, buraquinho negro a sugar toda elegância. Mas é verdade.

Galeria
Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo
Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo
Escritor é considerado uma referência por Bolsonaro, ele exerce forte influência sobre o governo do presidente

A palavra pode ser pronome, conjunção, preposição e advérbio —para não falar do “quê” acentuado, que é substantivo ou interjeição— e se espalha à vontade na fala. Nossos ouvidos a toleram bem.

Em textos escritos, contudo, o excesso de “ques” é associado a construções desajeitadas. Vejamos um exemplo: “O que torna o cenário confuso é que os eleitores que votaram em Bolsonaro e que estão arrependidos dizem que pretendem votar nele outra vez, desde que seu adversário seja de novo o PT, o que prova que a oposição terá que trabalhar muito para que a reeleição não ocorra.”

O trecho acima tem 50 palavras, e o “que” comparece nada menos que dez vezes. Vale a pena reescrever a mensagem com o filtro ligado para ver de quantos pedregulhos conseguimos nos livrar: “A confusão do cenário se deve ao fato de eleitores arrependidos de Bolsonaro pretenderem, segundo dizem, votar nele outra vez se seu adversário for novamente o PT. Isso prova o quanto a oposição terá de trabalhar para evitar a reeleição.”

As palavras agora são 40, dez a menos do que na primeira versão. E dos dez “ques” originais não sobrou nenhum. A correspondência numérica perfeita é coincidência, mas a concisão do texto reescrito nada tem de fortuita.

Não há mágica nisso, mas alguns expedientes de paráfrase fáceis de reproduzir, como a substituição de orações por adjetivos e substantivos de igual valor (“eleitores que votaram em Bolsonaro e que estão arrependidos” vira “eleitores arrependidos de Bolsonaro”) e o uso do ponto para quebrar em duas uma frase longa.

Além disso, empreguei o verbo no infinitivo para transformar “que pretendem” em “pretenderem”, clássico dos clássicos na contenção do “que”, e substituí “ter que” por “ter de”, seis por meia dúzia.

Antes que me entendam mal, não se trata de demonizar o “que”, palavrinha das mais funcionais. O problema é de medida, e o exercício acima tem valor apenas ilustrativo.

A disposição de reescrever é tudo. Pensar melhor sobre aonde queremos ir e como chegar lá. Corrigir, emendar, jogar fora o que não presta. Vale para textos e para a história coletiva que estamos escrevendo.

Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.