terça-feira, 21 de julho de 2020

Que falta faz a medicina baseada na ciência, Atila Iamarino, FSP

Fazer o bem não é fácil na medicina. Diferenciar o que funciona, o que não funciona e quem melhorou sozinho é tarefa ingrata. Até a simples prática de lavar as mãos, que nos protege da Covid-19, de diarréias e de uma expectativa de vida de poucas décadas, já foi controversa.

Ignaz Semmelweis foi o médico que percebeu em 1846 que mulheres que pariam em casa morriam menos do que aquelas que pariam no Hospital Geral de Viena, na clínica usada para aulas de medicina. A taxa de mortalidade era 300% (!) maior entre as que iam para o hospital.

Semmelweis reparou que médicos vinham das aulas de anatomia com as mãos e os instrumentos saídos dos cadáveres direto para as mulheres em parto. Ele fez uma observação, formulou uma hipótese e testou. Instituiu que os médicos lavassem as mãos em uma solução de água e cloro. As mortes por febre pós-parto caíram em 90%. Mas os médicos ignoraram suas conclusões, que iam contra as ideias da uma época onde não se sabia sobre bactérias.

Semmelweis morreu ignorado quase 20 anos depois, após apanhar de guardas em um manicômio, ainda fulo da vida. Pelo menos ganhou um reflexo em seu nome, o reflexo de Semmelweis, quando pessoas rejeitam o conhecimento correto pois vai de encontro com crenças prévias. Só quando descobrimos os micróbios que entendemos a importância de lavar as mãos.

Um reflexo que certamente ainda acontece. Foi com muito custo que a medicina abandonou práticas como sangrar pacientes para deixar os maus humores saírem, que certamente levou mais vidas do que salvou.

[ x ]

O que ajudou na mudança foi a medicina baseada em evidências, um método de tomada de decisões bem descrito pelo médico Jan Baptist van Helmont em 1662, quando propôs usar 200 a 500 pobres doentes, para sangrar metade deles e outra metade não, e ver qual o grupo que tinha mais curas para saber se sangrias funcionavam. Isso é um teste clínico. Nada ético, mas bastante meticuloso. Que com um pouco mais de ética nos trouxe muitos avanços médicos. Como cura do escorbuto com vitamina C. A ele ainda incorporamos a estatística, o sorteio de quem recebe o tratamento e placebos. É graças a essa combinação nos testes clínicos que uma unidade básica de saúde distribui medicamentos modernos que salvam vidas, ao invés de sanguessugas.

Parece simples, mas pense em quantas outras áreas se baseiam em evidências. Quais medidas econômicas, sociais ou educacionais foram adotadas depois de comparar um grupo controle "tratado" com outro "não tratado"?

Tomar decisões baseadas em ciência assim ainda é difícil. O Brasil ainda reconhece homeopatia como prática médica, um tipo de tratamento que não passa em testes clínicos. É só ver o que acontece na pandemia de Covid-19. Testes clínicos randomizados, controlados, demoram para serem feitos. E estão sendo feitos e demonstrando alguns tratamentos, como o uso de corticóide que salva pacientes em estado grave. Mas no desespero por salvar vidas, já saímos tratando as pessoas com qualquer princípio promissor. Sem ter como saber quem melhorou por conta própria ou por algum dos vários tratamentos testados ao mesmo tempo.

No Irã, centenas morreram tomando metanol como cura da Covid. No Brasil, cloroquina e ivermectina seguem usadas como "preventivo" depois de mostrarem bons resultados em laboratório que não se confirmaram em testes clínicos.

Máscaras, distanciamento e ficar em casa são os preventivos funcionam. Já passou da hora de levarmos em conta a ciência e as evidências para adotar tratamentos que funcionam e abandonar os que não funcionam. Só assim que salvaremos vidas. Semmelweis que o diga.

Esta coluna foi escrita para a campanha #CientistaTrabalhando, que neste mês de julho celebra o Dia Nacional da Ciência abordando o processo científico.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Atila Iamarino Quando vem a imunidade de rebanho? FSP

(Sobre o uso do termo "imunidade de rebanho" no título: um termo melhor é imunidade coletiva; quem conta com ela para combater a Covid-19 nos trata como rebanho.)

Em algumas das regiões mais atingidas pela Covid, como cidades ribeirinhas na Amazônia e alguns bairros do Rio de Janeiro onde mais de 20% da população chegou a contrair o vírus, os casos parecem estar caindo. E alguns interpretam essa contradição sugerindo que, nesses locais, a proporção de pessoas curadas talvez seja suficiente para conter a circulação da doença.

Mas, nos surtos do navio de cruzeiro australiano Greg Mortimer e do porta-aviões francês Charles de Gaulle, por volta de 60% dos seus ocupantes contraíram o novo coronavírus, mesmo tentando fazer isolamento e com uma tripulação de militares atléticos.

O termo imunidade de rebanho apareceu quando pesquisadores observaram que infecções de camundongos de laboratório poderiam acabar antes de todos serem atingidos.

O mesmo se viu com crianças e o sarampo antes de uma das maiores invenções da humanidade: as vacinas. Todo ano o sarampo voltava, mas a cada três ou quatro anos seu estrago era muito maior.

Na década de 1930, começamos a entender melhor o fenômeno. O sarampo circulava até atingir a maioria das crianças. Quando a maior parte delas já havia se curado ou morrido, a maioria das pessoas que o vírus encontrava já estava imune e os casos caiam, mesmo com algumas crianças ainda vulneráveis. Depois de alguns anos, quando já haviam nascido mais vulneráveis, a doença voltava com força.

[ x ]

Com as vacinas, a imunidade coletiva passou a ser desejável. Ela dá o limiar de imunização de uma comunidade a ponto de impedir uma doença de circular, protegendo mesmo quem não pode ser vacinado. É o que costumávamos fazer para controlar o sarampo até alguns anos atrás, quando o movimento antivacina resgatou a moda da mortes infantis por doenças evitáveis.

Isso porque quanto mais transmissível a infecção, maior tem que ser o limiar de imunização para conter seu espalhamento. O vírus influenza, que costuma ser transmitido para pouco menos de duas pessoas, deixa de circular quando por volta de 40% das pessoas de uma região se imunizaram ou se curaram. Já o vírus do sarampo, que regularmente infecta mais de dez pessoas para cada infectado, só é contido quando mais de 90% de uma população está imune.

E a Covid? Para começar, não sabemos se a imunidade contra ela é protetora. É um grandessíssimo "se", que só deve ficar mais claro com os testes de vacinas.

Se a proteção acontecer, estudos estimam valores que vão de 20% a 85% de imunização. A maioria aponta para algo entre 40% e 70%. Mas contar com qualquer limiar desses seria crueldade. Mesmo se "só" 20% dos brasileiros curados no Placar da Vida fossem suficientes, tratando pessoas como rebanho ainda seriam 40 milhões de infectados, centenas de milhares precisando de internação em dezenas de milhares de leitos de UTI, e pelo menos 200 mil mortos, usando as estimativas mais otimistas de fatalidade de 0,5% dos infectados.

E os navios já mostraram que os números podem ser pelo menos três vezes mais altos. Ou seja, segurar o vírus na base de distanciamento e máscaras ainda é a saída mais humana. Com uma segunda vantagem: com essas medidas podemos reduzir o número de pessoas que alguém doente infecta, o que tem o potencial de reduzir o limiar de imunidade coletiva. Essa seria a oportunidade perfeita de atingirmos a imunidade coletiva com vacinados, ao invés de contar com o rebanho de brasileiros curados.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em