segunda-feira, 20 de julho de 2020

Nabil Bonduki Desembargador negacionista, que precisa ser punido com rigor, é apenas a ponta de um iceberg, FSP

“Esse analfabeto está multando...”

A chocante cena promovida pelo dr. Eduardo Siqueira um desembargador do TJ-SP que insiste em andar sem máscara pelas praias de Santos, em desafio às medidas preventivas contra a pandemia e que, além disso, abusa da autoridade, humilha funcionário público negro em cumprimento de sua obrigação, tenta fazer tráfico de influência, comete preconceito e racismo e suja a praia jogando a multa na areia— retrata o triste Brasil dos anos 2020.

Ela expressa a arrogância de parte da elite brasileira que acredita ser superior, impune e estar acima das leis e dos demais cidadãos. E mostra a existência de um contingente expressivo de pessoas que nega a ciência e a necessidade de prevenção para evitar uma aceleração ainda maior da pandemia.

Pelas duas razões, ele precisa ser rigorosamente punido como um exemplo de que esse tipo de comportamento é inadmissível. Merecia ser preso, afastado da magistratura e perder os privilégios que desfruta como membro de um poder que tem os mais altos salários e benefícios do Estado brasileiro.

Desembargador Eduardo Siqueira rasga multa por estar sem máscara em praia de Santos (SP)
Desembargador Eduardo Siqueira rasga multa por estar sem máscara em praia de Santos (SP) - Reprodução

Dar carteirada, mostrar proximidade com as autoridades para conseguir vantagens, considerar-se superior e massacrar trabalhadores é típico do andar de cima da sociedade brasileira. Recentemente, na frente de um bar no bairro carioca do Leblon, um fiscal da prefeitura do Rio de Janeiro, que cumpria seu papel de evitar aglomerações, teve que ouvir de uma cliente: “Ele é engenheiro, melhor que você!”.

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Esse tipo de manifestação faz parte do privilégio estrutural vigente no país, onde crimes praticados pela elite e por gente rica são perdoados sem maiores consequências enquanto pequenos delitos cometidos por pobres e negros são rigorosamente punidos.

Já negar as medidas de prevenção contra a disseminação do vírus, como o uso de máscaras, é um verdadeiro atentado contra a população, ainda mais neste momento em que o poder público promove uma discutível flexibilização, apesar da pandemia continuar acelerada na maioria dos estados.

Como Dráuzio Varella escreveu em magistral artigo: “Qual é a dessas pessoas que andam sem máscara pelas cidades? É porque não acreditam em vírus, seres minúsculos que os olhos não enxergam?”.

Os dados mostram que estamos muito longe de ver a luz no final do túnel da pandemia. O país alcançou no último dia 16 o mais alto índice na média móvel de sete dias, com 1.072 óbitos. Esse patamar vem sendo mantido há cerca de dois meses, com leve tendência de alta. O estágio da pandemia no estado de São Paulo também é considerado acelerado.

Apesar disso, o governo e as prefeituras, em quase todo o país, promovem uma gradativa reabertura de inúmeras atividades econômicas, o que pode gerar um novo repique da pandemia, mesmo em cidades onde ela começava a apresentar sinais de desaceleração. Para minimizar esse risco, é essencial a obediência a um rigoroso protocolo de prevenção, onde o uso de máscara é medida central.

Punir, com visibilidade, comportamentos como o do desembargador, é exemplar para se contrapor ao negacionismo que circula pelo país como um “bolsonavírus”.

O presidente vetou, em 3 de julho, o inciso 3 do artigo 3º da Lei 1.562/2020, que determinava a obrigatoriedade do uso de máscaras protetoras em "estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas", medida que vigora apenas em decorrência de decretos ou leis estaduais ou municipais.

O negacismo e as manifestações contra medidas preventivas continuam a se espalhar pelo país e pelo mundo.

Na Sérvia, na semana passada, manifestantes entraram em um violento conflito com o governo após o presidente determinar lockdown para conter o avanço do coronavírus. No sábado, em Brasília, apoiadores do presidente voltaram a se manifestar contra o isolamento determinado por governadores.

Alegar liberdade individual para negar a adoção de medidas sanitárias de prevenção à propagação de epidemias foi uma questão superada pelo liberalismo em meados do século 19, em países como a Inglaterra e a França, que aprovaram legislações restritivas após Londres e Paris serem afetadas por epidemias mataram dezenas de milhares de pessoas.

Apesar disso, ao longo da história, foram frequentes as reações populares contra as restrições sanitárias ou medidas cientificamente comprovadas para combater epidemias, alegando liberdades individuais. No Rio de Janeiro, em 1904, grupos se organizaram contra a vacinação obrigatória da varíola, promovida por Osvaldo Cruz, o que gerou a conhecida Revolta da Vacina.

Em São Francisco (EUA), no auge da pandemia de gripe espanhola, moradores cansados após meses de restrições e desconfiados da eficácia das máscaras para frear o avanço da doença criaram um movimento chamado de Liga Antimáscara. Eles acusavam as autoridades de violar seus direitos constitucionais e pediam a volta à normalidade, chegando a reunir, em janeiro de 1919, mais de 2.000 pessoas em uma manifestação.

A arrogante atitude do desembargador pode parecer um ato individual. Ela é muito mais que isso: expressa uma visão que está presente em toda uma parcela da sociedade, estimulada pelos negacionistas. Precisa ser combatida para evitar que a flexibilização do isolamento gere uma aceleração descontrolada do novo coronavírus.

Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Crise angolana ameaça ambições globais da Igreja Universal, Mathias Alencastro, FSP

Numa ironia, igreja alçou Jair Bolsonaro ao pedestal só para ver o seu império derreter

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Acusações de invasões a templos e agressões a pastores brasileiros em Angola invadiram os canais de informação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).

Jair Bolsonaro manifestou apreensão, e um grupo de senadores anunciou uma missão para acompanhar os acontecimentos do outro lado do Atlântico Sul.

Porém, como me alertou um angolano que acompanha o caso, na história do caçador, o lobo passa sempre por um animal selvagem.

O bispo Edir Macedo realiza culto na praça Jardim do Méier, no Rio de Janeiro
O bispo Edir Macedo realiza culto na praça Jardim do Méier, no Rio de Janeiro - Danilo Verpa - 8.jul.17/Folhapress

Instalada em Angola há décadas, a IURD cresceu exponencialmente durante os anos 2000, quando os pastores conquistaram as camadas populares que cicatrizavam as feridas de quase meio século de violência contínua.

A partir de 2015, perante o colapso da indústria petrolífera, a igreja começou a limitar os investimentos em Angola.

A austeridade imposta por uma instituição conhecida localmente por sua exuberância criou um clima propício para a revolta dos bispos angolanos por mais poder e direitos.

Estamos perante a história de uma disputa pelo dízimo de desesperados num cenário digno de um filme de Paul Thomas Anderson, composto por templos mal pintados, trovas baianas e quinquilharia chinesa.

Cabe lembrar que o Brasil não é um império colonial, e a IURD não pode evangelizar os crentes angolanos como os portugueses cristianizavam o reino do Congo.

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A IURD é uma instituição com domicílio em Angola, país soberano. Porém, nos dias de hoje, a realidade é apenas um detalhe para o Itamaraty.

Ernesto Araújo e seus devotos usaram as agressões contra brasileiros como pretexto para tentar salvar o negócio dos seus arrais religiosos.

Infelizmente para os nossos cruzados, é improvável que os angolanos cedam à pressão. Afinal, a IURD nunca foi vista com bons olhos pela elite do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), o partido no poder.

Treinado pelos paranoicos agentes da Alemanha Oriental, o serviço de segurança do Estado desconfia de entidades que manipulam as massas, ainda mais quando controladas do exterior.

Em 2013, o governo de José Eduardo dos Santos havia ensaiado um rompimento com a IURD, mas recuou diante dos protestos dos fiéis.

De lá para cá, o Brasil passou de potência emergente a negacionista doente. Bastou o governo angolano deixar prosperar a dissidência interna para resolver o problema.

O episódio trará consequências para a IURD. Angola é muito mais que uma provedora de generosas remessas em dólares nos tempos áureos.

É o campo de treinamento onde Marcelo Crivella e outros bispos cumpriram parte da sua formação e a base de lançamento de suas duas dezenas de operações no continente africano.

A emancipação dos bispos angolanos cria um precedente ameaçador para as ambições globais da maior multinacional da fé brasileira.

Numa ironia que marcará a história das relações entre religião e política, a IURD alçou Jair Bolsonaro ao pedestal só para ver o seu império derreter.

Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).