domingo, 19 de julho de 2020

Jorge Coli Brasil nunca foi tão boçal como agora, FSP

Brucutus não hesitam em exprimir em voz alta seus valores mais baixos

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O brasileiro não é o homem cordial. É o homem boçal.

Generalizar assim, usando o singular para definir traços coletivos de uma comunidade —o brasileiro, o americano, o latino ou o nordestino— sempre me causa mal-estar. Não há “o brasileiro” porque é impossível enfiar diferenças tão variadas de milhões num ser único, numa pessoa singular.

Tal modo de dizer universaliza e impõe as características desejadas como preponderantes. Além de descritivos, são termos normativos, ou seja, determinam comportamentos e modos de ser. Afirmar “o brasileiro gosta de futebol” decide que todos os brasileiros são obrigados a gostar de futebol. A norma traz consigo a punição: se não gosto de futebol, sou excluído por ser menos brasileiro. Ou por não ser cordial. Ou por não ser boçal.

Jair Bolsonaro em encontro com o presidente do Palmeiras, Maurício Galiotte - Marcos Corrêa - 30.jun.2020/PR

Nenhum povo é cordial, triste ou alegre. Mas existem, sim, traços comuns construídos por conjuntos de pessoas. É importante detectá-los para não sermos pressionados por eles. Quando pertencem a um grupo que domina, tendem a se impor e a se alastrar, esmagando outros modos de ser. O desejo de reconhecimento, de se integrar, destrói as individualidades e suas diferenças.

Resumindo: o brasileiro (ou o australiano, qualquer exemplo serve) é uma construção mental predominante que dita traços comuns a todos, mesmo àqueles que não os possuem.

Por isso digo que o brasileiro é boçal. Estamos num momento em que prevalece a boçalidade como comportamento exemplar. Desde a subida de Bolsonaro e de sua gangue, ficou popular a figura do “tiozão do pavê”, que aparece no almoço do domingo e é um chato sem graça. É a faceta vulgar, a mais inofensiva do brucutu. A mais sinistra talvez seja a desse ex-sargento da Rota, acusado de 45 homicídios, que publica, orgulhoso, uma “lista da morte” no Facebook e recebe elogios.

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Os boçais brotam da classe média que não hesita em exprimir em voz alta os seus valores mais baixos. Esses valores baixos vêm acompanhados por uma linguagem chula. Houve um contraste entre a vulgaridade criminosa do presidente, quando disse que “máscara é coisa de viado”, e a resposta digna e elegante de grupos LGBTs, dando à palavra viado um valor positivo e deduzindo um elogio a partir da fala insultante. Mas, da boca por onde saiu, o sentido se queria ordinário e ultrajante. É recebido assim pelo lorpa bolsonarista.

Um dos sinais exteriores mais evidentes da boçalidade geral que invade o país é o uso de palavrões.

Ok, García Márquez põe uma porção de “carajo” na boca de seu Simón Bolívar, e parece que, de fato, o general gostava de empregar nomes feios, mas sabia quando e onde. Tinha, ao que parece, uma linguagem ornada de requintes quando em presença de senhoras e em cerimônias oficiais, presidindo assembleias.

Não é hipocrisia. É adequar a linguagem ao momento.

O vídeo do conselho de ministros foi medonho pelas ideias e convicções antiéticas ali expressas, mais ainda pelo baixo calão em que foram vazadas, num coro puxado pelo presidente, campeão em “filho da puta”, “tomar no cu”, “hemorroidas”, “porra”, “foda-se”, entre outras delicadezas.

A linguagem do astrólogo e guru presidencial que mora nos Estados Unidos é de mesma natureza. Sua mixórdia pateta de pseudointelectual vem recheada de termos mimosos, que espoucam como flatulências. Creio que o sucesso desse senhor se deve em grande parte a isto: o boçal atrai o boçal.

Fuzilar a petralhada”, “matar uns 30 mil” são formas, desta vez perigosas, de boca suja não pelas palavras, mas pelas ideias que transmitem. O “sabe com quem está falando?”, o “sou eu que pago seu salário” expõem o beócio que se autoafirma. As peruas são encarnações da boçalidade feminina. Aquele vídeo inenarrável da sra. Doria dizendo com muitas afetações de falsa elegância cara —insuportável boçalidade coberta de seda— que não se deve dar ajuda aos sem-teto porque eles gostam da rua é exemplar e antológico da cretinice arrogante.

Nos seus infortúnios de saúde, Bolsonaro teve muita sorte. Seu coronavírus serve-lhe muito bem para tirar o foco que o caso Queiroz projetou sobre ele. A facada foi importante para as eleições passadas, nas quais começou como um azarão. Ela evitou-lhe os debates nos quais ou se deixaria levar pelo jargão imundo ou ficaria travado, com consequências prejudiciais para ele.

Talvez, em nossos dias de grossura triunfante, dizer palavrão num debate seja menos grave. Em todo caso, tanto nas convicções quanto no vocabulário, nunca este país foi tão boçal como agora.

Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Após infecção, quanto tempo dura a imunidade contra o coronavírus?, Fernando Reinach, OESP

Nosso futuro próximo depende de como o sistema imune se comporta quando encontra o SARS-CoV-2. Muitas pessoas lidam facilmente com o vírus, exterminando o invasor sem sequer apresentar sintomas. Outros apresentam sintomas, mas se curam em casa. Algumas pessoas manifestam a forma grave da doença. Essa diversidade demonstra que alguns organismos estão mais preparados que outros para lidar com o coronavírus. A razão dessa diferença ainda é desconhecida. E, depois da infecção, a imunidade dura quanto tempo? Apesar de os cientistas já estarem investigando essas questões, os resultados são preliminares e as respostas iniciais estão ainda longe de serem definitivas, uma vez que as pessoas que foram infectadas há mais tempo tiveram contato com o vírus em janeiro de 2020.

Testes de coronavírus em laboratório
Testes de coronavírus em laboratório Foto: REUTERS/Axel Schmidt

O interessante é que o SARS-CoV-2 tem vários primos, vírus cuja sequência de DNA é muito parecida à do novo coronavírus, e com os quais já convivemos no passado e continuamos a conviver no presente. Todos infectam nosso sistema respiratório e causam sintomas semelhantes, mas de diferente severidade. O mais semelhante ao SARS-CoV-2 é o SARS-CoV-1, que apareceu em 2003, se espalhou por 26 países, infectou 8 mil pessoas, e foi banido da face da Terra por um processo rigoroso de rastreamento de contatos. Ele é mais letal que o novo coronavírus, mas muito semelhante: uma de suas proteínas principais é 100% igual à do novo coronavírus e outra é 90% idêntica. 

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O interesse dos cientistas é na resposta imune das quase 8 mil pessoas que foram infectadas em 2003 pelo SARS-CoV-1. Entender a resposta imune dessas pessoas pode nos ajudar a prever como será nossa resposta ao novo coronavírus.

Além disso existem outros quatro coronavírus (OC43, HKU1, NL63 e 229E) também bastante semelhantes ao SARS-CoV-2 com os quais todos nós convivemos constantemente. São os vírus que causam os resfriados que nos atacam todo ano. Nosso sistema imune está tão acostumado com esses vírus que sequer necessitamos de vacinas para lidar com eles. Geralmente temos um leve mal-estar, coriza, um pouco de febre e logo saramos.

Foi com esses fatos na mente que um grupo de cientistas resolveu comparar a memória imunológica de 36 pessoas que já haviam se recuperado da COVID-19 (haviam sido infectados recentemente pelo SARS-COV-2) com a memória imunológica de 23 pessoas que haviam sido infectadas pelo SARS-CoV-1 em 2003 e outras 37 pessoas que nunca foram infectadas pelos dois SARS-CoV mas tiveram repetidas infecções pelos coronavírus do resfriado comum.

O primeiro resultado importante é que 100% das pessoas que tinham sido infectadas pelo SARS-CoV-2 tinham anticorpos circulantes contra as proteínas NP e RBD (são os nomes das proteínas do vírus). Já as pessoas infectadas pelo SARS-CoV-1, mesmo 17 anos depois da infecção, ainda possuíam anticorpos conta a proteína NP (essa é a proteína que é idêntica entre os dois vírus), mas já não apresentavam anticorpos contra a proteína RBD que é diferente entre os vírus. E as pessoas que só tinham sido infectadas pelos vírus do resfriado não apresentavam nenhum desses anticorpos. Isso demonstra que os anticorpos contra a proteína NP podem durar por até 17 anos. Esta é uma forte evidência de que a imunidade ao SARS-CoV-2 também deve durar por muitos anos.

Quando os cientistas examinaram a resposta do sistema imune de pessoas que somente haviam entrado em contato com os coronavírus que causam o resfriado, eles descobriram que em 50% dessas pessoas existem muitas células T capazes de detectar fragmentos do SARS-CoV-1 e SARS-CoV-2.

Sumarizando: o sistema imune de 50% das pessoas que tiveram resfriados ao longo da vida e nunca tiveram contato com os dois SARS reconhecem proteínas do SARS-CoV-2, mas não possuem anticorpos contra o vírus. Muito provavelmente estas são as pessoas que têm uma forma leve da doença e devem incluir as crianças (que sabidamente vivem com resfriado). Isso talvez explique porque nas mulheres as formas graves são menos frequentes. Já 100% das pessoas que foram infectadas pelo SARS-CoV-1 em 2003 ainda tem a capacidade de reconhecer e combater o SARS-CoV-2, tanto através de anticorpos quanto através de suas células T. Esses resultados demonstram que muito provavelmente a imunidade ao SARS-CoV-2 será robusta e deve durar por muitos anos, inclusive com a presença de anticorpos contra a proteína NP. Além disso sugere que repetidas infecções pelos vírus do resfriado devem ajudar as pessoas a terem uma forma menos severa da covid-19. Claro que esses resultados precisam ser confirmados em amostras maiores, mas são animadores.