domingo, 19 de julho de 2020

Rebanho, não, Marcelo Leite, FSP

Se chegamos a ponto tão baixo com Bolsonaro e Covid-19, foi por escolha

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“Plantel não, plantel é de bois e cavalos”, protesta Moreira da Silva na canção. “Flamengo não tem plantel, Flamengo tem atletas, tem elenco, tem craques da pelota, tem doutor, tem bacharel.”

Desde que começou a pandemia de Covid-19, muita gente implicou —com razão— com a expressão “imunidade de rebanho”. Soa melhor falar em imunidade coletiva, comunitária, pois é de seres humanos que se trata.

Pior se mostrou a defesa do conceito, por uns poucos desnaturados, como estratégia de enfrentamento do coronavírus. Na falta de vacina, bastaria esperar que pelo menos 60% da população fosse infectada para o patógeno deixar de circular e o flagelo desaparecer.

Na Suécia e no Reino Unido, autoridades flertaram abertamente com a ideia; deu no que deu, mortalidade galopante. Bolsonaro chegou bem perto do disparate quando falou: “E daí?

No Brasil, isso daí daria 127 milhões de infectados e uns 5 milhões de mortos. Tá OK?

Ainda estamos em mais de 2 milhões de casos e quase 80 mil óbitos registrados. Números altos demais, que já nos dão a vice-liderança no campeonato mundial de incúria, após dois meses sem ministro da Saúde.

Nesta semana o rebanho voltou à cena, tangido pela queda de casos novos em cidades castigadas cedo pela pandemia, como São Paulo, Manaus, Belém e Rio. Como em nenhuma delas a quantidade de infecções detectadas sequer chegou a 20%, cresceu a desconfiança de que o limiar da imunidade coletiva seja menor que 60%.

A hipótese veio amparada num estudo na revista Science de 23 de junho (embora uma pesquisa de maio no medRxiv já tivesse levantado a lebre, com participação do brasileiro Caetano Souto-Maior). Pesquisadores da Suécia e do Reino Unido (não por acaso?) calcularam que essa fronteira de imunização comunitária poderia ser de 43% dos habitantes.

Chegaram à cifra introduzindo em seu modelo matemático a noção de heterogeneidade. Em poucas palavras, levaram em conta que nenhuma população é uniforme, composta de indivíduos igualmente suscetíveis a contrair o vírus Sars-CoV-2.

As pessoas diferem em idade, estado de saúde, gênero, ancestralidade, fatores genéticos, estilo de vida etc. Com o avanço da pandemia, a ciência vai descobrindo que alguns desses fatores podem influenciar se uma pessoa pega a doença, se desenvolve sintomas e se corre risco de morrer.

Incluindo as diferenças de vulnerabilidade no cálculo, recua aquela nota de corte para a imunidade coletiva. Além disso, à medida que o vírus se espalha, diminui o número de pessoas suscetíveis, pois algumas morrem e as que sobrevivem ganham defesas contra ele.

Qual tipo de defesa? Eis outra discussão acesa entre especialistas. Até há pouco se falava mais em anticorpos, que podem ser detectados nos testes rápidos (sorológicos), mas há cada vez mais indícios de que pelo menos algumas pessoas vencem o corona por meio de células de defesa (linfócitos T).

Como não há exames para detectar tais células, levantamentos que só buscam anticorpos provavelmente deixam de identificar algumas das pessoas que tiveram Covid-19. E há evidências a indicar que a defesa por anticorpos decai com o tempo.

O mais importante, contudo, é que medidas de prevenção —máscaras, distanciamento, álcool gel— também limitam, óbvio, a quantidade de pessoas em condições de se infectar. Quanto mais elas se protegem, mais se combate a epidemia.

Rebanho? Não. Não somos rebanho porque podemos decidir aonde queremos chegar.

Marcelo Leite

Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.

Justiça ameaça plano da JBS de mudar sede para o exterior, FSP

BRASÍLIA

Os planos da JBS, maior companhia de carne bovina do mundo, de mudar sua sede para o exterior e abrir capital na Bolsa de Valores de Nova York ficarão congelados até 2040 caso a Justiça mantenha a decisão que impede a companhia de praticar qualquer ato prejudicial ao acordo de leniência assinado com o MPF (Ministério Público Federal).

Uma audiência que pode selar os planos da empresa está prevista para o fim do mês.

Em março, os procuradores foram à Justiça afirmando que a J&F, que controla todas as demais empresas do grupo, vem descumprindo os termos do acordo de leniência assinado com o MPF em junho de 2017.

Funcionários em frente a uma planta da JBS no estado do Colorado, nos Estados Unidos - Shannon Stapleton-14.abr.20/Reuters

A leniência é uma espécie de delação para empresas que confessam ilicitudes, pagam multas e se comprometem em ressarcir o erário por prejuízos causados por esquemas de corrupção e desvio de recursos.

O juiz responsável, Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal em Brasília, aceitou o pedido do MPF para que a empresa "não pratique qualquer ato que altere ou faça cair no vazio o objetivo da medida pretendida [pelo MPF]".

A decisão levou em consideração o risco, apontado pelo MPF, de que a JBS esvazie o acordo com a implementação do plano de internacionalização da sede. A decisão final, no entanto, ainda será tomada.

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O projeto de reestruturação foi antecipado pela Folha e prevê a transferência da sede da JBS do Brasil para Luxemburgo ou Holanda, além do lançamento de novos papéis desta companhia em Nova York. A nova divisão reuniria todos os negócios internacionais da JBS.

Da forma como está organizada hoje, a companhia (com sede no Brasil) detém os negócios com carne bovina e controla a Seara e a JBS Global (braço que inclui a operação nos EUA, na Austrália, no Canadá e na Europa).

Esse processo é diferente de operações que empresas brasileiras normalmente fazem ao lançar ADRs (certificados de ações negociados nos EUA).

À Justiça os procuradores apresentaram diversas evidências dos riscos envolvidos nesse plano. Eles temem que o patrimônio da companhia no Brasil seja esvaziado e passe a ser insuficiente para cobrir os valores da leniência.

Em caso de rescisão do acordo por descumprimento, as parcelas previstas até 2040 vencerão antecipadamente. O valor total é de R$ 11,5 bilhões (corrigidos pela inflação).

Hoje, a força-tarefa da Greenfield, grupo de procuradores responsável pela leniência no MPF, já aponta infrações.

Uma das principais é o atraso na entrega dos relatórios de auditoria interna das maiores empresas do grupo, feitas para detectar possíveis novas ilegalidades nas operações.

Segundo os procuradores afirmaram à Justiça, as investigações estão concluídas e até hoje não foram apresentadas, uma exigência do acordo.

Pessoas com acesso às tratativas entre JBS e MPF afirmam que a empresa teme que a apresentação dos relatórios possa dificultar a situação dos executivos da empresa no âmbito penal.

Eles firmaram um acordo de delação com a PGR (Procuradoria-Geral da República), mas o então procurador-geral, Rodrigo Janot, pediu a rescisão do termo. O STF ainda julgará se mantém ou não os benefícios pactuados.

Caso decida pela rescisão, eventuais provas presentes nos relatórios de auditoria podem incriminar os executivos e suscitar a abertura de novas ações penais.

Outro problema, segundo a força-tarefa, é o fato de a empresa não ter feito investimentos sociais pactuados. Pelos termos acertados, dos R$ 11,5 bilhões, R$ 8 bilhões serão destinados a União, BNDES, fundos como Funcef e Petros e FGTS. Outros R$ 2,3 bilhões, para projetos sociais.

Além da J&F, o BNDES é o principal acionista da JBS, com 21,3% das ações com voto.

Em entrevista à Folha, em março, o presidente do banco, Gustavo Montezano, confirmou o projeto de cisão da empresa e a migração da sede para o exterior como pré-requisito para a abertura de capital na Bolsa de Nova York.

Montezano também afirmou que o BNDES não tem mais poder de veto em decisões sensíveis da companhia porque o acordo de acionistas venceu no fim do ano passado.

O acordo, válido por dez anos, previa uma única renovação, em 2014. Procurado, o BNDES não quis comentar.

Disse ainda que o banco acredita que essa estratégia vai valorizar os papéis e pode esperar a implementação desse plano para vender as ações hoje em posse da instituição.

Caso o plano seja implementado, quem tiver papéis da JBS poderá optar por trocá-los pelos novos títulos negociados nos Estados Unidos ou continuar com as ações (em reais) na B3.

As projeções da companhia indicam que as variações cambiais trarão mais ganhos para quem detiver os papéis negociados na moeda americana.

Em 2016, a JBS tentou levar a sede para a Irlanda e abrir capital nos EUA. Mas o BNDES vetou a operação.

EMPRESA NEGA QUE PLANO SEJA PARA BLINDAR ATIVOS

Em comunicado ao mercado no fim de 2019, a JBS nega esse plano. Afirma que a ideia é apenas listar a empresa na Bolsa de Valores de Nova York para que, em dólar, possa ter seu valor corrigido e os acionistas possam rentabilizar melhor o movimento.

Para isso, estuda a melhor forma de reestruturar a empresa para "permitir a ela condições de competição nos mesmos padrões que seus concorrentes internacionais".

"Com uma possível listagem, a companhia busca destravar valor a todos os seus acionistas e não uma blindagem de ativos", disse no comunicado.

"Em todas as hipóteses avaliadas o controle continuará sendo exercido por uma sociedade brasileira."

​A J&F não quis se manifestar sobre a ação que tramita na Justiça Federal.