terça-feira, 7 de julho de 2020

Não provoque um homem que usa pulôveres de cashmere, FSP

Impossível não se lembrar dos bordões de Chaves: 'gentalha, gentalha'

  • 15

No infame espaço das quintas-feiras em que oferece a seus incondicionais 15% de apoiadores o espetáculo de suas lives, o presidente —e aqui a caixa baixa é necessária— tica assuntos periféricos com a boquinha torta e o olhar de tédio habituais, como a fazer um favor por estar ali. Na semana passada, em reação ao deboche pelo assassinato da “Ave Maria”, crime descrito em detalhes na imperdível coluna de João Pereira Coutinho, ele novamente levou seu sanfoneiro oficial.

Ilustração de Cynthia Bonacossa para coluna da Claudia Tajes 06/07
Cynthia Bonacossa/Folhapress

Dessa vez, não para homenagear os que se foram, mas para louvar o que ainda resiste: ele mesmo. Também a claque era mais animada que Paulo Guedes e sua eterna não cara de “onde eu fui amarrar meu bode”.

Na live em que o gaiteiro Gilson, presidente da Embratur nas horas vagas, usou seu orifício súpero facial para cantar que Bolsonaro levou o rio para o Ceará, o presidente, de camisa do Flamengo, comemorou a MP do Futebol à sua moda, ou seja, com dados sem comprovação.

“Tinha uma televisão que tinha o monopólio e pagava —acho— R$ 500 mil, R$ 600 mil por cada jogo. O Flamengo faturou mais de R$ 10 milhões ontem”, afirmou. Festejava a ruptura do Flamengo com a arqui-inimiga TV Globo. Na sequência, deu os parabéns a ele mesmo pela assinatura da Medida Provisória 984. É como diz o ditado: já que ninguém gava, o Zeca gava.

Sobre os —àquela altura — mais de 61 mil mortos da Covid-19, nenhuma palavra. Um dia depois, vetou a obrigatoriedade do uso de máscaras em escolas, igrejas, indústrias e comércio, além de desobrigar o fornecimento a funcionários e à população vulnerável. É agora que os 15% diminuem. Se não for por bem, por mal.

Enquanto isso, o senador Flávio Bolsonaro ia às redes contra a decisão do Ministério Público Federal de pedir a quebra do sigilo telefônico e dos emails de seus assessores. “Tudo devido a uma fofoca do meu suplente de senador Paulo Marinho, também conhecido como tiazinha do pulôver.” Ao que Marinho retrucou: “Melhor não pagar de ‘gostosão’ com os investigadores do MPF porque eu e você sabemos o que você fez no verão de 2018”. E ainda: “Quanto aos pulôveres: quem aprecia muito o meu bom gosto é o seu pai, a quem eu presenteei com três e ele nunca mais os tirou”.

De camisa falsa de algum time ou de cashmere legítima, impossível não se lembrar de Chaves —mas não o da Venezuela, o do seriado e seus bordões.

Gentalha, gentalha.

Claudia Tajes

Escritora e roteirista, tem 11 livros publicados. Autora de "Macha".

Vivemos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencermos a alguém, João Pereira Coutinho, FSP

Esse vírus não levou apenas vidas. Também levou amores. Em todo o mundo, a experiência da quarentena foi ceifando vários casamentos. Razões?

Se eu fosse um cínico, diria que a explicação está numa estatística que a revista Veja partilhou com os leitores: durante a pandemia, houve uma queda de 70% na ocupação de motéis no Rio de Janeiro e em São Paulo. O casal, privado dos seus entretenimentos externos, foi obrigado à conjugalidade. Deu no que deu.

Ilustração de figura humana alada com correntes em um dos pulsos
Angelo Abu/Folhapress

Mas eu não sou cínico. Sou até um romântico, como Pascal Bruckner, o precioso moralista francês que me tem acompanhado com seus escritos amorosos.

Sempre gostei de Bruckner, de seu texto paradoxal e irônico, na tradição de La Rochefoucauld.

Mas, se tivesse que escolher, na vasta obra, um só título para os nossos tempos acelerados, seria “O Paradoxo Amoroso”.

O título é enganador. Bruckner não fala de um paradoxo. Fala de vários, porque o amor contém vários, embora dois deles tenham importância para a pandemia dos divórcios.

O primeiro paradoxo habita o coração do sujeito amoroso. Qual o nosso maior desejo? Sermos livres, independentes, autônomos, soberanos —eis a promessa da modernidade.

Mas como conjugar esses desejos nobres com as dimensões de dependência e sacrifício que o amor, esse deus caprichoso e cruel, também comporta?

Vivemos permanentemente divididos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencermos a alguém. De tal forma que uma amiga minha, terapeuta, me dizia há anos que uma parte dos seus pacientes eram jovens adultos que não sabiam o que fazer com a graça e o terror de estarem apaixonados.

Pascal Bruckner entende essa fobia do compromisso, um fenômeno único na história dos sexos que é o resultado (imprevisto?) de um acréscimo real de liberdade e de opção.

É também por isso, acrescenta o francês, que se multiplicam no Ocidente várias formas de “conjugalidade” que evitam a pesada instituição do “matrimônio”, embora mimetizando alguns de seus traços fundamentais.

Queremos conservar o bolo e comê-lo: ter um pouco da vida livre, um pouco do compromisso —e sempre com um plano de fuga que seja rápido e indolor.

“Marido”, “mulher” —não é mais leve ter um “companheiro” ou uma “parceira”? Exatamente como se fosse um negócio que tanto pode prosperar como falir?

Perdidos nas nossas rotinas, e até nas nossas aventuras, esse paradoxo amoroso, essa dicotomia entre a liberdade e a pertença pode ficar em segundo plano. Adormecido.

Mas, quando tudo para ao redor e nos vemos entre quatro paredes, revivemos esse paradoxo na carne. Que faço eu aqui quando poderia estar mais além?

Mas o amor não é só vítima desses sentimentos conflitantes. O amor moderno é vítima da sua própria idealização. Também pela primeira vez na história dos sexos, esperamos que o amor seja “uma forma secular de salvação”, escreve Bruckner.

Tudo falhou. Deus, as ideologias, a vida comunitária. Resta o trabalho, sim, como fonte de sentido; e o amor, que sobrecarregamos com o tipo de expectativas que antigamente era possível distribuir por vários modos de existência —a religiosa, a política, a cívica, a familiar etc.

Isso tem consequências: olhar para a pessoa amada e esperar dela tudo e o seu contrário.

Nas palavras de Bruckner, a mulher (ou o homem) não pode ser apenas mulher, ou seja, um ser humano, ou seja, um ser falível por definição.

A mulher tem de ser mãe, puta, terapeuta, amiga, sacerdotisa—de preferência no mesmo dia, ou até na mesma hora.

O mesmo vale para o homem, de quem se espera que seja marido, amante, confessor, sustento, pecador e santo.

Em rigor, não amamos pessoas; amamos ideias de pessoas e não toleramos que a realidade não esteja ao nível dos nossos delírios.

E assim nos encontramos: até a Segunda Guerra Mundial, escreve Bruckner, o casamento matava o amor; depois do conflito, o amor passou a matar o casamento. Que fazer?

Pascal Bruckner não oferece soluções. Essa, aliás, é a principal virtude do seu tratado. Para muitos, o amor superlativo vale sempre a pena, apesar do “fatal heroísmo” com que ele é vivido hoje.

Para outros, e seguindo uma velha escola, casamento tem sempre outras dimensões, das quais o amor é somente uma delas.

E haverá ainda aqueles que, repetindo as palavras de um filme de Christophe Honoré (“Les Chansons d’Amour”), dirão apenas: “ama-me menos, mas me ama por mais tempo”.

A única certeza é que, nas matérias do coração, continuamos tão perdidos e ignorantes como nossos antepassados.

A pandemia só revelou, sob uma luz mais crua, esses vícios de forma.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

  • 17