terça-feira, 7 de julho de 2020

Vivemos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencermos a alguém, João Pereira Coutinho, FSP

Esse vírus não levou apenas vidas. Também levou amores. Em todo o mundo, a experiência da quarentena foi ceifando vários casamentos. Razões?

Se eu fosse um cínico, diria que a explicação está numa estatística que a revista Veja partilhou com os leitores: durante a pandemia, houve uma queda de 70% na ocupação de motéis no Rio de Janeiro e em São Paulo. O casal, privado dos seus entretenimentos externos, foi obrigado à conjugalidade. Deu no que deu.

Ilustração de figura humana alada com correntes em um dos pulsos
Angelo Abu/Folhapress

Mas eu não sou cínico. Sou até um romântico, como Pascal Bruckner, o precioso moralista francês que me tem acompanhado com seus escritos amorosos.

Sempre gostei de Bruckner, de seu texto paradoxal e irônico, na tradição de La Rochefoucauld.

Mas, se tivesse que escolher, na vasta obra, um só título para os nossos tempos acelerados, seria “O Paradoxo Amoroso”.

O título é enganador. Bruckner não fala de um paradoxo. Fala de vários, porque o amor contém vários, embora dois deles tenham importância para a pandemia dos divórcios.

O primeiro paradoxo habita o coração do sujeito amoroso. Qual o nosso maior desejo? Sermos livres, independentes, autônomos, soberanos —eis a promessa da modernidade.

Mas como conjugar esses desejos nobres com as dimensões de dependência e sacrifício que o amor, esse deus caprichoso e cruel, também comporta?

Vivemos permanentemente divididos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencermos a alguém. De tal forma que uma amiga minha, terapeuta, me dizia há anos que uma parte dos seus pacientes eram jovens adultos que não sabiam o que fazer com a graça e o terror de estarem apaixonados.

Pascal Bruckner entende essa fobia do compromisso, um fenômeno único na história dos sexos que é o resultado (imprevisto?) de um acréscimo real de liberdade e de opção.

É também por isso, acrescenta o francês, que se multiplicam no Ocidente várias formas de “conjugalidade” que evitam a pesada instituição do “matrimônio”, embora mimetizando alguns de seus traços fundamentais.

Queremos conservar o bolo e comê-lo: ter um pouco da vida livre, um pouco do compromisso —e sempre com um plano de fuga que seja rápido e indolor.

“Marido”, “mulher” —não é mais leve ter um “companheiro” ou uma “parceira”? Exatamente como se fosse um negócio que tanto pode prosperar como falir?

Perdidos nas nossas rotinas, e até nas nossas aventuras, esse paradoxo amoroso, essa dicotomia entre a liberdade e a pertença pode ficar em segundo plano. Adormecido.

Mas, quando tudo para ao redor e nos vemos entre quatro paredes, revivemos esse paradoxo na carne. Que faço eu aqui quando poderia estar mais além?

Mas o amor não é só vítima desses sentimentos conflitantes. O amor moderno é vítima da sua própria idealização. Também pela primeira vez na história dos sexos, esperamos que o amor seja “uma forma secular de salvação”, escreve Bruckner.

Tudo falhou. Deus, as ideologias, a vida comunitária. Resta o trabalho, sim, como fonte de sentido; e o amor, que sobrecarregamos com o tipo de expectativas que antigamente era possível distribuir por vários modos de existência —a religiosa, a política, a cívica, a familiar etc.

Isso tem consequências: olhar para a pessoa amada e esperar dela tudo e o seu contrário.

Nas palavras de Bruckner, a mulher (ou o homem) não pode ser apenas mulher, ou seja, um ser humano, ou seja, um ser falível por definição.

A mulher tem de ser mãe, puta, terapeuta, amiga, sacerdotisa—de preferência no mesmo dia, ou até na mesma hora.

O mesmo vale para o homem, de quem se espera que seja marido, amante, confessor, sustento, pecador e santo.

Em rigor, não amamos pessoas; amamos ideias de pessoas e não toleramos que a realidade não esteja ao nível dos nossos delírios.

E assim nos encontramos: até a Segunda Guerra Mundial, escreve Bruckner, o casamento matava o amor; depois do conflito, o amor passou a matar o casamento. Que fazer?

Pascal Bruckner não oferece soluções. Essa, aliás, é a principal virtude do seu tratado. Para muitos, o amor superlativo vale sempre a pena, apesar do “fatal heroísmo” com que ele é vivido hoje.

Para outros, e seguindo uma velha escola, casamento tem sempre outras dimensões, das quais o amor é somente uma delas.

E haverá ainda aqueles que, repetindo as palavras de um filme de Christophe Honoré (“Les Chansons d’Amour”), dirão apenas: “ama-me menos, mas me ama por mais tempo”.

A única certeza é que, nas matérias do coração, continuamos tão perdidos e ignorantes como nossos antepassados.

A pandemia só revelou, sob uma luz mais crua, esses vícios de forma.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

  • 17

Nenhum comentário: